Cartas do Padre Jesus Priante – São Pedro e São Paulo

OS PÉS DA IGREJA PEREGRINA DE CRISTO

Celebramos neste domingo a festividade de São Pedro e São Paulo, chamados “colunas da Igreja”. Poderiam ser chamados com maior propriedade e significação como “pés da Igreja peregrina”, pois a Igreja não é uma construção estática, mas um povo viajante, na estrada do tempo.

No prefácio da Eucaristia de hoje, confessamos ter sido Pedro o primeiro a proclamar a Fé em Cristo, fundando sobre esta Fé a Igreja, sob a herança do povo de Israel. E confessamos Paulo como aquele que levou o Evangelho da Salvação às nações. Ambos, por meios diferentes, reuniram a única família de Cristo. Atrás de suas pegadas caminha o povo de Deus até o fim dos tempos. A Igreja peregrina, portanto, tem dois pés: um apoia-se no passado e o outro projeta-se no futuro.

Pedro representa a instituição eclesial, a “pedra” de Cristo, Rocha da Humanidade e do Universo. Sem esta referência fundamental, a Igreja carece de identidade. Paulo, guiado pelo Espírito Santo, é aquele que vivifica e renova a Fé e a esperança, de geração em geração. Ele é a verdadeira “tradição”, que significa em latim “ir adiante” (trans-do), o contrário de “revolução” (revolvere= voltar atrás). A tradição seria o que hoje, no campo laboral, é chamado de “lifelong learning”, aprendizagem permanente.

“Ecclesia semper reformanda”, a Igreja em constante reforma, foi o princípio que motivou a convocação do Concilio Vaticano II pelo papa João XXIII, cunhando o termo “aggiornamento” para definir seu objetivo de renovar a Fé e a vida do povo de Deus. Paulo é a necessária anarquia e rebeldia para tornar mais viva e verdadeira a Fé cristã ao longo das gerações.

Nossa Fé é a mesma de Pedro mas, de outra maneira, com os pés de Paulo.

Graças a ele, a Igreja saiu de Jerusalém e se fez presente em todos os povos. Sem a heresia, a ortodoxia (reta doutrina), a verdade da nossa Fé seria morta. Por isso, até o Concílio Vaticano II, a maior parte do povo entendia o termo “Igreja” como sinônimo de templo de pedras e não a comunidade dos cristãos. Já no século V, São Isidoro de Pelusiota notava este problema da Fé morta de uma Igreja não renovada dizendo: “Antes, (três primeiros séculos) existiam Igrejas sem templos, hoje temos templos sem Igrejas”. Esse “hoje” de 1500 anos atrás persiste em nossos dias. Muitas catedrais são mais museus turísticos do que Igreja de Cristo.

“A PALAVRA DE DEUS (OU O DEUS DA PALAVRA, CRISTO) NÃO PODE FICAR ALGEMADA” (1Tm. 2,9)

Aquele que crê hoje da mesma maneira do que há 20 anos atrás, não vive sua Fé de maneira viva e verdadeira. Na década de 1980, o grande teólogo uruguaio Juan Luis Segundo publicava, com o mesmo espírito de São Paulo, rebelde e renovador, “A Evolução dos Dogmas”. Até ele, propriamente, a teologia defendia a tese segundo a qual a Revelação findou com a morte de São João Evangelista, contrariando o que o mesmo Evangelista nos diz em Jo.16: “O Espírito Santo vos ensinará (em futuro) todas as coisas.

São Gregorio de Nisa (+394) concebia a vida cristã de maneira progressiva. Até ousou dizer que esse progresso continuaria no Céu, pois Deus dilatará nossa capacidade para um bem e verdade sempre maiores. Só assim podemos entender as palavras do Apocalipse: “Deus será em nós e nós Nele”.

K. Rahner, o maior teólogo do século XX, se pronunciava no mesmo sentido: ” Não nos consta que a Vida Eterna será estática. “

“O polêmico livro, “Igreja, Carisma o Poder” de Leonardo Boff pretendia dar seu merecido e necessário espaço ao protagonismo eclesial de São Paulo frente à figura de Pedro, prevalente ao logo dos tempos, que mostrava uma Igreja mais de pedras do que de almas. Mas a grande verdade sobre a Igreja nos foi revelada no Concilio Vaticano II, no qual se nos diz: “A Igreja não substitui a Cristo”.

Sob a Fé de Pedro “negada”, a de Paulo “perseguida”, das infidelidades e pecados de todos nós, cristãos, e da incredulidade do mundo, Cristo mantem viva sua Igreja e “as portas do inferno (todo mal) não a farão sucumbir”.

Poderíamos afirmar que a única verdade absoluta no leque do porvir da História, de infinitas possiblidades, é que a Igreja estará presente até o fim dos tempos. Ainda que a humanidade tivesse de sair deste planeta para povoar um outro, junto iria a Igreja de Cristo, até o dia da Sua volta.

A SACRAMENTALIDADE DO PAPA

A Igreja peregrina no tempo, “sinal e instrumento da Salvação de Cristo”, como todo povo ou comunidade, precisa de um princípio de unidade visivel. De fato nada existe sem unidade. Não existiriam todos os milhões de batatas sem “a batata”, da qual nenhum saco pode se apropriar. Por isso confessamos: “Creio na Igreja, una, santa e católica”. Se fosse apenas celeste, não precisaria ter como referência da sua unidade o lugar onde o Papa reside, pois o mesmo Cristo é a Igreja com toda a humanidade que Ele incorporou ao se tornar homem. Mas, na terra, onde nada pode ser entendido fora do espaço e do tempo, a Igreja precisa ter um lugar concreto e uma pessoa concreta como sinal, o sacramento da sua identidade.

É verdade que o Cristo disse: “onde duas ou mais pessoas estão reunidas no Meu nome, Eu estarei no meio delas” (Mt.18). Portanto, a Igreja pode estar em qualquer tempo e lugar, multiplicada aos milhões, em cada uma das pequenas comunidades, a própria família é chamada de kkk”Igreja doméstica”, mas não seria Igreja de Cristo sem a comunhão a uma “primeira” ou primordial, referencial de todas, “sinal sensível” da única Igreja de Cristo, que, antes de Sua paixão e morte pediu a Deus Pai: “Que todos sejam um para que o mundo creia que Tu me enviastes”. Hoje há 22 Igrejas católicas que reivindicam seu papado ou “patriarcado”. Fato que contradiz a única e verdadeira Igreja de Cristo. Nem sequer essa multiplicidade correspode ao número dos apóstolos, por isso, separadas, não seriam a Igreja querida por Cristo, assim como não o são as mais de 4.000 Igrejas protestantes que se autodenominam cristãs. Todos os que se reunem em nome de Cristo e o invocam são de fato Igrejas, mas, como afirmava Santo Agostinho (sec. IV) contra a seita donatista, que se considerava única herdeira da Igreja apostólica, não podem ser Igreja de Cristo, cabeça da mesma, separadas do seu unico corpo.

Historicamente, o primado de Pedro se foi reafirmando de maneria incontestável. Sobre Pedro e, consequentemente, dos seus sucessores, dos quais o Papa Francisco ocupa o numero 266. Cristo, estando todos os apóstolos reunidos, na última ceia, orou de maneira pessoal a Pedro, “olha que Satanás pediu licença para fazer perecer a todos vocês, mas Eu tenho orado ao Pai por ti, para que tua Fé não pereça”. (Lc 22:31-32))

A História prova a eficácia desta oração de Jesus. É humanamente impossível explicar a história da Igreja, tendo o Papa como seu chefe principal e sacramento da unidade da mesma, sem a graça e a presença de Cristo neste seu corpo eclesial tão traumatizado e ferido ao longo do tempo por tantos conflitos. Tivemos papas e aniti-papas, divisões e seitas de todo tipo, mas a Igreja permanece aí, presente e viva, com todos seus pecados e crises, e também o Papa como sinal referente da sua identidade.

O Papa tem recebido titulos que não lhe correspondem evangelicamente, como “Vigário de Cristo” ou “Sumo Pontífice”, pois ninguém pode substituir ou se por no lugar de Cristo, único mediador e pontífice de nossa Salvação, mas o Papa o torna sinal visivel (sacramento) da sua missão salvífica. A unidade da Igreja é quebrantada apenas subjetivamente por aqueles que se separam do único corpo de Cristo, que tem o Papa como cabeça sacramental. Nenhuma Igreja reivindicou este título de maneria tão singular como o Bispo de Roma. São Cipriano (sec. III) dizia que aquele que não comunga com a Igreja de Pedro não está na verdadeira Igreja nem professa a verdadeira Fé. O Concilio Vaticano II, foi mais moderado afirmando que, separados da Igreja de Roma, não pertencemos plenamente à Igreja de Cristo. Nem o Papa, nem a Igreja, enquanto peregrina neste mundo, são infalíveis e nem santos, mas, com todos seus pecados e defeitos, são indefectíveis, isto é, cumprirão sua missão, na condição de sinal e instrumentos da Salvação universal de Cristo de maneira segura e certa.

“HERODES MANDOU ENCARCERAR A PEDRO… ENQUANTO ESTAVA NA PRISÃO, A IGREJA NÃO CESSAVA DE ORAR POR ELE… DE NOITE, UM ANJO O LIBERTOU PRODIGIOSAMENTE”. (At. 12,1-11)

As chaves que Pedro recebeu de Cristo para abrir as portas do Céu, estavam nas mãos da Igreja, realmente presente na pequena comunidade dos discípulos de Jesus, reunidos em seu nome. Mas Pedro confessa ter sido o mesmo Cristo através de um anjo quem o livrou das mãos de Herodes. O texto nos revela o Mistério da Salvação que Deus realiza ao longo dos tempos através de Nosso Senhor Jesus Cristo, único nome que nos foi dado como Salvador do mundo, mas que usa do Seu anjo, a Igreja, como Seu “sinal e instrumento” para cumprir esta missão. O erro ou meia verdade que a Igreja nutriu, foi ter ocupado o lugar de Cristo, fundamentando-se nas desafortunadas palavras de São Cipriano, ratificadas por Santo Agostinho: “Fora da Igreja não há Salvação”. Até o Concilio Vaticano II, este slogan foi norma da nossa Fé. O Concílio teria justificado Sua celebração somente por nos revelar: “A Igreja não substitui a Cristo”. Aqui se tornaram presentes as pegadas de São Paulo. Mas também o mesmo Concilio nos revelou ser a Igreja “sinal (sacramento) e instrumento” da Salvação de Cristo. Ela mostra e faz sensivelmente presente a Cristo como Salvador de todos os povos e também ajuda aos que a ela aderem a experimentar a própria Salvação.

Na Carta a Diogneto, de um autor anônimo do século II, lemos que a Igreja é no mundo como a alma no corpo a lhe comunicar a vida que nos vem de Cristo. Inspirado nesta Carta, o Concilio Vaticano II intitulou o mais extenso dos seus 16 documentos como “Gaudium et Spes”, alegria e esperança, referindo-se à presença da Igreja no mundo. K. Rahner preferia dizer “Igreja do mundo”, pois, de fato, a Igreja é o mesmo Cristo, o Deus encarnado na humanidade que, à maneira de fermento, está transformando toda a Criação.

Nao é a Igreja quem nos salva, mas Cristo nos salva através dela. Ser e sentir-se parte da Igreja é um dom de Deus e uma doação em favor do mundo. Não podaríamos rezar o Pai Nosso, como Cristo nos ensinou sem sermos Igreja. Ela é sinal de nossa Salvação. Da mesma maneira que no jogo de futebol não é quem faz o gol quem vence e celebra o triunfo, também nós entraremos na Vida Eterna graças a Cristo que venceu o pecado e a morte e também graças à contribuição de uma plêiade de santos que fizeram visível esse mesmo triunfo. Sem o testemunho dos santos, a Igreja deixaria de ser Igreja como sinal e instrumento da Salvação do mundo.

Porque a Virgem Maria, São João , Santo Antônio estão no Céu é que também nós estaremos. Deus não quis que chegassem os homens de Fé a Ele sem nós (Hb.11).

São Gregorio de Nisa (sec. IV) afirmava que todas as criaturas darão glória ao seu Criador, até os demônios serão curados de seu mal. A Igreja de Cristo é o unico e verdadeiro “comunismo”. Tudo é de todos.

“COMBATI O BOM COMBATE, GUARDEI A FÉ… O SENHOR ME LIBERTARÁ DE TODO MAL E ME LEVARÁ AO SEU REINO CELESTE.” (2Tm. 4, 6-18)

Este texto, chamado “testamento de São Paulo” por ter sido escrito nas vésperas do seu martírio, nos mostra a grande tarefa que nos cabe como discípulos de Cristo de levar ao mundo a Boa Notícia da Salvação. São Paulo confessa ter terminado sua missão, agora espera receber a “coroa da justiça”, da santidade, que o próprio Deus lhe dará. De fato, para São Paulo, a Salvação não é um merecido prêmio, mas puro dom e graça de Deus em Cristo. Seu martírio será como sacrifício de “libação”, rito feito pelo povo judeu e grego para honrar seus deuses através do derramamento de óleo, vinho ou água sobre os animais sacrficados em sinal da entrega e doação da própria vida pela salvação de todos. Através do martírio de Paulo, assim como o de todos os mártires e santos, Cristo Salva o mundo. Nada mais anti-evangélico e anti-cristão do que a “excomunhão”, que podemos fazer de nós mesmos por causa de sentir-nos pecadores ou, como a Igreja tem feito ao longo dos tempos, negando sua própria Fé na Comunhão dos santos, sobre algumas pessoas por serem hereges ou pecadoras. Este domingo, que a rigor não seria domingo, dia do Senhor, por estar dedicado a São Pedro e São Paulo, revela-nos a graça da Comunhão dos Santos ou, melhor, nossa comunhão com a vida santa e feliz de todos aqueles que já participam com Cristo da Vida Eterna, motivo de nossa alegria, por isso a qualificamos como “festa” (alegria). Assim como agradecemos os favores que as pessoas nos brindam, também, como cristãos, temos de fazer de nossa vida uma constante ação de graças a Deus, aos seus anjos e santos que entregam tudo quanto são e tem para nós.

“EU TE DIGO QUE TU ÉS PEDRO E SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI MINHA IGREJA, E AS PORTAS DO INFERNO NUNCA PREVALECERÃO CONTRA ELA.” (Mt. 16, 13-19)

Este texto foi interpretado quase até nossos dias como sendo o fundamento da Igreja de Cristo. Entretanto, esta interpretação não foi adequada. Santo Agostinho (sec. IV) já dava a essas palavras seu verdadeiro sentido, afirmando que a Igreja não foi fundada sobre a pessoa de Pedro, senão de Cristo, única pedra ou rocha da Igreja e do mundo. Pedro tinha confessado, ao ser perguntado perante os Discípulos por Jesus, o que pensavam ser Ele: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Sobre a Fé de Pedro em Cristo é que se fundou Sua Igreja. Santo Agostinho o traduz assim: “Tu és Pedro, da pedra, que é Cristo”.

A Igreja nada é sem Cristo, não passaria de uma associação humana e nem sempre a mais edificante. E por ser Cristo a pedra ou rocha da Igreja, é que jamais poder algum a poderá destruir. Chamada também de barca de Pedro, nela vai conosco Cristo, desafiando toda tempestade, perigos e males do mundo.

Os Sete Sacramentos

No catecismo aprendemos serem sete os sacramentos. O que não é certo, pois sacramento é todo sinal que aponta e nos conecta com Deus. Santo Agostinho quantificava seu número em mais de 400. Mas a Igreja é, junto à Eucaristia, nosso maior sacramento porque não só é sinal como presença real do próprio Cristo, da mesma maneira que hoje se fez ditado popular: “A Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia”, o que é o mesmo que dizer que nela se faz realmente presente Cristo. Também temos que dizer que a Igreja (duas ou mais pessoas reunidas em nome de Cristo) faz realmente presente a pessoa de Cristo como Salvador do mundo.

A Eucaristia, diz São Gregorio de Nisa, é o começo de nossa divinização. A Igreja é, o próprio Céu presente na terra. Por isso, “cantamos com todos os anjos e santos: Santo é o Senhor”, toda vez que nos reuninmos para celebrar a Eucaristia. O fato de irmos ao templo, para torna-lo Igreja de Cristo, não só santifica e salva aos que nela estamos presentes, como também, como sinal e instrumentos de Cristo, salvamos o mundo inteiro. Liturgia não é mero culto a Deus, e sim ação salvífica de Deus em Cristo, através do seu povo. Não vamos à Igreja por devoção, mas para cumprir a mais nobre missão que Deus nos deu: tornar presente a Salvação de Cristo.

O planeta inteiro e toda a Criação esperam nossa presença junto aos outros irmãos para receberem a Salvação de Deus. Infelizmente uma das coisas que desvirtuaram o sentido e a grande missão da Igreja foi a ter caraterizado como “hierarquica”, que signfica poder sagrado e não como uma “dulia” (serviço) ao mundo, como Cristo nos recomendou.

Foi São Gregorio Magno (590-604) possivelmente o maior Papa de todos os tempos, por isso recebeu o atributo de Magno. Ele se autodenominou “servo dos servos de Deus”. Este é o único título que pode apresentar uma pessoa para ser reconhecida como santa. Só depois é que pode ser declarado beato ou santo.

Para finalizar esta longa mensagem de hoje, sobre o mistério da Igreja de Cristo, que peregrina com os pés de Pedro e de Paulo, diremos que ambos são igualmente patriarcas da nossa Fé. Pedro nos reporta a Jesus de Nazaré e Paulo ao Cristo que vem vindo ao longo do tempo, de maneria sempre nova através de uma Fé constantemente renovada.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição e intertítulo por Malcolm Forest. São Paulo.)
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