O Reino de Deus – Cartas do Padre Jesus Priante

O Mistério da Salvação, esta esperança feliz que dá sentido à nossa árdua luta pela conquista da vida, é expressado através do conceito “Reino de Deus” ou “Reino dos Céus”.

Esta expressão aparece frequentemente na Bíblia. Jesus fez dela o centro da Sua pregação. Ele não veio idealizar ou construir o melhor dos mundos ou reinos terrenos, mas um outro, glorioso e feliz, além de todo possível progresso histórico. Culturalmente, o termo “Reino” tem duplo sentido: territorial e de domínio. Todo rei reina em determinado país ou território, e exerce seu domínio sobre seus habitantes e contra possíveis inimigos. O Reino de Deus ou dos Céus alude a uma outra realidade, não precisamente territorial ou espacial, mas a Novos Céus e Nova Terra, “O Mundo que há de vir”, como recitamos no Credo. Uma realidade invisível que nem sequer podemos representar ou imaginar. O aspecto de domínio que seu Rei, Deus em Cristo, tem implica a derrota de todos os possíveis inimigos, que sintetizamos em dois: o pecado, com todo seu imenso exército de maldades, injustiças, vícios e perversidades; e a morte com um exército não menor de males físicos, psíquicos, sociais, cósmicos e diabólicos.

Se dependesse de nós, nenhum reino ou reinado seria possível. Todos nascemos na luta, fatalmente já derrotados. Por isso, até o fim da nossa vida e da história, suplicamos a Deus: “Venha a nós o vosso Reino”, “O último inimigo a ser derrotado será a morte”.

EXISTE O CÉU?

Como território ou lugar certamente não. Santo Tomás de Aquino (séc.XIII) dizia que o Céu, como lugar, seria menor do que a ponta dum alfinete, mesmo assim nele seria possível celebrar um festivo banquete, com dança incluída, com trilhões de pessoas e anjos participando e, ainda assim, sobraria espaço para trilhões a mais de comensais. O Céu é o próprio Deus em Quem tudo será para sempre. O Céu é pois um Mistério da nossa Fé, sobre o qual nossa razão busca alguma explicação. Alguns teólogos consideram que a presente crise de Fé de nosso mundo secularizado é devido a uma crise filosófica ou de pensar metafísico, além da realidade física ou experimental.

Jostein Gaarder em seu Best-seller “O Mundo de Sofia” (1991) afirma que 99% do povo, em relação ao conhecimento profundo e filosófico da realidade, é semelhante a quem passa a mão sobre o pelo de um coelho sem tocar seu corpo, real e vivo. É carente do saber filosófico e metafísico. Não existiria diferença entre um coelho vivo e um outro de pelúcia ou de brinquedo. Para quem assim passa a vida pensando existir apenas o que seus sentidos podem experimentar, o Céu é reduzido ao firmamento das estrelas que, também, por serem inacessíveis, são um escasso passatempo de uma noite de verão. Nossa razão, entretanto, postula a existência do Céu, da mesma maneira que é postulada a existência de Deus para entender “razoavelmente” este mundo e nossa existência.

O ser das coisas nos remete ao Céu. Todos conhecemos o que é uma batata, mas ninguém viu nem pode ver neste mundo “a batata” em suas mais de 400 espécies. Em francês recorre-se ao partitivo “du”. Um parisiense não vai à padaria comprar pão, mas “du pain”, algo desse pão que todas as padarias do mundo jamais podem fabricar e ter.

Platão (sec. IV a.C) pensando metafisicamente, teve de apelar a um outro mundo, o “Mundo das Ideias”, no qual existem realmente as coisas. Ali, segundo ele, encontraremos o pão, a batata e cada uma das coisas, que neste mundo são meras sombras. E foi mais longe na sua reflexão, pois nesse universo das ideias, a ideia do Bem seria o oceano de todas as ideias. Nada mais parecido ao que chamamos, pela Fé, Céu ou Deus. Por isso Santo Agostinho disse de Platão ter sido um “pre-cristão”. Diferente de Platão, nós cristãos, vemos o Céu não como meta a ser atingida fora deste mundo, mas como a transformação da própria Criação, presente e no porvir.

Jesus, referindo-se ao Reino dos Céus disse “estar próximo” e também “no meio de nós”. É objeto da nossa Fé, “que é a maneira de ter o que esperamos e de conhecer o que não vemos”. (Hb.11,1)

A ciência postula o Céu. Reconhece que apenas 5% da matéria é visível, 95% é “matéria escura”. O invisível também existe. Os corpos visíveis são experimentados sensorialmente enquanto constituídos por três dimensões. Se apenas tivessem duas, tudo se tornaria plano e inerte, irreal, virtual, como figuras numa tela. E se esses corpos tivessem apenas uma, quatro ou mais dimensões, tudo seria invisível. Por isso, considerando que o tempo seja, como pensou Einstein e Hawking, a quarta dimensão da realidade, as coisas no seu passado ou seu futuro não se tornam presentes, só as podemos representar pela imaginação de maneira irreal. O eterno e o infinito, dimensões do Céus, dão ser e sentido ao mundo que conhecemos. Quando o Céu está escuro, a terra fica em trevas. Sem uma visão celeste ou metafísica, como diria Marx, “tudo o que é sólido desmancha-se no ar”. O Céu é o absoluto da realização humana e de toda a Criação. É a plenitude do ser, além do tempo e do espaço.

“TOMAREI UM BROTO DA COPA DO CEDRO MAIS ALTO E O PLANTAREI NO MONTE DE ISRAEL. SEUS GALHOS CRESCERAO E TODOS OS OS PÁSSAROS SE ABRIGARAO NELES” (Ez.17,22-24)

Esta profecia, proferida no século VI a.C por Ezequiel durante o exílio do povo de Israel na Babilônia, anunciava a restauração do sonhado reino de Davi, assim como será sempre uma profecia viva para todos os tempos em favor de cada pessoa e povos.

Depois de toda tragédia, existe sempre um renascer. Mas nenhum renascimento é permanente neste mundo. É um eterno “samsara” (ciclo eterno de morte e vida), como o Hinduísmo percebe a realidade a nos tornar cronicamente infelizes. Precisamente, na religião hinduísta, a meta que persegue sua fé é a libertação do “samsara” através da meditação ou abstração deste mundo material e sensível. É necessária uma outra realidade,que chamamos Céu. Também esse povo hindu,como nós, almejam um outro Reino ou condição de existir.

O Budismo o chama Nirvana. O Taoísmo, céu ou Tao. Dificilmente existe algum povo ou pessoa que não sonhe num utópico “shangrilá” ou Paraíso.

Sob a alegoria de um agricultor que planta um pequeno galho e espera seu crescimento, Jesus Cristo se nos revela que o Reino de Deus foi implantado na terra no pequeno galho da humanidade de Jesus de Nazaré, para se tornar “Árvore da Vida” pela sua morte e Ressurreição. Nossa Árvore e nossa Ressurreição e do universo.

Esperamos Novos Ceus e Nova Terra, O Reino dos Céus, no qual alcançaremos a Vida Eterna e Feliz, sonho de todos os sonhos.

À Espera do Reino

Nos tempos de Jesus, existiam quatro seitas ou grupos de judeus que esperavam de maneira diferente o Reino de Deus. A seita dos fariseus, que pensavam poder acelerar sua vinda através de longas penitências, jejuns e pelo rigoroso cumprimento da Lei Mosaica. Os zelotes,que pretendiam conquistar esse Reino pela força das armas, no seu momento, contra o Império Romano, seu opressor. Os apocalípticos ou essênios, dos quais fez parte João Batista, que esperavam o Reino de Deus de maneira iminente, quando seriam castigados os maus e premiados os bons. Finalmente, estavam lá os saduceus, materialistas, que esperavam um paraíso ou céu terrestre. No século XII, Maimonides, filsosofo judeu e espanhol, reafirmava essa crença. Para ele, o Reino dos Céus seria fruto do progresso humano. Desta seita, não só a maioria do povo judeu, como a maior parte dos povos, são seus adeptos. É o sonho positivista da ciência de nossos tempos. Entretanto, tudo se pode saber ou fazer, mas a vida, como afirma Wittgenstein, nem sequer é toda assim. A lei universal da Termodinâmica da Entropia, que a própria ciência reconhece, seria o maior argumento contra todo reino terreno. Tudo está fadado a caducar. A única energia que nos torna imortais é a Ressurreição de Cristo. E essa energia vital não é deste universo. O Reino de Deus não terá fim.

“ENQUANTO ESTAMOS NESTE CORPO (VIDA TERRENA) ESTAMOS FORA DA NOSSA MANSÃO (REINO DE DEUS). CAMINHAMOS PELA FÉ E NÃO PELA VISÃO” ( 2Cor…5,6-10)

Aparentemente, o Reino de Deus, implantado na terra por Cristo, é um mito. De fato, o pecado e a morte com seus exércitos reinam sobre nós. Os brotos do Reino dos Céus, como foram os milagres e, particularmente, a Ressurreição de Jesus ficam ocultos na floresta dos males deste mundo.

No Alcorão, Mohammad, que também reconhece a Jesus como um grande mensageiro divino a preparar sua vinda como “último profeta”, chama “evidências” os milagres de Jesus. Mas jamais, Mohammad e seus discípulos, os muçulmanos, verão a Jesus crucificado como “Mensageiro” de Deus. Por isso, negam esse fato, dizendo que não foi Jesus quem foi crucificado, mas um sósia ou alguém parecido com ele. De fato, na cruz morrem todos os sois e reinos deste mundo.
“Caminhamos pela Fé e não pela visão”.

Os milagres e as maravilhas da Criação são apenas pequenos sinais, meros relâmpagos, na escuridão da tempestade de nossos males.

O filósofo inglês Russell, ateu, dizia que, quando ele chegar ao Céu, se é que Ele existe, pedirá desculpas a Deus por não ter acreditado: “Sorry, mas mas eu nunca lhe vi”.

Aquele que crê verdadeiramente tem por mais certa a Vida Eterna do que a vida que sente no corpo neste mundo. E o bem e a felicidade que o ou a espera supera a todos os paraísos siderais. Para o crente, “o Céu não pode esperar” nem sequer na alegria do mais romântico e feliz casamento. São Paulo nos exorta nesta carta a viver neste mundo praticando o bem. Não porque isso nos faça merecer o Reino dos Céus, mas porque, crendo e esperando esse Reino, podemos ser melhores, mais humanos e bons para com todos. É o Céu que faz da terra um navio a cruzar o mar da vida certos de chegarmos ao porto dos nossos sonhos.

O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE A UMA SEMENTE LANÇADA NA TERRA (Mc. 4,26-34)

O Reino de Deus vem a este mundo à maneira duma semente, que morre para germinar, crescer e frutificar. O maior favor que podemos fazer a uma semente é enterrá-la e deixá-la morrer. Penso que dispensaria toda filosofia ou saber humano sobre o mistério da vida, única realidade que importa, se tivéssemos em casa à vista uma semente germinando. É a melhor tradução da Páscoa, única chave que nos permite ler o sentido da nossa existência e a história do mundo. São Paulo fez esta sábia leitura : “Enquanto o homem exterior (terreal) vai caminhando para sua ruína, o homem interior (celestial) renasce e renova a cada dia” (2Cor 4,16).

O Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica, “Gaudette et Exultate”, alegrai-vos e exultai (2018), diz que nossa vida, já celestial pela Fé, é feliz porque Cristo é Rei, triunfante sobre todo o mal. Mas, existem duas atitudes não cristãs que nos impedem de desfrutar dessa feliz esperança: O GNOSTICISMO, que fundamenta a Salvação no conhecimento das verdades acabadas dos dogmas, na doutrina mais do que na Fé na pessoa de Cristo. O Reino de Deus seria reduzido a ideias abstratas que pretendem domesticar racionalmente o Mistério de Deus e da Sua Salvação, excluindo dela os “heterodoxos ou hereges”. Foi assim que no passado pensou “excomungando” todos os que não se afinaram com a doutrina oficial da Igreja. A Fé, que nos dá a Vida Eterna, não consiste num conjunto de verdades ou de mero conhecimento, mas na confiança e esperança que depositamos na pessoa de Jesus Cristo, como nossa única Salvação. O outro obstáculo, que nos priva da alegria da nossa Salvação, afirma o Papa é O PELAGIANISMO, do teólogo Pelágio (séc. V) , mais judeu do que cristão, que fazia depender a Salvação dos méritos de cada um e não da graça de Deus: “O Reino de Deus pertence aos santos e não aos pecadores. Estar na graça de Deus é estar sem pecado.” Isto é algo tão impossível como incerto.

Domingo passado, no Angelus, o Papa, falando da Eucaristia disse: “É o fármaco e pão dos pecadores”. Todos nós fomos educados na Igreja com esses dois preconceitos que nos impedem de nos alegrarmos e exultar pelo triunfo sobre o pecado e a morte com o Reino de Deus. Temos necessidade, dizia o Papa Paulo VI, de sermos reevangelizados.

A segunda comparação ou parábola sobre o Reino de Deus : “grão de mostarda, a menor das sementes, semeada, que cresce deitando grandes ramos, nos quais todas as aves do céu se abrigam” é a resposta a toda errônea mentalidade gnóstica e pelagiana.

Alude á primeira leitura, onde também o profeta Ezequiel anunciava a salvação para todos os povos, representados pela figura de todos os pássaros que vem encontrar abrigo nos galhos crescidos a partir dum minusculo broto. Ou nos salvamos com todos ou não nos salvaremos, nenhum. “

Eu vim para que todos tenham vida” (Jo.10,10). Um grande sinal dessa verdade se encontra no emblemático Estado do Vaticano, o menor de todos os Estados do planeta, mas politicamente igualmente soberano a USA ou ao Brasil. Embora nossa Igreja tenha de ser mais jerusalemita do que romana, será Roma, até o fim do mundo, o epicentro, a mostardeira, à qual virão todas as nações.

Na Espanha se diz popularmente: “todos os caminhos conduzem a Roma”. No passado, esse sinal apenas do Reino de Deus, se confundia com o poder de um reino terreno, por isto, o Reino de Deus ficou menos visível ou, melhor, menos Evangélico e de Cristo.

A Igreja deixa de ser sinal e instrumento do Reino de Deus quando coloca-se no lugar de Cristo. Por isso o Concílio Vaticano II declarou:” A Igreja não substitui a Cristo”. É Cristo quem nos faz cristãos e não nós a Ele. O Reino é dele em favor nosso.

“VENHA A NÓS O VOSSO REINO”

Estas palavras que recitamos mecânica e inconscientemente no Pai-Nosso, são uma entre outras tantas adormecidas em nós que precisamos despertar. Para isso, precisamos distinguir Reino, reinado e Rei. Cristo é Rei, ele assim o afirmou diante de Pilato, que até o reconheceu, ordenando escrever na cruz INRI (Jesus Nazareno, rei dos judeus). Teria sido mais exato dizer Rei do Universo. Mas seu Reino não é deste mundo, por isso, esperamos ainda seu “Regência” sobre o pecado e a morte, no Céu, para além deste mundo. É o que pedimos no Pai – Nosso: venha ou chegue ate nós vosso Reinado, que tem o mesmo sentido de “Santificado seja o vosso nome”, isto é, faz que teu nome (pessoa) seja glorificada pela vitória final sobre todo mal.

De momento, nascemos e passamos a vida em permanente luta, embora sabendo que temos em Cristo garantida nossa vitória, pois Ele é Rei e seu Reino é universal e para sempre, mas seu “Reinado” ainda não chegou ao seu fim. Caberia aqui uma pergunta: Por que esse “Reinado” ou Reino se demora?… O cientista e teólogo francês Teilhard de Chardin, respondia, reportando- se à mesma resposta que os rabinos (mestres) dão sobre a longa escravidão sofrida no Egito, por mais de 400 anos. O povo ficou todo esse tempo escravo, dizem os mestres judeus, porque o seu desejo de libertação era pobre ou não suficientemente desejado. Da mesma maneira, afirma Teilhard de Chardin, Cristo e seu Reinado não chegaram ainda porque não o almejamos suficientemente. Outros reinos são mais esperados e queridos do que o Reino de Deus. No dia em que a humanidade desejar e esperar esse Reino, à maneira de densa nuvem, nosso desejo, como água, fará precipitar sobre a terra o Reino e o Reinado de Cristo.

Recentemente uma senhora cristã, mãe de quatro filhos, residente na cidade de Belém, da Palestina, questionada por que não se mudava para um outro país, tendo posses para poder fazê-lo, onde ter uma vida mais segura e melhor, disse: “Não o faço porque espero aquí a vinda de Jesus e não quero que, ao chegar, não tenha ninguém para recebê-lo”. Maravilha! Com essa Fé e esperança,”para já”, é que temos de esperar e dizer cada dia: “Venha a nós o teu Reino”. Oxalá cresça a nuvem deste desejo, acelerando a vinda de Cristo. “Vem, Senhor Jesus” . “Venha o teu Reino”.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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