O Testamento espiritual de Bento XVI: Gratidão!

             Ao ler o Testamento espiritual do Papa emérito Bento XVI, feito em 29 de agosto de 2006 e agora tornado público, vem-me à mente, antes de mais nada o grande conselho de São Paulo aos Tessalonicenses e, é certo, a cada um de nós hoje: “Em tudo, dai graças” (1Ts 5,18) ou, numa tradução mais popular, “Em tudo, sede agradecidos”. Pois bem, o termo “gratidão” é o que, por assim dizer, define e orienta todo o Testamento espiritual de Joseph Ratzinger (1927-2022). Um documento para a nossa reflexão que deve estar unido a tantos outros pronunciamentos feitos por ele.

             A primeira gratidão de Bento XVI se dirige a Deus e não se espera menos de alguém que dedicou toda a sua longa vida, até os seus últimos momentos a Ele. Afinal, é Ele o doador de todo o bem, que lhe deu a vida e o conduziu nos vários momentos de sua existência terrena, inclusive na confusão ou na noite escura. O Papa emérito afirma também que nunca se sentiu desamparado pelo Senhor. Ao contrário, Ele sempre se levantou para ajudá-lo toda vez em que Ratzinger começava a resvalar e – mais ainda – sempre lhe voltava, de novo a luz do seu rosto. Em suma, tudo, mesmo os males, sempre concorreu para o seu maior bem.

             Como não se lembrar de São Bruno ao tratar, em Carta a Raul, 16, sobre a fascinação por Deus: “Que outro ser é tão bom como Deus? Melhor ainda, que outro Bem há senão só Deus? Por isso, a alma santa, percebendo em parte o incomparável atrativo, esplendor e beleza desse bem, inflamada em chama de amor, diga: ‘A minha alma tem sede do Deus forte e vivo, quando irei ver a face de Deus?’ (Sl 41,3)” (Um Cartuxo. Antologia de autores cartuxos. São Paulo: Cultor de Livros, 2020, p. 63). Quem se entrega a Deus passa por tantos problemas como os demais seres humanos, mas, ao contrário de alguns que se desanimam, sabem que Deus nunca nos desampara. Ele não permitiria sequer o mal, conforme Santo Agostinho de Hipona, se não pudesse tirar desse mal bens ainda maiores (cf. Enchridion XXVIII).

             Aqui, alguns poderiam se assustar ante um Papa da grandeza eclesial de Bento XVI a confessar que passou por dificuldades, mas nunca se sentiu por Deus desamparado. Vem a pergunta: é possível que uma pessoa que busque viver a radicalidade do seu Batismo ou a santidade (cf. Mt 5,48) passe pela noite escura? Sim, é possível. Vale a pena ler sobre isso o que Dom Estêvão Bettencourt, OSB, escreveu a propósito da Madre Teresa de Calcutá: “A notícia surpreendeu muitos fiéis católicos, que julgavam ser os Santos figuras originais isentas de qualquer crise nas suas relações com Deus. Outra, porém, é a realidade: os mestres da vida espiritual ensinam que caminhamos para Deus através de três etapas: a via purificativa, a via iluminativa e a via unitiva. Principalmente a primeira tem em vista desapegar-nos de qualquer criatura como também desapegar-nos de nós mesmos, tendentes ao egocentrismo. – Para tanto o Pai Celeste permite sejamos acometidos pela noite dos sentidos e a noite do espírito, fases em que nos falta qualquer consolação ou sentimento de bem-estar seja no plano da nossa sensibilidade, seja no da intelectualidade. São fases de purificação, que visam a tornar a fé e o amor a Deus mais diretos, menos interessados em alguma compensação; o fiel crê em Deus por causa da grandeza da perfeição divina e ama a Deus porque Ele primeiro nos amou (cf. Jo 4, 19)”.

    E continua: “O que importa nesses momentos é não desanimar, mas continuar a servir a Deus como nos momentos de suave consolação. Com efeito; tudo passa, mesmo os maiores valores criados, e só Deus fica. Felizes portanto são aqueles que guardam fidelidade quando provados, porque após o túnel vem a luz ou acima das nuvens está o céu com a sua bem-aventurança” (Pergunte e Responderemos n. 547, janeiro de 2008, p. 47-48).

             Seu segundo agradecimento vai à sua família. Aos seus pais, que lhe deram a vida num momento difícil da história e que, com grandes sacrifícios, mas com amor lhe prepararam um lar magnífico que, à moda de uma luz clara, iluminou todos os seus dias até o fim. O Papa emérito diz dever também a seu pai a fé lúcida que sempre teve. Esta fé, lembra Ratzinger, foi um marco tão profundo que sempre esteve assente em meio a todas as suas conquistas científicas; a profunda devoção e a grande bondade de sua mãe são um legado pelo qual nunca se poderá agradecer suficientemente. Também sua irmã o ajudou, por décadas, de forma abnegada e com carinho; seu irmão, com a lucidez de suas ponderações, sua resolução vigorosa e serenidade de coração, sempre lhe abriu caminho; sem a determinação do irmão precedendo acompanhando-o ele diz que não teria conseguido encontrar o reto caminho.

             Lembremo-nos de que Ratzinger era filho de Joseph, um oficial de polícia rural e de Maria, uma cozinheira profissional. Teve sua infância num ambiente calmo e tranquilo em meio à natureza, mas nas ruas surgiam frequentes polêmicas entre nazistas e antinazistas. Seu pai também polemizava por discordar dos lúgubres projetos de Adolf Hitler. Consequência: teve de se mudar várias vezes de casa e por pouco escapou da prisão.

             Mais ainda: a família é a célula mãe da sociedade. Aqui, o Papa emérito recém-falecido lembra o Catecismo da Igreja Católica n. 2207: “A família é a célula originária da vida social. É ela a sociedade natural em que o homem e a mulher são chamados ao dom de si no amor e no dom da vida. A autoridade, a estabilidade e a vida de relações no seio da família constituem os fundamentos da liberdade, da segurança, da fraternidade no seio da sociedade. A família é a comunidade em que, desde a infância, se podem aprender os valores morais, começar a honrar a Deus e a fazer bom uso da liberdade. A vida da família é iniciação à vida em sociedade”. Bento XVI viveu isso de modo harmonioso não obstante as terríveis circunstâncias históricas que o cercavam.

             A terceira gratidão do recém-falecido Papa emérito se volta para os amigos e amigas. Todos eles são para Bento XVI homens e mulheres, que Ele sempre colocou ao seu lado; lembra dos não poucos colaboradores em todas as etapas da sua jornada; dos professores e alunos que Ele lhe deu. De modo firme e convicto, Ratzinger os confia, com gratidão e sem exceção, à bondade divina. Agradece também ao Senhor por sua bela pátria no sopé dos Alpes da Baviera, na qual sempre viu brilhar o esplendor do próprio Criador. Agradece ao povo da sua pátria porque nele sempre pode experimentar, de novo, a beleza da fé. Rezou não pouco a fim de que sua terra continuasse sendo uma terra de fé sem esmorecimento. Finalmente, agradece a Deus por toda a beleza que pode experimentar em todas as etapas da sua vida, especialmente em Roma e na Itália que se tornou sua segunda pátria. Bento XVI nos relembra aqui o seguinte: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o achou, descobriu um tesouro” (Ecl 6,14).

             Convida, no alto de sua longa experiência de vida a cada fiel católico a não perder a fé e nem se deixar abalar pelos ventos das novidades que parecem apresentar a última palavra contra a fé da Igreja.  Parece, às vezes, que as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro serão capazes de oferecer resultados irrefutáveis ​​contra a fé católica. Bento, contudo, não se abalava com isso, pois viveu as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pôde ver como, ao contrário do que se alardeia, desapareceram as certezas aparentes contra a fé, revelando-se não ciência, mas interpretações filosóficas apenas aparentemente devidas à ciência; assim como é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance das suas afirmações e, portanto, a sua especificidade. Acompanhou ainda – e sobretudo – o caminho da teologia por mais de sessenta anos, especialmente das ciências bíblicas, e com a sucessão de diferentes gerações viu desabar teses que pareciam inabaláveis, revelando-se meras hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher, etc.), a geração existencialista (Bultmann etc.), a geração marxista. Viu até o fim de seus dias como a razoabilidade da fé emergiu e ressurge cada vez mais do emaranhado de hipóteses. Só podemos afirmar que Jesus Cristo é verdadeiramente o caminho, a verdade e a vida e a Igreja, com todas as suas deficiências no âmbito humano, é verdadeiramente o Seu corpo.

             Aqui, o jornalista Carlos Alberto di Franco pode constatar, analisando a encíclica Spes salvi, que nela Bento XVI desnuda a inconsistência das esperanças materialistas e faz uma crítica serena, mas profunda à utopia marxista. Segundo o Papa, Marx mostrou com exatidão como realizar a derrubada das estruturas. “Mas, não nos disse como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém.” Marx “esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. (…) O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior. (…) Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor” (Correio Popular, 25/12/11, p. A2).

             Mais ainda podemos ver na sua obra Jesus de Nazaré: O “problema bíblico-teológico” que tenta distinguir o “Jesus histórico” do “Cristo da fé” fez correr muita tinta e envolveu diversos estudiosos a partir de 1920 em especial, mas se resume no seguinte: pelos Evangelhos, como temos hoje, sabemos apenas o que as primeiras comunidades cristãs professaram sobre Jesus (o Cristo da fé), mas não o que Ele realmente foi e ensinou (o Jesus histórico), dizem. Depois de debater o assunto, conclui: Para a minha representação de Jesus, isto significa principalmente que eu confio nos Evangelhos. Naturalmente pressupõe-se tudo o que o Concílio e a moderna exegese nos dizem sobre os gêneros literários, sobre a intenção narrativa, sobre o contexto comunitário dos Evangelhos e o seu falar neste contexto vivo. Acolhendo tudo isto – enquanto me foi possível – quis tentar representar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o “Jesus histórico” no sentido autêntico. Estou convencido, e espero que também o leitor possa ver, que esta figura é mais lógica e historicamente considerada mais compreensível do que as reconstruções com as quais fomos confrontados nas últimas décadas. Penso que precisamente este Jesus – o dos Evangelhos – é uma figura racional e manifestamente histórica…” (vol. I, p. 17s).

             Pede, por fim, de modo muito humilde, que rezemos por ele, para que o Senhor, apesar de todos os seus pecados e faltas, o acolha nas moradas eternas, pois ele sempre rezou por todos. – Como não recordar aqui de Santo Estêvão Harding, um dos três fundadores da Ordem Cisterciense, que, no dia 28 de março de 1134, na presença de cerca de 20 abades da Ordem, vindos a Cister, disse: “Asseguro-vos que vou a Deus com o mesmo temor e tremor que eu teria se não tivesse feito nenhum bem; porque se algum fruto a divina Bondade produziu de minha fraqueza, temo não ter correspondido à graça como devia” (Catolicismo n. 748, abril de 2013, p. 38). É próprio dos homens e das mulheres de Deus se sentirem pequenos ante a Sua grandeza infinita.

              Deixei para o final, contudo, em certo trecho do seu modesto, mas profundo Testamento espiritual, Bento pede perdão a quem ele, eventualmente, ofendeu. Isso traz à memória Santo Ambrósio de Milão: “Errar é comum a todos os homens, mas arrepender-se e pedir perdão é próprio dos santos” (Apologia David ad Theodosium Augustum II, 5-6).

             Desta vez, somos nós em nome de não poucas pessoas quem dizemos: Bento XVI, obrigado pelo seu testemunho entre nós. Descanse em paz e, de junto de Deus, rogue por nós!

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