Resistência

    Meu Deus,
    Não tenho mais nada!
    Não tenho mais roupas.
    Não tenho mais sapatos.
    Não tenho mais bolsa, carteira, caneta.
    Não tenho mais nome. Carimbaram-me 35.282 e levarei um triângulo vermelho na minha manga esquerda.
    Não tenho mais cabelos.
    Não tenho mais fotos de minha mãe e meus sobrinhos.
    Não tenho mais antologia, onde cada dia aprendia uma poesia nova, na minha cela de Fresnes. Não tenho mais nada. Meu crânio, meu corpo, minhas mãos estão nuas.
    SS.
    Reviste, pilhe, raspe, animalize minha silhueta! Arme minhas mãos de pás, enxadas! Faça de mim uma lenhadora, trabalhadora, limpadora de excrementos, forçada dos pântanos! Esculpa meu rosto, minhas rugas para que eu me assemelhe a milhões e milhões de prisioneiras! Dê a meus olhos esta fixidez de sonâmbulo que descubro horrorizada nos olhos de minhas companheiras! Ensurdeça meus ouvidos com seus urros, use o porrete, dê pontapés, assassine, entupa dia e noite teus crematórios com nossos corpos esqueléticos! Ponha aos nossos olhos o espetáculo daquelas que morrem como animais, em um canto qualquer!
    Fuzile, fira, enforque, atire sem parar jamais! Que importa…
    SS, desde minha infância, meu país que é a França fez de mim alguém que caminha ao vento, os cabelos e o espírito livres. Educou meu coração, civilizou meus instintos, harmonizou minha sensibilidade, encheu minha cabeça de música, poemas, livros amados. Cerrou-me de doces  sorrisos infantis. Meu país, que é a França, estendeu sobre mim sua ternura, a serenidade do seu céu. Colocou no meu coração, SS odiado, criminoso, um amor tão profundo, que aqui, prisioneira, desarmada, nua, sinto-me rica como uma rainha e levanto orgulhosamente a fronte, escreve Catherine  Roux.
    Depois da revista de entrada,
    Ravensbrück, 23 de abril de 1944.

    TRIÂNGULO VERMELHO
    Eis o livro da coragem. Prefaciado pela intelectual francesa  Geneviève Anthonioz de Gaulle. Não do medo, e sabe Deus que ao medo se destinaram estas mulheres encurraladas, acuadas, torturadas, atiradas às prisões, para transpor depois os umbrais do mundo “concentração” entre os golpes, os gritos e os latidos dos cães… Algumas repudiaram o medo mesmo em sonhos. “Nua, espancada, pisada, chicoteada, sem cabelos…”.
    Em Ravensbrück, Catherine  Roux descobrirá o pior: a ferocidade existente no coração de certos homens, e irá reencontrar com pavor suas irmãs em campo de concentração: olhos sem ver, lábios sem sorrir, rostos desumanos. É a hora da verdade, quando a coragem não enfrenta apenas o medo, mas o desespero também. Não existe aquele que tendo que atravessar este fogo não conservou uma alma em cinzas. Mas que vitória quando a alma permanece livre e terna como a de Catherine! “Meu país colocou no meu coração tanto amor, que lá, prisioneira, indefesa, nua, sinto-me rica como uma rainha e levanto a fronte orgulhosamente.”
    Há também ternura nos desenhos de Jeannette L’Herminier que ilustram  livro “Triângulo Vermelho”, (o triângulo vermelho era usado pelas prisioneiras no campo de concentração nazista). No nosso Block de 40 – fizemos parte da mesma leva de 27.000 – ela rascunhava nossas silhuetas com um pedacinho de lápis e papel “recuperado”. A mesma vontade de Jeannette que em Catherine de não se deixar destruir e ajudar aos outros a não se deixarem destruir. Catherine Roux e Jannette L’Herminier se reencontraram em Holleischen, Kommando de Ravensbrück. Como suas companheiras, sabotaram a usina de munições, cataram as canções de Lorraine, Sambre, Meuse ou os Partisans nas estradas do campo a fabrica, descontrolaram as máquinas no 14 de Julho, resistiram por todos os meus meios, todas suas fracas forças, à submissão.
    Para castigar as da “resistência”, o comandante do campo criou um Kommando especial. Durante todo o inverno (que irá até – 35°) uma equipe de prisioneiras armadas de pá e enxada constrói uma escada. Sem roupas quentes, sem alimentação própria durante as doze horas de trabalho – em  represália elas comem fora ao meio-dia e em pé – estas mulheres, e entre elas Catherine, não só suportam suas provocações como as superam. A “Strassenkolonne” – como é chamada – encabeça todas as reclamações, as iniciativas mais ousadas! Músculos endurecidos, resistência espantosamente desenvolvida, temeridade astuta… Temos agora que enfrentar deliberadamente os golpes, dirá Catherine. Tanto melhor, as prisioneiras encontram na floresta toda uma sorte de alegrias, de sonhos e como que uma dimensão de liberdade.
    É preciso admitir, há por momentos em “Triângulo Vermelho” um tom de regozijo que surpreenderá o leitor, como o espantará também a serenidade dos desenhos de Jeannette L’Herminier. Elas, nem uma nem outra, sofreram o horror da “solução final” nos campos de concentração, mas viram e suportaram a condição de prisioneiras nos campos de concentração. Se elas a transcenderam, foi à força de coragem, cada dia mais humanas neste universo feito para desumanizá-las.
    Mulheres como Catherine e Jeannette ou os SS, vê-se bem quem foram os vencedores…
    Vale a pena resistir, lutar, coragem na tormenta, acreditar que é possível alcançar gloriosamente a vitória! Ao encontro dos resistentes, diante da brutalidade humana, chega uma força sobrenatural para fincar na história os heróis, seus legados e os males derrotados! A graça imensurável da dignidade da pessoa humana e muito mais alta do que natureza caída da criatura humana. O bem sempre vence…

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