Cartas do Padre Jesus Priante – Deus Ainda Nos Pode Falar

Essas foram as palavras que o insigne teólogo alemão K. Rahner nos legou no seu belo livro “Ouvinte da Palavra” (1949). Isto num tempo em que as palavras e as ideias humanas tinham morrido, vítimas da Segunda Guerra Mundial, o mais profundo fracasso da civilização e de todo possível progresso.

Um dos atributos do único e verdadeiro Deus que nos foi revelado, frente a todos os falsos deuses ou ídolos que povoam em todas as culturas, religiões e credos, é que Ele fala, enquanto os ídolos têm boca, mas não tem palavras (Sl.115,5).

O povo de Israel foi o primeiro povo a quem Deus falou. “Vimos que Deus fala e Sua palavra é vida para o homem”(Dt.5,24). E fez do Seu falar divino Seu grande mandamento: “Escuta, Israel”. Em Amós, 8, se nos revela que o maior castigo ou desgraça do ser humano é ficar privado da Palavra de Deus. É pior do que carecer de água e pão: “Nesse dia, sem a Palavra de Deus, as donzelas e os jovens valentes desfalecerão. Todos cairão para não mais levantar”.

Jesus ratificou essa verdade do profeta Amós dizendo: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. (Lc.4,4)

Na década de 1960 , estudantes parisienses lamentavam: “Que adianta termos pão se morremos de tédio”. Deus vem a nós na Sua Palavra. Por isso, dizia Dom Gabriel, primeiro Bispo da Igreja de Jundiaí nos anos de 1970, temos de proclamar não a Palavra de Deus mas o Deus da Palavra. Ele identifica-se no seu Filho como Verbo ou Palavra.

Santo Agostinho atribuía a Deus a origem das línguas. Foi Ele quem ensinou o ser humano a falar. E porque também nós falamos, somos semelhantes a Deus.

Aristóteles (séc. IV a.C) definia o homem como um ser que tem palavras. De nada nos serviria sermos racionais se carecessemos de palavras para externar o que pensamos e queremos. Da mesma maneira, um Deus mudo, sem palavras, deixaria de existir para nós, e seriamos nós os criadores de deuses. Isso explica o incontáveis números de deuses presentes nas diferentes religiões. Nas religiões não é Deus quem fala mas nós que falamos no seu lugar, pomos em seus lábios inertes palavras caducas e vazias que morrem no silêncio do sepulcro. Hoje esses ídolos a quem emprestamos nossas palavras são a ciência, as tecnologias, o dinheiro, a razão, o progresso, sonhos, sucesso, pessoas, troféus… até um time de futebol reivindica sua falsa divindade à qual devem sacrificar a vida, seus devotos.

Chesterton, referindo-se à multitude de palavras que atribuimos aos nossos ídolos ou falsos deuses, dizia: “Este mundo está cheio de palavras enlouqucidas”. Recebemos nós, cada pessoa, ao dia mais de duas mil mensagens, que não podemos mentalmente digerir. Temos mais do que palavras, barulho, ruído, que nos enlouquece e nos faz perder o sentido das coisas e de nós mesmos.

Recentemente um famoso psicólogo dizia que sofremos no presente uma crise de atenção, pelo excesso de informação, e quem não atende, como se diz popularmente, nem entende, nem sabe. Daí a necessidade de que Deus nos fale e nos ensine a falar de novo.

“DEUS NOS FALOU DE MUITAS MANEIRAS, ULTIMAMENTE EM CRISTO”. (Hb.1)

A Palavra de Deus pode ser oral, gestual, escrita, interior e presencial.

ORALMENTE, Deus falou na linguagem dos seus ouvintes a Abraão, Moisés, Jacó, Samuel,
profetas e outros pessoas privilegiadas, como a Maria e José e numerosas pessoas de fé e também todo um povo peregrino no deserto ou reunido ao redor de Jesus de Nazaré. Mas sempre que isso aconteceu teve de o fazer escondido numa sarça ardente, como quando falou a Moisés ou numa nuvem, meio mais frequente, pois o rosto de Deus não podemos neste mundo ver porque Ele é espírito.

GESTUALMENTE, por meio de sinais ou fatos. A Criação é um grande poema de Deus. Ela narra sua grandeza (Sl.8,Sb.13). Tudo quanto existe foi feito pela Palavra de Deus e Nela subsiste. (Gn.1 e Jo.1). Não são os átomos ou moléculas os elementos que fazem existir as coisas, mas a própria Palavra de Deus. Da mesma maneira que o homem, segundo Aristóteles, é um ser que tem palavras, todo ente, um minúsculo grão de areia, é palavra de Deus. De São Clemente de Roma (sec.I) muito idoso, se diz que costumava sair pelo campo passear e, com seu bastão, batia nas pedras do caminho dizendo: “Ainda vos entendo”. As pedras lhe falavam porque eram feitas de Palavra de Deus. Também através dos milagres e fatos prodigiosos Deus nos fala. Eles nos revelam, dizia o papa São Gregório Magno (sec.VI), um mundo invisível ou o Reino de Deus.

ATRAVÉS DA SAGRADA ESCRITURA, que se identifica com a Bíblia. Todas as religiões têm seus livros ou escrituras sagradas. Os Vedas, para os hindus. Livro dos Mortos, no Antigo Egito. O Alcorão para o povo islâmico “and so on”. Mas só a Biblia foi ratificada por Cristo como Palavra de Deus, porque ela fala Dele, que é a própria Palavra de Deus (Lc.24). O resto dos livros, filosóficos, literários, científicos ou religiosos, carecem da categoria de Sagrada Escritura. Não são Palavra de Deus, embora, como reconhece São Justino (sec. II) portam “sementes do Verbo”. “A Bíblia, diz Santo Ambrósio (Sec. IV), é um microuniverso”. E Santo Agostinho via nela a única resposta aos enigmas do ser humano e da Criação.

Todo saber humano é inacabado e confuso sem a Palavra de Deus, que tem lugar privilegiado na S.E. Talvez por isso recebe o nome de Bíblia ,que significa biblioteca. De fato, sem ela, como expressamos em inglês, com o termo Library ou Bookcase, as bibliotecas são mero amontoado ou depósitos de livros, mas não uma verdadeira biblioteca do saber pleno. No fim da história, teremos de confessar: “A Biblia tinha razão”.

INTERIORMENTE, Deus fala no coração e mente de cada pessoa.

“Eu levei meu povo ao deserto para lhe falar no seu coraçao”. Centenas de pessoas em todos os tempos deixaram o buliço das cidades para viverem no silêncio das montanhas e desertos para ouvir a Deus. A prática dos Retiros Espirituais, cumprem esse desejo do ser humano de ouvir falar Deus dentro de si mesmos. Todos experimentamos “sentimentos profundos”, que não encontram chão neste mundo, que nos obrigam a transcender ou sair de nós mesmos. Muitos místicos até fisicamente o experimentaram ao ponto de levitar corporalmente, num desejo irresistível de responder à chamada de Deus.

Da mesma maneira, Deus fala na nossa mente suscitando perguntas e respostas à nossa problemática existencial. Quem somos? de onde viemos e para onde vamos? são, entre outras questões, a palavra de Deus a nos mostrar o sentido da própria vida. Foi assim que Deus falou a Adão no Paraíso: “Onde estás?”, que não te encontras? segundo a interpretação de Santo Agostinho.

PRESENCIALMENTE, na pessoa de Jesus de Nazaré. Ele é tudo quanto Deus nos falou e nos tem a falar, afirma o Concílio Vaticano II. Ele é toda a Palavra de Deus para cada pessoa e da História universal.

São Máximo, o Confessor (sec. VII) dizia: “Antes de Cristo, a Palavra de Deus preparou a humanização de Deus; depois de Cristo, a divinização do homem. “

A real presença de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré, não é a de um mestre a ensinar uma filosofia de vida, mas Palavra feita carne (historia ou fato) que, com Sua morte e Ressurreição e a comunicando através do Espírito Santo, nos dá a vida de Deus. Quem ouve a Palavra presencial de Deus é portador de toda a sabedoria, pois tudo quanto precisamos saber é que somos chamados por Deus para viver felizes no seu Reino eternamente. Essa grande sabedoria é o mesmo Cristo, Palavra feita carne que habita no meio e dentro de nós.

A fala presencial de Deus acontece também através das testemunhas mais eloquentes de Cristo: os mártires e os santos, assim como a Eucaristia, nos tornam realmente presentes na Sua morte e Ressurreição.

“O SENHOR ME TIROU DO MEU TRABALHO DE PASTOR E ME DISSE: VAI PROFETIZAR (falar em meu nome) A ISRAEL, MEU POVO.” (Am.7,12-15)

O profetismo, junto com a realeza e o sacerdócio foram os carismas com os quais Deus dotou o povo de Israel para lhe conduzir neste mundo. Mas o que distingue o profetismo dos outros dons é que este não é uma “instituição” hereditária e sua missão é romper o “establishment” que a realeza e o sacerdócio petrificam.

O filósofo francês Bergson (sec.XX) diz que são os profetas os que impulsionam a história. Dotados do dom da intuição, sabem ler o presente e o abrem para um futuro diferente, animado pelo “espírito vital” da realidade, constitutivo do mesmo ser das coisas, particularmente do ser humano. De fato, o que é, tem de ser de outra maneira. Sem essa constante mudança e transformação tudo se tornaria inerte, estático e cadavérico.

O Fluxo da História

“Água que não corre, cria bicho”. O profeta faz correr a água da História. Nesse sentido, atribuímos popularmente ao profeta o dom de prever o futuro ou, mais propriamente, de criar esse futuro. Se dependesse do rei ou sacerdote estaríamos ainda na idade de pedra. O profeta rompe os dogmas e os costumes do burguês, acomodado ao status quo.

Em 1Cor.12,28, São Paulo distingue tres categorias de profetismo: Apóstolos, profetas e mestres. O apóstolo, como o termo sugere, é aquele que é enviado a anunciar o Reino de Deus na pessoa do mesmo Cristo. O apóstolo o faz mesma maneira que o sacerdote exerce a missão santificadora e salvadora, não como mero instrumento ou empregado, mas tornando presente a Cristo. É Ele quem batiza, perdoa, se faz Eucaristia e comunica a santidade e vida de Deus. Assim também, no apóstolo, é o mesmo Jesus de Nazaré quem fala, por isso disse aos seus “doze apóstolos” e os que exerceriam esta missão depois: “Quem a vocês ouvem, ouvem a mim” (Lc.10,16). Infelizmente temos perdido de maneira sacramental este carisma do apóstolo, por isso os pregadores do Evangelho, são meros leitores profetas, como foram no AT a falarem “em nome de Deus” mas não sendo a pessoa de Deus ou de Cristo quem nos fala diretamente revestido de humanismo. É diferente dizer ao povo: Deus disse ou me diz, do que “eu vos digo”, com a autoridade do próprio Deus. E mais pobre ainda fica o profetismo, quando é exercido como meros mestres, teólogos ou ou catequistas a doutrinar seus ouvintes, que é o mais comum na Igreja de hoje.

O verdadeiro profeta, sublimado pelo apóstolo, disse Jesus reconhece-se pelos seus frutos (vive e pratica o que anuncia) assim como realizam-se suas palavras,que se comunicam na forma de promessa, pois o Reino de Deus está em permanente devir.

A profecia é essencialmente escatológica, diz respeito ao fim dos tempos, mas quem a recebe, torna-os cada dia
mais próximos. A palavra profética, nos diz o profeta Isaias, é como chuva que no retorna ao Céu, sem antes fecundar a terra e produzir seus frutos. Esta palavra nos comunica a Fé, e a Fé nos faz viver já neste mundo como filhos de Deus.

O grande papa Sao Gregório Magno atribui ao predicador, mais no sentido apostólico, a missão fundamental da Igreja. De sua predicação nasce a comunidadeda Fé e por ela permanece viva. “O predicador, dizia, é como sentinela que prepara e torna expectante a vinda gloriosa de Cristo. É aquele que, como Sua palavra, fecunda e torna mãe a Igreja”. A Palavra de Deus cria e salva.

TENDO RECEBIDO O EVANGELHO DA SALVAÇÃO, FOSTES SELADOS PELO ESPÍRITO SANTO, QUE É PENHOR DA NOSSA HERANÇA ETERNA. “(Ef.1,3-14)

Neste maravilhoso texto, São Paulo, verdadeiro profeta e apóstolo de Cristo, anuncia a Salvação de maneira universal, como predestinação de Deus, “antes da criação do mundo”.

O Espírito Santo Avalisa a Nossa Salvação

Todos nascemos com “estrela” e felizardos. O Espírito Santo é o avalista da nossa Salvação. Somos em Cristo herdeiros e não simples merecedores, do prêmio da Vida Eterna, na condição de filhos de Deus. São Paulo vai mais longe na sua profecia: “fomos feitos herança de Deus”. Ele ficaria mais pobre e infeliz sem nós. Somos, com toda a Criação, “o Seu louvor e glória”.

Nenhum profeta ou mestre seria capaz de falar assim se não fosse o próprio Cristo falando através dos seus enviados, os apóstolos.

O Papa Francisco, em sua carta
apostólica “Gaudette et Exultate”, alegrai-vos e exultai, diz que há duas heresias que persistem ao longo dos tempos e que nos impedem de no sentirmos felizes pela nossa Salvação: o gnosticismo, que liga a Salvação ao conhecimento; e o pelagianismo, que o faz depender dos nossos méritos.

Fomos mais doutrinados do que Evangelizados, e fizemos do Evangelho um código moral. A Salvação tornou-se insegura e incerta. Kant, atormentado pelo imperativo do “dever” moral dizia: “Não matar é uma verdade certa, mas que Deus existe e nos salva, não o vejo tão claro”. Embora reconheça ter necessidade da Fé, para ter certeza de que não matar era uma verdade incontestável.

Somos salvos pela Fé e não pelos méritos das obras, é a grande tese de São Paulo que nos fez passar do passado das crenças e da lei, ao regime da Fé e da Graça em Cristo.

K. Rahner dizia: “Deixa aparecer a dor, a angústia, as doenças, as adversidades e a morte. Não faça teorias, e verá a Deus com os novos olhos da Fé”.

“JESUS CHAMOU OS DOZE E OS ENVIOU DOIS A DOIS AO MUNDO… ELES PARTIRAM E ANUNCIAVAM A SALVAÇÃO” (Mc. 6,7-13)

O apóstolo ou enviado por Cristo é mais do que um profeta e mestre. Lhe acompanham o mesmo poder de Deus de curar os enfermos, expulsar demônios (o mal) e ressuscitar mortos (Mc.16). São enviados dois a dois, para significar estar realmente presente o próprio Cristo. Por isso Ele disse: “Onde duas ou mais pessoas estão reunidas em Meu nome, Eu estarei com elas”. (Mt.18)

São Paulo liga a missão do apóstolo ao envio: “Como pregarão se não forem enviados?” (Rm.10) Faz uma década, no Brasil, a Conferência Episcopal fazia um apelo ao que foi chamado “conversão pastoral”, isto é, é preciso termos uma uma nova práxis na Evangelização, para renovar a vida da Igreja. Infelizmente ainda essa conversão pastoral não redescobriu o carisma do Apóstolo, sem o qual nenhuma vitalidade é possível na Igreja. É igual que “a campanha do dízimo”, um mal crônico de todo fiel cristão do qual nunca curará até não perceber a fraternidade constitutiva do ser cristão. Sofremos uma crise de Fé e uma descristianização, particularmente na Europa, porque carecemos do carisma do Apóstolo, atribuindo esta missão genericamente a qualquer atividade eclesial. Assim falamos de “apostolado da oração”, sem apóstolos.Estes têm de ser enviados solenemente pela Comunidade eclesial, sacramento do mesmo Cristo, de dois em dois, para irem com eles a mesma pessoa de Jesus de Nazaré. Um apóstolo não é um franco-atirador da Evangelização, como acontece hoje na Igreja católica e maiormente nas Igrejas evangélicas.

A Igreja tem de ser mais carisma do que poder. Uma Igreja “hierárquica” (poder sagrado) tem de ser uma Igreja “dulia”, de serviço, como Jesus a instituiu e São Paulo assim a entendeu, como corpo de Cristo, na qual cada um dos seus membros exerce um “ministério” ou serviço. “A um lhe é dado o dom de falar (apóstolo). A outra de ensinar (mestre). A outro de curar os doentes (cuidadores e médicos). A outros de fazer milagres (santos). A outros o dom de línguas (expressar a fé). A outros de interpretá-las (teólogos). Tudo isso vem do mesmo Espírito.” (1Cor.12) Sendo o amor o espírito que deve animar todo serviço ou ministério. Desta reflexão, posso concluir que o futuro do cristianismo passa pela redescoberta da missão apostólica, só assim teremos uma Igreja mãe a gerar filhos de Deus em Cristo, e a se tornar “sinal e instrumento” da Salvação do mundo.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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