O Mistério, ar que nos permite respirar – Cartas do Padre Jesus Priante

O termo Mistério tem duplo sentido: o que é secreto e o que está além da nossa capacidade racional de entender e de sermos nós mesmos. Sem nossa abertura ao Mistério, afirma Gabriel Marcel, nossa vida torna-se irrespirável. A realidade e a verdade das coisas existentes, assim como dos fatos, é superior à nossa possível compreensão humana.

Conhecemos apenas as aparências, mas não a realidade em si mesma. Continua válido o princípio aristotélico: “Nada está no entendimento, sem antes passar pelos sentidos”. O
mágico conhecimento que Aristóteles pensou obter pela milagrosa “abstração” da mente, capaz de capturar a “substância” ou realidade profunda das coisas, é mais conjectura e ilusão do que verdade. De fato, conhecemos, por exemplo, os objetos feitos de madeira (uma mesa, cadeira, armário ou tábua) mas não o que é a madeira. Um francês, seguindo esta tese do mistério da realidade, não vai à padaria comprar pão sem a faca do partitivo “du”, para poder cortar uma porção do “pão” que todas as padarias do mundo não podem ter ou fazer. A “substância” ou realidade do pão em si mesma não cabe nos nossos sentidos nem na nossa razão. Este exemplo aplica-se a todo ente. Santo Tomás de Aquino conta que certa pessoa dedicou 30 anos para conhecer o que era uma formiga, e acabou confessando no fim da sua árdua pesquisa ignorar seu ser mais ainda do que quando começou. “Sei que nada sei”, era a grande convicção do pai da consciência, Sócrates (séc. V aC) .

Nicolas de Cusa (séc. XIV) chamou essa sabedoria socrática “douta ignorância”. Popper professa essa mesma ignorância científica, dizendo que toda verdade é “falseável”, isto é, o que hoje sabemos tem de ser desmentido amanhã. Tudo é mistério porque tudo existe e subsiste em Deus, maior do que nossa razão, do que nós e do mundo que habitamos.
Há dois enigmas ou mistérios que não podemos desvendar: a Criação e a Salvação ou, de outra maneira, a origem e o fim da realidade existente. Por que há ser e não nada? Como e para que veio à luz o ser das coisas que chamamos universo? Como se acendeu a sublime faísca da vida? Por que tudo o que conhecemos caduca e morre? De onde viemos e para onde vamos?

Por que e para que existe o mal? Tudo quanto existe abisma-se no Mistério. Ignoramos sua origem e sua finalidade última. O que temos por certo é que, nós e este mundo que conhecemos, tem de ser de outra maneira. Atribuir a origem do universo a uma casual explosão de uma bola de gude de incomensurável densidade, como pretende explicar a teoria do Big-Bang, é o maior dos mitos e contrário à toda ciência. Mas a crença num Deus Criador que do nada fez tudo quanto existe, também mergulha-nos no mistério, pois um Deus que só pode ser poderoso e bom, jamais poderia ser racionalmente autor do mal. Este mistério chamado da “iniquidade” nos acompanhará até o fim dos tempos. “Por que existe o joio (mal) no meio do trigo (bem)? ” perguntaram os discípulos a Jesus. Ele limitou-se a dizer: “Um inimigo fez isso”. Mas quem e com que poder esse misterioso inimigo faria isso?. Um deus mau negaria a existência do Deus bom, pois nenhum deles seria Deus, limitando-se mutuamente o poder . Topamos assim com esse outro grande Mistério, o Mistério da Salvação.

Atribuir o mal ao pecado de Adão ou dos anjos diabólicos, carece de todo fundamento racional. Uma simples criatura, terrena ou celestial, não teria capacidade para produzir tamanho mar de lágrimas que conhecemos.

A Salvação, explicada em termos de reparação ou redenção duma ordem paradisíaca perdida pelo pecado, para salvar a “justiça” de Deus, compromete seu amor e a sua bondade. Entender o mal como “carência do bem” em um mundo ainda inaacabado seria mais coerente e racional, mas nos levaria a perguntar: por que Deus não criou o mundo pleno de ser e vida desde sua origem?… O mistério continua e ainda fica maior com a vinda de Jesus Cristo, com a única finalidade de nos Salvar. Por que Deus se fez homem a morrer crucificado, impotente, acusado de blasfemo e malfeitor? Nenhuma explicação racional desvenda esse mistério. No entanto, assim como um mundo não criado por Deus não pode ser pensado sensatamente, menos ainda a Salvação desse mesmo mundo do seu mal através de um Deus crucificado, conforme se nos revelam as leituras deste domingo.

“QUEM PODERIA CRER NO QUE NOS FOI REVELADO?… DEPOIS DOS SEUS SOFRIMENTOS E MORTE, O SERVO DE DEUS VERÁ A LUZ E SERÁ CUMULADO DE VIDA” (Is. 53,1-11).

O Mistério da Salvação revelado por Deus ao profeta Isaías carece de toda lógica racional . Como é possível que nos venha à saúde através do mesmo veneno do pecado, da dor e da morte? Em Jò 5, o escândalo ainda é maior: “Deus fere para curar” E São Paulo concorda com este absurdo dizendo: “Deus nos encerrou no pecado para ser misericordioso conosco” ( Rm.3).

O profeta Isaías inicia este paradoxal poema ou cântico do Mistério da Salvação perguntando o que não podemos entender nem mesmo pela Fé: “Quem poderia crer?” No entanto, o Messias, o mesmo Deus na pessoa de Jesus de Nazaré, encarnou esta profecia e Nele ela foi cumprida, carregando nossos pecados, nossas dores e mortes, para serem transformados gloriosamente pela Sua morte e Ressurreição. Esta, nos diz Sao Paulo, é a única razão que fundamenta nossa Fé. Mas, o Mistério da Salvação continua do mesmo jeito. Cristo nos Salvou na Sua paixão, morte e Ressurreição, mas este drama permanece, com maior intensidade se cabe na nossa existência e no mundo que habitamos. O sol da Ressurreição que apenas “transpareceu” aos olhos dos discípulos de Jesus e a outras pessoas de Jerusalém na manhã de domingo após sua crucifixão continua oculto nas nuvens do pecado, da dor e da morte que paira sobre nós. Racionalmente, todos teríamos os mesmos argumentos para crer ou não crer, pois a Salvação, que tornou-se fato em Cristo, só será desvendada para nós no fim da nossa vida terrena e, no fim dos tempos, para toda a Criação. A posteriori, da mesma maneira que uma criação sem seu Deus criador torna-se mais enigmática e escura, também, se não nos abrimos ao mistério da Salvação de um Deus crucificado, morto e Ressuscitado, nossa existência fica asfixiada, vítima do pecado, da dor e da morte que não podemos vencer. É bom que exista um Deus criador e que este mesmo Deus seja também Salvador. Ambos mistérios alongam-se no horizonte da esperança que nos reporta a uma vida eterna e feliz em Deus. A Bíblia não nos revela o porquê do sofrimento da vida presente, mas sim o valor e a finalidade derivados do mesmo, que é nossa Salvação. Jesus o qualificou de “necessário” (Lc.24) e Sâo
Paulo o ratifica: “porque é através de muitos sofrimentos que entraremos na Vida Eterna”.

A Salvação se torna mais problemática e misteriosa quando desvinculamos os dois pólos que , unidos, a tornam luminosa: o polo negativo do pecado, dor e morte; e o polo positivo da Ressurreição. Se ficarmos apenas na tragédia da vida terrena, sujeita a todo tipo de mal, a angústia e o desespero são nossa única saída. “Quem não se angustia está de má fé” dizia Sartre. E São Paulo, ele nos considera as criaturas mais desgraçadas da Criação se vivermos apenas para este mundo. Também não podemos ficar no triunfo glorioso da Ressurreição, que só temos, embora de maneira segura e certa, no claro-escuro da esperança. Por isso, segundo o grande teólogo alemão Von Balthasar, o símbolo mais emblemático e sublime do Mistério da nossa Salvação é o
Círio Pascal. Nele aparece a luz que surge da matéria inerte da cera, significando a vitória do pecado e da morte em Cristo Ressuscitado.

No entanto, nesse mesmo Círio Pascal, são inseridos cinco graus de incenso, símbolos das cinco chagas de Cristo crucificado, para nos revelar que, mesmo já salvos, dor, pecado e morte permanecem em nós e no mundo, que somos seu Corpo, até o fim dos tempos, quando toda a Criação seja revestida de glória, livre de todo mal. Esse final feliz, inaugurado na pessoa de Jesus de Nazaré, após sua morte, acontece em cada um de nós ao deixarmos este vale de lágrimas. A Salvação precisa passar por esse vale escuro do sofrimento e da morte, mas unidos a Cristo. Seu morrer é nosso morrer e sua Ressurreição é a nossa Ressurreição. Esta leitura pascal, ainda que misteriosa, é a única possível para dar sentido à nossa existência e ao mundo que habitamos.

Se Cristo não ressuscitou e nós com Ele, vã é nossa fé e absurda a nossa vida. Mas sem a Sua morte de cruz, a Ressurreição seria mito e ilusão. A Salvação é essencialmente escatológica, refere-se ao fim da História, pessoal e universal.

“TEMOS UM SUMO SACERDOTE,QUE ATRAVESSOU OS CÉUS, JESUS, FILHO DE DEUS… PERMANEÇAMOS FIRMES NESSE FÉ… E APROXIMEMOS-NOS DO TRONO DA GRAÇA” (Hb.4,14-16).

Embora com reminiscências de uma mentalidade religiosa, inerente ao ser humano na cultura de todos os povos que ainda não conhecem Cristo, que entendem a Salvação como uma reconciliação ou “religação” com Deus através de sacerdote ou mediador, o texto nos revela o Mistério da Salvação de maneira mais sublime, não pelos nossos méritos, mas pela graça de Deus , que é Cristo. Ele atravessou os céus no dia da Sua Ascensão e nos leva consigo, para “estarmos onde Ele está” (Jô.14).

O papa Leão Magno (séc.V), comentando o Mistério da Ascensão de Jesus, diz que este fato, presenciado por seus discípulos, é a maior prova de nossa Salvação. Se Ele, cabeça da humanidade e de toda a Criação, está fora das águas do mar do pecado e da morte, no qual estamos ainda mergulhados, todos, com Ele, Cristo Jesus, seremos Salvos, pois ninguém se afoga apenas tendo os pés ou corpo na água se nossa cabeça, o próprio Jesus Cristo, está fora dela. Cristo é mais do que Sumo Sacerdote ou Pontífice, ponte, mediador, da nossa Salvação.

O Mistério da Encarnação que nos une onticamente a Deus, não se restringe à pessoa histórica de Jesus de Nazaré, Ele se fez “carne” na nossa carne humana e, por extensão, em toda a Criação, para sermos divinizados. Na sua carne pessoal, santa e divina, em Belém, assumiu nossa carne de pecado, dor e morte, morrendo numa cruz, e não como castigo ou “redentor” de um mundo escravizado ao mal,
mas como dom e a maneira de Deus nos Salvar. Se, para Deus criar o mundo, teve de se separar dele, na dor, como a criança do seu lar materno, pela sua graça salvadora em Cristo, retornamos ao mesmo seio materno divino de onde saímos. Cristo é o “trono soberano da graça”, o próprio Deus que nos une a Ele. Admirado, São Paulo, exultava de alegria dizendo: “É um Mistério tão alto, tão alto, que não o posso compreender”. Mas tão necessário que, sem ele, não podemos viver.

“O FILHO DO HOMEM NÃO VEIO PARA SER SERVIDO, MAS PARA SERVIR E DAR VIDA A TODOS” (Mc.10,35- 45)

Jesus vai transformando a mentalidade dos seus discípulos que, como todos os judeus, esperavam um Messias salvador triunfante, encarnado na figura do Filho do Homem, anunciado pelo profeta Daniel. Não passava pelas suas cabeças que esse real e verdadeiro Messias seria o contemplado pelo profeta Isaías,como um “servo sofredor”, impotente e crucificado. Empolgados pelo poder dos Seus numerosos milagres, Lhe seguiram, acreditando ser Ele verdadeiro rei a instaurar o “reino eterno” e universal prometido ao venerado rei Davi. Não se equivocaram nessa expectativa gloriosa, mas o Messias Salvador e Rei, veio por outro caminho, impossível de aceitar e entender pela razão humana. Por isso, lhes repetia: “meu Reino não é deste mundo” nem para este mundo, regido pelo poder e domínio sobre os outros. Sua derrota é seu triunfo, sua morte é a vida, sua entrega e serviço aos outros é seu estandarte e trono de Rei. E deixou estabelecido para todos os tempos um novo Reino, Eterno e Glorioso, destinado ao servo e ao escravo. Na Sua ceia derradeira, antes da Crucifixão, alertou aos seus discípulos: “Todos vos escandalizareis de mim”. De fato, assim aconteceu. Vendo-Lhe impotente, humilhado e condenado à morte de cruz como escravo malfeitor, na condição de súdito do império romano, todos Lhe abandonaram. Esse mesmo escândalo de um Deus crucificado nos impede de ver Jesus como nossa verdadeira Salvação, ao menos como graça incondicional, segura e certa. “Se Ele salva os outros, por que não salva a si mesmo e a nós?”, questionava um dos crucificados que morria ao lado de Jesus. Se Ele é o Salvador do mundo, porque temos ainda que sofrer tantas desgraças e males?

O Mistério da Salvação cresce na medida em que buscamos uma explicação. Reembasa todas as conquistas logradas em direção ao “ainda não” que sonhamos alcançar, assim como suscita em nós uma feliz suspeita e esperança no abismo da nossa desgraça: “Quem sabe se ainda podemos ser Salvos”.
Acusados pela contingência deste mundo, é irracional não nos abrir ao Mistério da nossa Salvação. De Lubac, exímio teólogo francês, dizia: “Nada mais absurdo do que, tendo como absolutamente certa nossa morte, não acreditarmos na Ressurreição de Cristo”. Embora a Vida Eterna e a imortalidade sejam postuladas pela razão, pois é racionalmente impossível morrer dentro de nós, a Salvação que nos brinda essa vida imortal e feliz, só a “conhecemos” pela Fé que nos vai madurecendo ao longo da nossa existência na vontade de nos inserirmos no plano salvífico de Deus realizado em Cristo, servo na Sua Paixão e morte e Rei e Senhor na Sua Ressurreição.

O Filho do Homem, o rei e Senhor do universo, não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida a todos. A tradução que os Evangelhos fazem destas palavras de Jesus, e que nós repetimos, não transmitem seu verdadeiro sentido Salvador, quando, ao invés de dizermos: veio dar a vida a todos, usamos a preposição “por”, como se sua morte fosse preço e não dom da nossa Salvação. Não somos Salvos “pelas suas chagas” mas nas suas chagas que permanecem abertas nos nossos sofrimentos, no pecado e na morte. A figura do servo sofredor que nos salva e se encarna em nós, não é passiva. Não sofremos à toa ou de maneira estóica e masoquista, mas como gestantes de uma nova e eterna Vida. Cristo integrou na Sua morte e Ressurreição, o pecado, a dor e a morte do mundo de maneira positiva no Mistério da Salvação.

A noite da cruz nos leva à luz da vida. Também a figura do servo inspira nossa ativa missão neste mundo. Não pleiteamos com nosso trabalho e esforço posicionar-nos acima dos outros, mas prestar nosso melhor e mais eficiente serviço em favor de todos. “Neste mundo, disse Jesus, os reis e poderosos tiranizam os povos. Entre vocês não deverá ser assim. Aquele que quiser ser o primeiro, seja o servo de todos”. Nesta maratona são poucos os que correm, nem sequer os que “profissionalmente” pela sua vocação são chamados a dedicar sua vida a servir e cuidar dos outros, como seriam os religiosos. O carreirismo clerical, adverte o Papa Francisco, está presente em todos os tempos.”Precisamos de pastores com cheiro de ovelhas”. Os “chapéus” nos fazem perder a cabeça evangélica.

A fachada das faixas, hoje tão ridículas no peito de nossos governantes, lhes dispensam suas mãos para servir. Entretanto, nada mais soberano e sublime do que ser útil e servidor dos outros. Lembro-me na Paróquia de Santa Rosa de Lima, em São Paulo,
aqueles nossos “agapes” de comunhão fraterna. Algumas pessoas serviam, esquecendo-se a si mesmas, tão generosamente os alimentos aos outros o que lhes revestia de nobreza e elegância. Tinham alma de verdadeiras princesas e rainhas. Por isso, na Igreja Católica, quando uma pessoa è promovida a ser reconhecida como santa pela sua vida exemplar, o primeiro título que recebe é de “servo” , a seguir será declarado beato e, finalmente, santo. Quem não for o último neste mundo não poderá ser o primeiro no Reino dos Céus.

A bandeira do cristão é o trapo de cozinha. O mais vil e desprezível dos objetos da casa, mas o mais saudável e benéfico de todos. Graças a ele, somos poupados das bactérias que nos podem trazer muitas doenças. Com os braços da mesma cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, sofrimento e serviço, navegamos para o Reino de Deus.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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