Além da interpretação legalista da Salvação – DOMINGO 6o DO T.C- B Jesus Priante

Além da interpretação legalista da Salvação

“Escuta Israel: O Senhor é teu Deus, o Senhor é Um.”

Quando temos resposta para tudo não estamos no caminho da verdade, que transcende à nossa razão. Uma maneira de praticar nossa Fé é pensar permanentemente o que cremos, buscando seu melhor entendimento. “A Fé busca o entendimento e o entendimento busca a Fé” é a velha tese da teologia. É o que pretendemos com estas nossas reflexões.

No domingo passado tentamos encontrar um sentido para o problema do sofrimento que, como afirma Léon Bloy, nos faz existir como humanos. Nao se vive neste mundo sem sofrimento (físico ou psíquico). Ele nos faz reconhecer nossa natural fragilidade. (homem ou Adão significa barro) mas, também, o sofrimento torna o outro “próximo” de nós. Muitas famílias separadas pelos conflitos, encontram-se nos hospitais e nós velórios.

O sofrimento nos faz compassivos (sofrer juntos).

As leituras deste domingo sugerem um outro problema existencial, carente de uma resposta racional: o PECADO. No velho filme “Lagoa Azul”, um casal de jovens náufragos são obrigados a viver juntos numa pequena ilha deserta, não isentos de brigas e desavenças. Certo dia, a jovem diz ao seu namorado: “Por que não nos amamos?”. O que é o Pecado e por que existe no mundo? Como o sofrimento é um “problema limite” para nossa razão. Todo ser humano experimenta a vida de maneira culpada. O pecado e a culpa são nosso existencial ou maneira humana de ser. Um mistério para o qual nossa razão busca, entre muitas, uma explicação, nunca última, nunca definitiva… Podemos elencar aqui algumas:

O PECADO É NOSSO EXISTENCIAL, maneira de ser humana. Não podemos ser ou existir neste mundo, nos diz São Jerônimo (séc.IV), sem pecado . “O homem é um lenho torto do qual não podem sair tábuas retas”, afirmava Kant (séc.XVIII). “Não podemos ficar diante de Deus de maneira autêntica a não ser como pecadores.” (K. Barth). São Paulo reconhece essa condição humana: “O pecado está dentro de mim” (Rm.7,20). Seria mais apropriado chamar de pecado natural o “pecado original”, ao menos como o temos entendido, herança do pecado de Adão e Eva. Antes deles pecarem já eram pecadores.

Não somos pecadores porque pecamos, mas pecamos porque somos existencialmente pecadores.

Da mesma maneira que um cego de nascença jamais pode ver porque os neurônios próprios da visão estão desconectados, também o pecado é impossível de erradicar, como no filme “Laranja Mecánica”, propõe-se, através de uma lobotomia, para um delinquente compulsivo, corrigir o incorrigível.

Nascer de Novo

O pecado, como Jesus disse, exige “nascer de novo” (lJo.3), pois em pecado fomos concebidos (Sl.50)

O PECADO É DIABÓLICO. A serpente (símbolo do diabo) seduziu a Eva e a Adão para pecarem. É esse misterioso Maligno que nos tenta pecar e até se incorpora na nossa existência, tornando-nos diabólicos ou possessos. Esta maneira de entender o pecado nos levaria a rezar o Pai-Nosso, dizendo livra-nos do mau ou maligno e não de “todo mal”. Os exorcismos feitos por Jesus e ao longo da história pela Igreja sintonizariam com essa explicação.

O PECADO É VIOLAÇÃO DA LEI DEUS. O pecado é um ato de desobediência contra a vontade de Deus, expressada na própria natureza das coisas e de nós mesmos. Esta maneira de interpretar o pecado, na sua dimensão moral, prevalece infelizmente na educação religiosa de todos os povos. Quantificamos nossos pecados pelas vezes que não cumprimos os Dez Mandamentos e derivados destes, por ação ou omissão. Não haveria pecado, nos diz São Paulo, se não houvesse lei. O trágico da lei é que não a podemos cumprir, criando em nós um sentimento de culpa ou “consciência desgraçada”, como disse Freud, que ele qualifica de neurose.

Jesus percebeu esta tragédia na qual o povo de Israel vivia. A interpretação legalista da salvação foi multiplicando o número de normas de conduta até quantificar seus mestres 613 que, se difícil de decorar, eram impossíveis de se cumprir. Kant quis simplificar este problema do pecado moral apelando ao que ele chamou “imperativo categórico” inato dentro de nós, formulado assim: “Age de tal maneira que tua vontade possa ser considerada legisladora universal”. Seria uma outra versão da chamada regra de ouro da Bíblia: “Nao faças aos outros o que não queres que te façam a ti” ou também conforme o princípio ético universal : “Faz o bem e evita o mal”.

H. Kung estudando a ética das diversas culturas e povos, chegou a conclusão de que não existe um consenso ético universal. O pecado, legalmente entendido, seja por uma lei externa ao ser humano ou pelo imperativo da propria consciência , carece de fundamento. Estes dias, na Espanha, o Governo estabeleceu não ser delito insultar, ameaçar, difamar uma pessoa, se esses atos são expressados pelos chamados artistas “raperos” cantando e não apenas proclamados verbalmente. Toda uma ironia.

O PECADO É UMA IDOLATRIA. Ao longo das páginas bíblicas verificamos essa maneira de interpretar o pecado. Pecado é fazer depender ou esperar o ser e a vida fora do Deus único e verdadeiro, Senhor e Criador de tudo quanto existe. Não é a etica dos mandamentos que deve reger nossa vida mas a “etica da fé”, pela qual nos sentimos pecadores existencialmente e necessitados de Salvação.

Os Mandamentos de Deus em Ex.20, não começam dizendo: “Amarás a Deus”, seguido pelos outros nove mandatos, mas com a confissão da fé: “Escuta Israel: O Senhor é teu Deus, o Senhor é um”.

A partir desse ato de fé no único Deus e Senhor, é que toda moralidade tem sentido, pois por nosso esforço, nem podemos estar bem, nem sermos bons. “Só Deus é Santo” e só Ele nos fará santos.

Hegel (sec. XIX) na sua teoria “Evolução do Espírito”, afirma: “Só existe um pecado, que é parar no finito”. Essa é a idolatria que nos priva da verdadeira vida e nos leva fatalmente à morte. Jesus expressou esse pecado de idolatria dizendo, para escândalo de toda razão humana: “Quem não odeia pai e mãe, irmão ou irmã, filho ou filha e a sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Mt.10,37). Esse ódio não é de rancor mas a exclusão radical de esperar a vida fora de Deus, feito homem em Cristo.

É a grande conclusão de At.4,12: Porque não foi dado aos homens outro nome pelo qual possamos ser salvos a não ser Jesus Cristo”.

“Separados de mim não tendes vida” (Jo.15). Pela etica da fé somos libertados do pecado e da morte.

“Deus confitendi est” (Deus tem de ser confessado). ” Porque se confessares com tua boca e teu coração que Cristo é teu Senhor (Deus) serás salvo” (Rm.10,9).

Aquele que crê em Cristo, “nasce de Deus” (Jo.1,13) “e quem nasce de Deus não peca, porque nele está a santidade de Deus” (1Jo.3,9).

Há um princípio teológico que nos pode ajudar a entender melhor o mistério do pecado: “A graça não suplanta a natureza”. Enquanto estamos neste mundo somos existencialmente pecadores. A sensação de impotência, culpa, vazio, dívida, de não realização, de não estar bem, nem sermos bons, nos acompanhará até o fim de nossos dias. Da mesma maneira que esperamos vencer a morte pela Ressurreição, também, o pecado.

Nao seriamos felizes se o sentimento de culpa nos acompanhasse na outra vida. No cemitério deixaremos nossos restos morais e também nossas culpas e pecados. Como o sofrimento, o pecado é catalisador da nossa própria Salvação. “Deus nos encerrou a todos no pecado para mostrar-nos sua misericórdia” (Rm. 3). Seu amor paterno derramado na Criação era insuficiente. Pelo pecado, tornou-se “entranhável” amor materno. “Deus nos fere para curar” (Jó 5). Deus age sub-contrário. “Onde está o pecado, aí está a graça”.

Nunca teremos tempo nem capacidade para entender o que cantamos no Pregão da Vigília Pascal: “Ó feliz culpa (pecado) que tanta glória nos trouxe”.

Lv.13,45-46: “O leproso viverá fora do acampamento”.

A lepra era considerada culturalmente no povo de Israel duplamente maldita: doença contagiosa e sinal dos próprios pecados. Todo leproso tinha de ser expulso (excomungado) da comunidade e condenado a morrer na solidão fora da cidade, à mercê da caridade de alguém que, desde longe, lhe jogasse algum alimento ou agasalho. Ele mesmo, kafkianamente, reconhecia-se culpado do seu próprio mal, por isso, era obrigado a gritar “impuro” toda vez que alguém passava perto dele, evitando seu contágio.

Na Índia, ainda hoje, existe a casta dos miseráveis, paradoxalmente chamada dos “santos ou intocáveis”. Eles aceitam resignadamente sua maldição por causa dos pecados cometidos na sua anterior reencarnação. Por isso se lhes pode dispensar a compaixão, pois seu sofrimento lhe purifica para uma melhor vida na sua próxima reencarnação. Todas as religiões, incluída a professada pelo povo de Israel, interpretavam os males deste mundo como
consequência dos próprios pecados ou de algum dos seus antepassados. Que alívio para todos os povos ter vindo Cristo tirar o pecado do mundo!… Mas só no dia da Ressurreição experimentaremos essa graça.

Como outrora os leprosos, hoje são milhões e milhões de pessoas “excluídas”, excomungadas da
sociedade, condenadas a viver na coroa de espinhos de nossas cidades. Na interpretação que o Talmud faz da Torá ( Lei), se diz que há quatro tipos de pessoas tidas como mortas: os cegos, os leprosos, as pessoas estéreis e os pobres. Todos eles estão privados das bênçãos de Deus. Nós acrescentaríamos os pecadores, “privados da glória de Deus” (Rm.3). Categoria na qual estamos todos incluídos. Daí a necessidade que todos temos de Salvação e, não por nossos méritos, mas pela graça de Deus. Infelizmente, nem sempre os cristãos “confessaram ” essa Salvação. Não só Dante, mas também Santa Teresa de Ávila, contemplaram o inferno lotado de pecadores. Custa-nos acreditar que Cristo veio salvar o mundo. Inclusive, no rito da Consagração, mantemos a fórmula: “sangue derramada por muitos” e não por todos, questionando a Salvação universal e escurecendo a Graça e a Misericórdia de Deus, conforme Se nos revela no Sl.31: “Feliz o homem cujo pecado é coberto”, nem sequer perdoado, pois Cristo o assumiu para si, eximindo nossa culpa deles.

1Cor. 10-11,1: Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo”.

Esta segunda leitura está inserida no contexto do pecado da idolatria. São Paulo afirma que tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém. Por exemplo, podemos comer de todo tipo de carne, mesmo aquelas que a lei de Moisés proibia, no entanto, não devemos comer das carnes sacrificadas aos ídolos. A vida só nos vem de Deus, na pessoa de Jesus de Nazaré, a quem confessamos como Senhor e Salvador. A ética da Fé é que deve presidir sempre nossa existência. “Somos salvos pela Fé e não pelos méritos das obras” (Rm.5) é a grande tese da ética de Sao Paulo.

Mc. 1,40-45: “Movido de compaixão, tocou um leproso e foi curado”.

Violando a própria lei de Moisés que proibia tocar os leprosos, Jesus cura um leproso que lhe implorou de joelhos sua purificação, mostrando assim o novo regime da Graça que nos salva a todos. Não entrareis na Terra Prometida (Reino de Deus) porque sois santos, mas porque Eu, vosso Deus, sou santo (Dt.9). Esta passagem evangélica da cura de um leproso mostra-nos a atitude que todos nós temos de ter diante de Deus pelo fato de sermos pecadores: – É preciso reconhecer que somos pecadores inatos. É mais difícil aceitar esta nossa condição existencial do que sermos santos, por isso justificamos sempre nossos erros, assim como nos sentimos condenados por Deus.
– Como o leproso, temos de suplicar a Cristo sermos curados. Nenhuma oração é mais humana do que dizer constantemente: “Senhor, tende piedade”. A Igreja Católica Ortodoxa faz dela o mantra de todas as horas. No seu rito eucarístico repetem essa oração mais de cinquenta vezes. Também nós a proclamamos várias vezes na nossa celebração. No rito da Penitência, a confissão, na Igreja Ortodoxa, consiste em dizer: “tende piedade de mim porque sou um pecador” e não em contar os pecados, pois estes, mesmo confessados, continuaram conosco logo que saímos da Igreja. Porque somos onticamente pecadores é que pecamos e não vice-versa. Pedir ou confessar o Perdão e a Misericórdia de Deus é a própria Graça da Salvação.
-Confessamos a Deus, não nossos pecados, mas que Ele é nosso Salvador. A Ele pertence todo poder e toda glória para sempre. Por isso, Ele merece nosso amor louvor e adoração.

É interessante a recomendação que Jesus faz ao leproso recém curado: “não contes nada a ninguém, apenas vai e mostra-te ao sacerdote e oferece o sacrifício prescrito por Moisés”. Com essas palavras Jesus revelava que o pecado é um mal maior do que a própria lepra ou qualquer doença. Um mal do qual só Deus nos pode curar, e assim o fará pela Ressurreição. Não por isso, somos dispensados de “cumprir a lei” que rege nossa convivência humana.

A lei é inerente ao pecado. Porque somos pecadores precisamos de normas para poder viver neste mundo na condição de pecadores. A lei é um mal necessário para nossa sociabilidade. Verificado pelo Sumo Sacerdote (o papa do povo de Israel) que estava limpo da lepra, o exleproso era reintegrado na comunidade de Israel de novo.

Uma das coisas que o leproso tinha de levar ao templo após sua cura eram dois passarinhos. Um deles era morto e desagregado diante do Sacerdote e, untando com esse sangue o outro, este era solto, levando assim seus pecados ocultos. Quando nos falta a ética da Fé, a prática religiosa se torna confusa e complicada e nossa Salvação insegura e incerta.

Padre Jesus Priante
Espanha
Reservado os Direitos Autorais
Reprodução permitida, mediante citação do nome do autor.
(Edição e título por Malcolm Forest. São Paulo.)
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