“Paraíso, Saudade ou Esperança?” – Cartas do Padre Jesus Priante

Na década de 1980, Carlos Mesters publicava no Brasil um pequeno e emblemático livro com esse título. Nele desmentia o mito do Paraíso que, porque nunca existiu, nunca foi perdido. No entanto será sempre nossa grande UTOPIA (um “não lugar”) sem a qual nao podemos superar as TOPIAS (situações) deste mundo DISTÓPICO, onde tudo está fora de lugar e não encontramos o descanso e paz.

Todos experimentamos a vida de maneira inquieta. Como afirma Baudelaire, sempre pensamos ser um mais felizes no lugar onde não estamos. “A infelicidade está aí, ao nosso lado” , dizia Schopenhauer, “a felicidade é o que sempre procuramos e nunca encontramos”. Nossa cultura primigênia, segundo o antropólogo Chatwin em “Songlines”, pegadas dos cantos de todos os povos, é o nomadismo.

Nascemos e vivemos a caminho. Não só nós, todo o universo move-se, esticando seu espaço, milhões de quilômetros por hora, sem encontrar repouso. Nada está acabado. Este mundo não é tudo o que será. Tudo navega sem retorno ao infinito. A teoria da Palingenesis, professada por alguns filósofos da antiga Grécia, segundo a qual, a cada 10.000 anos, a realidade nossa e das coisas repetirá o mesmo percurso, que é a mesma teoria de alguns cientistas de nosso tempo sobre a sucessão contínua de novos mundos, é um grande mito. Einstein e Hawking até chegaram a imaginar um tempo curvo que nos devolveria nosso passado. A grande verdade, já constatada por Heráclito (séc. VI a.C) é que “tudo se move”, e essa realidade nos questiona: De onde viemos e para onde vamos? Sò a fé nos brinda uma resposta: “Viemos de Deus e a Deus voltamos”. Sem Deus tudo é noite, e o dia uma luz de artifício. “Fizeste-me , Senhor, para Ti, e meu coração inquieto está até descansar em Ti”, confessava Santo Agostinho.

Outra leitura existencial é mìtica e sem sentido, embora a leitura de nosso retorno a Deus seja também misteriosa a exceder nossa compreensão.

“ASSIM FALA O SENHOR: EIS QUE TRAGO DE VOLTA O MEU POVO”(Jer. 31,7-9).

O Exílio do povo de Israel na Babilônia, assim como sua escravidão no Egito,revelam nossa condição existencial neste mundo. Todos nascemos e vivemos escravos e desterrados e, ao mesmo tempo, destinados a sermos livres e felizes na “terra dos viventes”(Sl.29). Fomos chamados e predestinados por Deus para uma vida eterna e feliz. Levamos essa voz no instinto de vida e felicidade, inato em todo ser vivo. O profeta Jeremias, no século VI a.C. , faz ressoar essa voz no meio do seu povo exilado, dizendo em nome de Deus: “Eis que trago de volta o meu povo”. O Sl.125 ecoa esta alegria: “Quando o Senhor fez voltar os exilados de Sião, ficamos como quem sonha: nossa boca se encheu de risos e nossa língua de canções”. E compara este
paradigmático acontecimento de salvação ao semeador que, com certa tristeza, “chorando”, leva as sementes ao campo, sem saber se as circunstâncias ambientais lhe serão favoráveis. Mas, após a exuberante colheita,”volta exultante trazendo os feixes”.

Viemos a este mundo na dor e nas lágrimas, mas temos de retornar felizes dizendo: “Que alegria quando me disseram: vamos à casa do Senhor”(Sl 122). Se diz que, no Japão, quando uma criança nasce, as pessoas que lhe rodeiam choram e, quando morre, a festejam. Jesus professou esta mesma filosofia existencial: “Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo este mundo e volto ao Pai” (Jo.16,28). E acrescentou: “Eu vou e voltarei para-vos levar comigo” (Jo.14,3). Fazendo de si mesmo nosso próprio caminho. Agora, com Ele, é mais fácil e seguro irmos a Deus, após este nosso exílio.

Deus nos predestinou antes de vir a este mundo para termos Sua mesma vida divina, eterna e feliz. É um dom irrevogável e um porvir irreversível, contrariando a tese de Freud: “Não consta na natureza que fomos programados para sermos felizes”. Nosso futuro feliz não é loteria do deus arbitrário Fortuna, nem conquista prometêica de nossos méritos. Ela é projeto da Criação de Deus, realizado em Cristo Ressuscitado em favor de todos, embora ainda que, por breve tempo, tenhamos de beber as lágrimas de nosso desterro. Temos por certa e segura a Vida Eterna e feliz em Cristo e, ao mesmo tempo, sofremos na presente condição o pecado, a dor e a morte, seguindo a lógica da encarnação de Deus.

Já, mas ainda não.

Oscar Cullmann conciliava esta aparente contradição existencial da Salvação dizendo: “Já, mas ainda não”. Estamos salvos na esperança (Rm.8). Esperança qualificada pelo papa Bento XVI, de “substancial”, isto é, real, segura e certa. Ela nos permite relativizar nossas alegrias e tristezas neste mundo, pois são passageiras, e nos brinda a Vida, imortal e gloriosa, só possível em Deus. Viver sem vida, dizia Santo Irineu (séc. II) é impossível para nós e para Deus. Ele é o Deus de vivos e sua glória é que, Nele, todos vivamos felizes eternamente. Por isso, culturalmente, identificamos o inferno com a morte eterna, sem Deus que, para Ele e para nós, é algo impossível. De fato, Deus não nos dá seu amor e vida separados Dele nem de todas suas criaturas. Seu plano de Salvação é divino, comunitário e cósmico. Nossa vida feliz e a do próprio Deus são incompletas até o fim dos tempos, quando tudo estiver em comunhão com Ele.
No sublime dito brasileiro: “Vai com Deus”, há mais sabedoria do que nas teologias de todos os tempos. Quem vai com Deus leva consigo a Vida, que por ser divina e eterna, nenhum paraíso a precede, nem nenhuma morte a interrompe. Ela está presente e operante em nosso cotidiano como “ação-dom” de Deus, embora, desde nossa condição humana, podemos nos sentir privados dela por causa de nossos pecados. Jesus veio
corrigir essa nossa ótica negativa da Salvação dizendo: ” Eu não vim condenar senão salvar” .” Vim para que todos tenham Vida” (Jo.10,10). ” Em Cristo não há mais condenação” (Rm.8,1). A condenação se faz presente na consciência dos que carecem de Fé. Orígenes (séc. III) considerava a condenação como um sentimento pedagógico para nossa propria conversão ou retorno a Deus; sem o inferno o Céu se tornaria menos importante e desejável. “Ganha-se a Luz desde o inferno”, diz Loon Felipe, poeta espanhol exilado no México. Kierkegaard (séc. XIX) via na angústia e no desespero a origem da Fé. Quando tocamos nosso limite, resta-nos esperar por Deus. Ele existe, diz Santo Tomás de Aquino, precisamente porque existe o mal, para dele nos libertar.

A glória de Deus escurece provisoriamente na sombra da cruz à espera de brilhar radiante na Ressurreição. Não só a Ressurreição é o fundamento da nossa Fé , como defende São Paulo, também sua paixão e morte. Sem a crucifixão de Cristo, Sua Ressurreição seria mais uma utopia, fruto de nosso desejo imperioso e instintivo de viver. O realismo da nossa Salvação consiste em que, na nossa condição humana e cósmica, sujeita ao pecado, à dor e à morte, Cristo a faz Sua na Sua morte de cruz, como Deus encarnado. E na Sua Ressurreição todos somos vivificados e divinizados gloriosamente.

A Ressurreição nos revela a Vida além da morte. A Encarnação mostra-nos que essa Vida para a qual fomos criados é a mesma Vida de Deus. Impossível até de ser pensada por nós, mas vontade inquebrantável de Deus, como nos revela a carta aos Hebreus.

“TU ÉS MEU FILHO, HOJE EU TE GEREI” (Hb. 5,1-6)

Se essa filiação divina fosse exclusiva de Cristo, dita afirmação não seria verdadeira, pois sendo Cristo o Filho eterno de Deus Pai, não poderia ser gerado “hoje”, na dimensão histórica do tempo. Somos nós, portanto, os que em Cristo somos gerados filhos de Deus, conforme se nos revela Jo.1: “Aquele que recebe a Cristo, torna-se filho de Deus. Não nascido da carne e vontade humana, mas do próprio Deus”. E o ratifica na sua carta: “Já somos filhos de Deus, embora isto seja algo não manifestado ainda” (1Jo.3,2). Nossa divindade é radiação que ocorre após a morte, na condição de Ressuscitados. Custa-nos acreditar nessa grandeza. Seu mistério nos parece mentira embaixo da árvore da Cruz e neste vaso de barro da vida terrena. A dicotomia natural e sobrenatural foi abolida em Cristo. O teólogo francês, Blondel (séc.XIX) e no nosso tempo Rahner, consideram o sobrenatural e transcendente uma essencial e constitutiva dimensão humana. Depois de Cristo não é mais possível sermos ôntica e antropologicamente ateus. Tertuliano (séc.III) dizia: “O homem é naturalmente cristão” e, se de Cristo, também é de Deus.” Somos de Deus e a Ele pertencemos” lemos em um dos salmos. Não é Deus quem se separa de nós por causa de nossos pecados, mas nós que nos “sentimos” separados Dele, como revela a Parábola do Filho Pródigo. O pai não aceita a confissão do seu filho ao retornar à sua casa: “Não mereço ser chamado e tido como seu filho”.

No passado e ainda hoje no Brasil, havia uma introduçao na Eucaristia, antes da recitação do Pai-Nosso : “Seguindo os ensinamentos de Jesus ousamos dizer: Pai Nosso”. De fato, é uma ousadia chamar Deus de Pai, sendo pecadores. Mas, a Graça de Deus transcende todo cálculo humano. “O Espírito (Graça) clama em nosso espírito: “Abba, Pai” (Gl.4,6)

“SENHOR, QUE EU VEJA” (Mc. 10,46-52)

O episódio da cura do cego de Jericó foi usado na Igreja dos primeiros séculos como paradigma catequético da iniciação cristã no itinerário da Fé. Para pedir o dom da Fè, que nos concede o Batismo, é preciso sentir-se cego, não encontrar sentido na própria vida, guiada pela razão. O profeta Isaías diz que todo ser humano nasce e vive nas trevas, “como cegos apalpando as paredes”. (Is.59,10). Há uma cegueira da mente e uma outra não menos grave no coração. Buscamos a verdade e razão das coisas, mas encontramos mais perguntas do que respostas. Ignoramos o verdadeiro ser do que existe, seu porquê e para quê. Como disse Platão, percebemos apenas sua sombra. Por que há o ser e não o nada? Que somos, nós, Deus e o mundo? De onde viemos e para onde vamos? Há vida após a morte? Por que lutamos pela vida tendo por certa e inexorável a derrota da morte? Por que existe o mal? Se Cristo veio nos salvar, por que demora-se nossa Salvação do pecado, da dor e da morte, inclusive, até receamos nossa possível condenação? Se a Fé é um dom de Deus, capaz de
transportar montanhas, por que não temos essa Fé e vivemos dominados pela fragilidade e pelo medo?… No coração, sede dos sentimentos, também somos cegos. Tropeçamos continuamente uns nos outros. Nosso convívio, no lar, nas cidades e no mundo, é conflitivo. Escrevemos a história humana com sangue derramado pelo ódio, pelas guerras, injustiças e pela violência. Por que não nos amamos e somos fraternos? Por que experimentamos nossa existência de maneira culpada, incapazes de evitar o mal e fazer o bem? Nossa cegueira é, pois, existencial, maneira de ser neste mundo.

Confirmados por quatro paredes

Jaspers (séc. XX) diz que todos nós vivemos confinados por quatro muros intransponíveis: da dor, culpa, luta pela vida e da morte. Nossa única saída é olharmos para o alto. O cego de Jericó, que é cada um de nós, nos faz gritar: “Jesus, tem compaixão de mim e faz que eu veja”. Nenhum outro nos pode conceder a visão ou sentido da vida, como Ele mesmo declarou: “Eu sou a Luz do mundo. Quem crê em mim tem a Luz da Vida” (Jo.8,12). O próprio Abraão, pai da fé, almejou ver essa Luz (Jo.8). Em Ap.1,7 vem profetizado que todas as nações verão a Luz de Cristo. Sem Ele, nós e o universo, carecemos de olhos, jazemos mergulhados numa interminável noite, como reconheceu Nietzsche após ter proclamado a “morte de Deus”. Precisamente, Deus, do sânscrito, “di”, significa luz ou dia. Nossa maior cegueira consiste em acreditar que vemos com os olhos da “deusa razão”. Por isso, Jesus diz aos que assim pensam: “Eu vim para que os que veem não vejam e os que não vêem vejam.” “E quem me vê a Mim, vê a Deus” (Jo.14,19). O olhar que nos permite ver a Luz divina de Jesus neste mundo é a Fé, um ato de liberdade pelo qual decidimos radicalmente esperar a Vida só de Deus, descartando qualquer outra possibilidade, teórica ou prática. Nesse sentido, o papa São Pio X dizia que a Salvação que a Fé nos concede têm de ser objetiva e histórica, nem sequer a esperança dela nos serve. Temos de nos sentir já neste mundo filhos de Deus, portadores da Vida Eterna. “Antes eu acreditava, agora só creio em Deus” (Chesterton).

Vejamos, brevemente, o itinerário da nossa Fé através da figura do cego de Jericó.

“O CEGO GRITOU: JESUS TEM COMPAIXÃO DE MIM.”

É o grito que, numa situação limite, tem até os ateus clamando: “Ai, meu Deus!” A Fé nasce da angústia existencial, segundo Kierkegaard. É preciso, como Jacó, sentir-se ferido de morte na noite da razão para se assegurar ao pescoço de Deus. Todos acabaremos experimentando essa cegueira, antes ou depois, ainda que seja no desespero. Um dos turistas espaciais dos USA, dizia estes dias: “Quando ao sair do espaço terrestre, seu manto azul desapareceu, vi a Deus. Talvez seja a experiência da morte, trevas que dão lugar à luz”. É claro que é melhor ver já, no caminho desta vida presente, encontrando pela Fé seu verdadeiro sentido.

“ALGUÉM DISSE AO CEGO: ELE TE CHAMA. DEIXANDO SEU MANTO, ELE DEU UM PULO E FOI ATÉ JESUS.”

Aquele manto era sua própria casa, como podemos ver nos pobres que moram nas ruas. A Fé exige uma radicalidade de renúncia total até de nós mesmos, para mergulhar com todo nosso ser em Deus. Pela Fé, tudo o que temos o recebemos de Deus; sabemos então viver, diz São Paulo, na abundância e na indigência, nas alegrias e tristezas. Tudo se torna relativo, porque Deus é nosso único absoluto. Não é fácil dar esse pulo do cego de Jericó, mas todos daremos.

“JESUS LHE DISSE: QUE QUERES QUE EU TE FAÇA? – QUE EU VEJA, RESPONDEU O CEGO.”

É o mesmo diálogo que tivemos no rito do Batismo: “Que pedes?”- “A Fé”. O que te dá a Fé”- A Vida Eterna”. O batizando recebe do Círio Pascal, a Luz de Cristo, uma vela acesa, símbolo da Fé a dar sentido e esperança à sua vida. Por isso, os recém batizados eram chamados “iluminados”. Antes eram cegos, agora podem ver no meio da noite do sofrimento, do pecado e da morte.

“O CEGO, VENDO, SEGUIU JESUS PELO CAMINHO.”

Jesus ia a Jerusalém, não para fazer turismo nem ver milagres, mas morrer na cruz onde se apagam todos os sois deste mundo. Só aquele que tem a Fé cruza o vale da morte sem temer mal algum, pois a Fé nos concede a Vida Eterna e gloriosa de Cristo Ressuscitado. Aparentemente, afirma Santo Agostinho, não há diferença entre aquele que crê e quem não cre. Ambos vivem neste mundo, mas um é vidente e o outro cego. Um espera o amanhecer e o outro é vítima do desespero da noite. Consola-nos a promessa de Jesus: “Eu vim para que os que nao vêem, vejam”. Finalmente, todos veremos a mesma Luz, que é Deus.

“TU ÉS MEU FILHO, HOJE EU TE GEREI” (Hb. 5,1-6)

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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