A dama do folclore

Formada em Biblioteconomia pela Universidade de São Paulo, Inezita Barroso deixou o amor pela cultura caipira falar mais alto em sua vida. Tornou-se cantora, instrumentista, atriz, apresentadora e, acima de tudo, grande incentivadora da música de raiz, tendo gravado diversas obras do cancioneiro popular. Aos 89 anos de idade, já percorreu todo o país conhecendo e estudando as tradições regionalistas e, por isso, é considerada referência no assunto; chegou a receber da Universidade de Lisboa o título de doutora Honoris Causa em folclore brasileiro.
Aos sete anos de idade começou a cantar e a estudar violão. Esse interesse musical foi influência da família?
A minha família sempre teve uma tradição musical. Quase todos estudaram música, mas era rígida, tinha que ser tudo certinho, com professor. Mulher tocar violão era uma coisa bem difícil, havia preconceito. Então, eu estudava escondida enquanto uma tia minha fazia aula em casa. Assim aprendi a tocar. Quando viram que eu estava me desenvolvendo sozinha, meu pai e minha mãe me colocaram em uma escola para crianças. A partir daí o interesse só foi aumentando. Fiz algumas aulas de canto para crianças, depois conheci a viola caipira e minha vida foi seguindo dentro da música.

Quando e como resolveu estudar o folclore brasileiro?
Começou nas fazendas dos meus tios no interior de São Paulo. Nas férias escolares, eu passava os dias nas fazendas deles com os primos, brincando com tudo que é da roça. Cada ano eu ia para uma fazenda diferente. Assim conheci colonos caipiras que tocavam viola e me apaixonei por essa musica. Acho que a primeira música que aprendi foi a “Moda do Boi Amarelinho”, coisa triste, mas maravilhosa. A partir daí sempre fiquei em contato com esse mundo. Aprendi a tocar viola, gravei muita coisa e me agarrei nesse gênero para sempre. Ou seja, meus contatos iniciais com a viola já me colocaram como uma “ouvinte”, como uma “recolhedora” de histórias. Com esse mesmo jeito fui conhecer os interiores do Brasil inteiro. A infinidade de ritmos que eu conhecia em viagens ia gravando; cada disco gravado era uma empreitada nova em melodia e ritmo.
Como a senhora define a palavra folclore?
Folclore é o estudo das coisas do povo. Os mitos, as lendas, as histórias, os ditados populares, as rezas, o artesanato, os cantos de trabalho, os ritmos mais puros do povo, enfim, o que está ligado às tradições mais ancestrais da formação cultural do povo. Geralmente, tudo isso não tem um autor ou um criador específico. São aspectos que vão se acumulando e se modificando de geração em geração.
Existem diferenças entre folclore, mito e cultura popular?
São conceitos distintos. O folclore é o nome que se dá para o estudo das coisas do povo. Logo, os mitos estão incluídos nessas coisas do povo, um está inserido no outro. Já cultura popular é uma expressão posterior à do folclore, tem seu uso mais ligado à sociologia moderna e à antropologia. Cultura popular, inclusive, abrange conceitos mais amplos que o foco dos estudos folclóricos, como, por exemplo, os impactos da indústria cultural. Mas os três são conceitos que dialogam entre si.
Ao estudar o folclore in loco de todo o interior ”brasileiro, o que mais lhe chamou a atenção?
Nossa, pergunta difícil. Na verdade, difícil é escolher uma só. Mas fico admirada com a característica do que posso chamar de “talento nato”. Cansei de conhecer pessoas, trabalhadores e trabalhadoras, que nunca estudaram uma série na escola, não sabiam ler nem escrever, porém, compunham como poetas letrados nas grandes cidades. A percepção artística deles é absurda. Como é que pode isso? E uma pergunta que eu me faço sempre. De onde vem a inspiração sem estudo? A poesia está em qualquer lugar.
Com o tempo, as manifestações folclóricas se perderão?
Olha, se pensarmos nas manifestações folclóricas da minha infância, com certeza, sim. Mas o folclore também muda, também tem evolução. Os mitos, os cantos, as histórias, vão mudando. Algumas resistem mais, outras desaparecem do dia a dia das pessoas. Ficam registros e estudos. Mas o folclore permanecerá. De um jeito diferente, claro, mas sempre existirá.
Seu programa de tevê, Viola, Minha Viola, que existe há mais de 30 anos, resgata a música regional. Qual a motivação que a senhora tem em continuar lutando para que a música de raiz não se perca?
Já são 34 anos de programa, comemorados agora em maio. Por ali já passou muita coisa boa, inclusive o folclore que ninguém leva para a televisão: folias de reis, cururu, capoeira, congada, batuque de umbigada, coco. Além, claro, do que temos mais forte para nosso público, que são os compositores, os intérpretes e os violeiros caipiras. É um formato simples, mas que ninguém faz na televisão. E assim vou lutar pela música de raiz até morrer. E não quero que seja logo não, viu? [risos]
Com qual cultura regional mais se identifica?
Por ser paulista, nascida na Barra Funda, na rua Lopes de Oliveira, naturalmente me afeiçoei às tradições do caipira. Isso desde pequena. Mas gosto muito também da cultura das danças, da música gaúcha e dos ritmos nordestinos. Fiz longas pesquisas nesses lugares e conheci pessoas maravilhosas.
Dia 22 de agosto, comemora-se o Dia Mundial do Folclore. Qual mensagem a senhora deixaria às pessoas sobre a importância do folclore na vida de um povo?
O mês de agosto é uma marca interessante para que a gente fale do folclore, mas tenha certeza de que ele está mais no cotidiano das pessoas do que elas imaginam. Acho que o brasileiro precisa olhar sempre para dentro do próprio país, entender a cultura, os elementos que nos formaram como nação. Entender essas origens nos ajuda a conhecer o que somos e o que não somos. Assim, é mais interessante entender se gostamos ou não do que nos é oferecido pela televisão (e, hoje, mais até pela internet) como exemplos de qualidade na música, no cinema, no teatro, enfim, na arte em geral. Podem ter certeza de que o folclore nos indica caminhos sérios.

Fonte: Informativo Nossa Voz