Corpo e Sangue

    De tal maneira a corrupção humana enredou nossa sociedade que simples palavras como corpo, corporação ou corporativismo beiram hoje o sinônimo quase inconsciente de prostituição, oportunismo e poder econômico. Forço um pouco, mas é isso o que resulta dum entendimento vago dessas palavras. Isso respectivamente ou alternadamente. Porque um corpo humano está diretamente ligado ao seu aspecto pornográfico, ao oportunismo que o cerca na luta pela sobrevivência, às manobras que se submete para galgar pretensos poderes. Assim também as corporações que a vida social obriga a constituir para defesa de seus interesses. Assim também o corporativismo de suas instituições.

    Posto isto, falta-nos a pureza do mais sagrado templo que o barro do Éden nos legou e nos tornou o que somos, o mais perfeito dos seres criados. O que fizemos dessa virtude original? Se a corrupção dos costumes foi capaz de corroer algo, não foi apenas o corpo – muitos deles perfeitamente sadios – mas principalmente a alma. Esta, sim, a vítima maior.

    Tivemos e temos, no entanto, uma oportunidade de correção, retorno à perfeição. Esta se deu num momento único, quando alguém tão perfeito e puro como “o homem do paraíso”, aquele que transluzia uma imagem e semelhança divinas, colocou-se em nosso meio, sentou-se à mesa conosco, tomou de uma massa informe de trigo prensado e cozido, um pão caseiro, mas saboroso, e afirmou: Isto é meu corpo! Um novo Adão ali se manifestou, com o desejo único de alimentar uma assembleia de novos amigos e dar-lhes a consistência necessária para permanecerem no seu amor, seguirem a nova aliança que Ele lhes propunha… Isto se quisessem retomar a pureza de seus corpos cansados, corações conturbados, almas sedentas de plenitude. Naquela mesa entenderam aquele momento de reconciliação e paz… e deram graças por isso!

    Daí o termo “eucaristia”, ou seja: dar graças. Daí a importância desse gesto cristão, personificado em Jesus, o rosto divino do homem, ou, já parafraseando a canção, o rosto humano de Deus. A fé católica tem neste ritual o centro de suas devoções. A realidade eucarística não é mera recordação de uma ceia do corpo, que antecedeu a morte de seu Cristo. É personificação do Próprio. Repete o milagre da multiplicação dos pães e do vinho servido em Caná, porém revestido agora de um mistério maior: torna-se corpo e sangue daquele que não escolheu palavras ou subterfúgios para se apresentar como alimento. Afirmou categoricamente: Isto….Isto é meu corpo… meu sangue!

    No mistério eucarístico, a palavra “corpo” não aceita outro sinônimo senão a magnitude de sua beleza original. A alma humana, sopro divino, habita o corpo moldado por suas mãos. É morada, é templo, é personificação de seu Criador. Esse mesmo corpo utilizado por Jesus, que um dia disse: “Quem me vê, vê o Pai”. Esse mesmo corpo profanado pelas instituições humanas, que venceu as trevas da nossa maldade, para dizer aos incrédulos, como Tomé: “Toque minhas feridas, veja a chaga do meu coração”. Esse mesmo corpo macerado e triturado, esvaído de seu sangue redentor, tornado pão para nos alimentar e prosseguir no desafio de transformar o mundo, transformando por primeiro o organismo que somos, nosso corpo e alma. Para isso nos sobra a Igreja, a vida em comunhão eclesial. Daí que Igreja também se faz corpo, o corpo místico de Cristo, cuja cabeça não poderia ser outra, senão Ele próprio. Daí a importância de se resgatar a unidade entre os cristãos e torná-los submissos não a uma corporação meramente humana, nem ao corporativismo dos interesses grupais, individuais, mas à voz de um único pastor. Não seja sua igreja uma mera corporação. Não faça de sua fé um instrumento de corporativismo. Enquanto perdurar essas divisões, que escandalizam e contaminam a pureza da fé cristã, o corpo de Cristo continuará desnudo em sua cruz. Quando tomarmos consciência desse escândalo, entendermos o apelo “que todos sejam um”, o mundo conhecerá nosso Cristo Ressuscitado. E entenderá suas palavras: Eu sou o pão da vida!

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