O Documento sobre a Família

    Em nossa Arquidiocese, junto com o Ano Mariano Nacional (que comemora os 300 anos do encontro da imagem de N. Sra. Aparecida nas águas do Rio Paraíba), também vivenciamos o Ano da Família, com viés vocacional. Assim, Maria nos ajuda a aprofundarmos a Exortação Apostólica Amoris Laetitia (A Alegria do amor) publicada pelo Santo Padre, o Papa Francisco, no dia 8 de abril de 2016, como fruto dos Sínodos Extraordinário e Ordinário da Família, ocorridos, respectivamente, em 2014 e 2015.
    Estamos em uma época em que as dúvidas tomam proporções midiáticas e tendem a despertar a atenção sobre algum aspecto particular desse Documento. Desde o começo, muitas perguntas foram levantadas a partir do capítulo VIII da Exortação. A pergunta seria sobre o acesso ou não à recepção da comunhão eucarística a casais divorciados e recasados.
    Tive a oportunidade de apresentar, assim que foi lançada a Exortação, uma chave de leitura da mesma, e esse artigo foi amplamente divulgado. Ela reafirma, em continuidade com a moral católica, o valor do matrimônio de acordo com as Escrituras (Mc 10,1-12; Lc 16,18; Mt 19,1-9; 5,32; 1Cor 7,10s) e a Tradição, que traz muitos textos dos Padres da Igreja especialmente, valorizando a união natural e sacramental entre um homem e uma mulher até que a morte os separe.
    Aliás, se houver impasse entre uma lei humana que permita a dissolução de um matrimônio verdadeiramente contraído e consumado e a Lei de Deus, é preciso obedecer a esta última. (Cf. Atos 5,29). Isso o afirma São João Crisóstomo: “Não apeles para as leis promulgadas pelos que estão fora… Naquele dia, Deus não te julgará por essas leis, mas por aquelas que Ele mesmo promulgou”. (Comentário sobre 1Cor 7,39s). A lei humana para ser acatada, em consciência, deve fazer eco à Lei natural moral.
    O povo de Deus, de acordo com Rocco Buttiglione, professor na Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, acolheu e seguiu o ensinamento papal da Exortação, pois é o ensinamento da Igreja. São suas palavras: “O sensus fidei [sentido da fé – nota minha] do povo cristão reconheceu-o imediatamente e seguiu-o”. Alguns grupos parecem desconcertados pelo fato de não ler nesse texto a confirmação das suas teorias, e tem “dificuldade para ouvir a novidade surpreendente da sua mensagem. O Evangelho é sempre novo e sempre antigo. Precisamente por isso, nunca é velho”. (Cfr. L’Osservatore Romano, 21/07/16, p. 8).
    Existe no texto a diferenciação feita pelo Santo Padre, na linha de grandes teólogos, entre os aspectos objetivo e subjetivo de uma situação de pecado. É bom lembrar que para existir um pecado grave é preciso que a pessoa saiba o que faz, queira fazer e faça. No Catecismo da Igreja Católica, se lê: “Para que um pecado seja mortal, requerem-se, em simultâneo, três condições: ‘É pecado mortal o que tem por objeto uma matéria grave, e é cometido com plena consciência e de propósito deliberado’. (Reconciliatio et Penitentia n. 17)” (§ 1857).
    Logo abaixo, porém, sem obscurecer o que acima está dito, entra o aspecto subjetivo da questão: “A ignorância involuntária pode diminuir, ou mesmo desculpar, a imputabilidade duma falta grave. Mas parte-se do princípio de que ninguém ignora os princípios da lei moral, inscritos na consciência de todo homem. Os impulsos da sensibilidade e as paixões podem também diminuir o caráter voluntário e livre da falta. O mesmo se diga de pressões externas e de perturbações patológicas. O pecado cometido por malícia, por escolha deliberada do mal, é o mais grave”. (§ 1860)
    Fica claro, como bem colocou o Prof. Rodrigo Guerra Lopez, do CISA, de Querétaro, México, no L’Osservatore Romano, 28/07/16, p. 6/7, que “o reconhecimento objetivo da subjetividade não é subjetivismo”. Que significa isso? – Significa que há uma Verdade imutável no Deposito de Fé da Igreja e este é inalterável, portanto, algo objetivo. Desse modo, o adultério é e será sempre pecado. Todavia, o questionamento colocado é: será que todos os divorciados recasados estão (subjetivamente) em pecado mortal?
    Ora, fazer essa pergunta não é cair na “moral de situação” nem no subjetivismo – dar a cada um a decisão de seus atos morais como se o ser humano fosse plenamente autônomo (dependesse só de si como fonte da moral) e não teônomo (ter Deus como referencial certo da moral) –, mas é, sim, entender o ser humano em sua realidade concreta. Existe o questionamento se se pode levar em conta apenas a lei fria e rigorista sem considerar a pessoa humana em si.
    Continuando a reflexão do Prof. Rocco Buttiglione: na Exortação papal há “o clássico equilíbrio tomista que distingue entre o juízo sobre o fato do juízo sobre quem o realiza no qual devem ser avaliadas as circunstâncias atenuantes ou liberatórias”. (L’Osservatore Romano, 21/07/16, p. 8).
    Portanto, o Documento exorta a buscar o Sacramento da Confissão e – como em todo estado de pecado –, a partir daí, sob a luz de Deus nas orientações do sacerdote fiel à doutrina da Igreja, ver qual caminho percorrer: deveria entrar com processo de nulidade (a Igreja declara nulo um casamento que, apesar das aparências, nunca existiu, mas não anula um matrimônio validamente contraído e consumado)? Deveria abster-se de comungar enquanto a situação não for clara quanto ao primeiro casamento? Poderia receber a absolvição sacramental e, por conseguinte, comungar? São, como propõe o Documento, casos e casos com agravantes e/ou atenuantes diversas a serem resolvidas no Tribunal da Misericórdia de Deus, que é o confessionário. Há aí, portanto, uma gradualidade pastoral, não, porém, doutrinal: o pecado é e sempre será pecado.
    Por que, então, essa novidade na Amoris Laetitia? – Exatamente por que nem todos os que, hoje, contraem as núpcias têm, realmente, plena noção do que seja o Matrimônio. São pessoas que depois do Batismo tiveram uma formação de fé superficial (quando e se tiveram) – aliás, a catequese bem dada é uma necessidade urgente de nossos dias – e não conseguem, humanamente falando, ter consciência do ônus do que realmente assumiram diante de Deus e da Igreja. A eles, a Igreja, Mãe carinhosa, quer abrir e abre o caminho da acolhida e da misericórdia como fez o Pai misericordioso do Evangelho. (Lc 15,11-32)
    Daí, a palavra do Prof. Rodrigo Guerra Lopez: “O Papa Francisco não muda a doutrina essencial da Igreja. Não o faz porque sabe bem que o depósito da fé não é uma invenção arbitrária que se pode transformar com ideias mais ou menos felizes”. (L’Osservatore Romano, 28/07/16, p. 6/7)
    Desse modo, nestes tempos de tantas perguntas e tantas necessidades, estejamos unidos ao sucessor de Pedro, a quem o Senhor Jesus confiou o poder das chaves (cf. Mt 16,16-19), de confirmar a nós, os irmãos, na fé (cf. Lc 22,31-32) e de ser Pastor do rebanho, que é a Igreja (cf. Jo 21,15-17). Nisso eu creio, e porque creio estou sempre, como humilde colaborador, ao lado do Santo Padre na comunhão eclesial que nos une.

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