O Acontecer da Salvação – Cartas do Padre Jesus Priante

Lutero dizia que seu único e maior problema era se podia ou não ser salvo. Entrou num convento agostiniano para resolver seu problema existencial e saiu frustrado, deixando nas mãos de Deus o seu trágico dilema, humanamente impossível de resolver.

De fato, a “Salvação pertence a Deus”. Só pela Fé temos esta feliz esperança; embora não seja propriamente a Fé o que nos salva, pois, se assim fosse, seria escasso o número dos seus felizardos. Jesus, apesar de pedir aos seus discípulos e ouvintes terem Fé, prognosticou para o fim dos tempos a possibilidade de não encontrar Fé na terra (Lc. 18,8) e recriminava a seus ouvintes por não acreditarem na mensagem da sua Salvação.

Pela Fé e não pela razão, crenças ou méritos próprios, sabemos que, de fato, todos seremos salvos: justos e pecadores, crentes e ateus. A diferença em ter ou não ter Fé, diz Santo Agostinho, é a mesma que existe entre quem vê e um cego, ambos vivem, mas um vê e o outro não vê. Não é o mesmo sofrer um naufrágio ou a queda de um avião, para quem
crê e espera sua Salvação de Deus e quem carece desta esperança.

Para quem não crê, o único problema que torna absurda a vida, é a morte. Se morremos, nada tem sentido. Unamuno, ateu, o maior pensador espanhol do século XX, costumava dizer: “Só, tenho um problema: a morte. E este problema é ainda mais trágico porque morro, mas não posso e nem consigo morrer”. De fato, racionalmente é impossível matar de vez a vida. O suicida, afirma Pascal, não busca a morte senão uma outra vida, pois não quer viver a vida presente, muitas vezes insuportável. O instinto de vida ou impulso vital é inato em todo ser vivo. Por isso, é impossível morrer. A imortalidade é imperativa e postulado de nosso ser. E esta vida que de maneira irresistível queremos e buscamos, tem de ser feliz. De outra maneira seria contraditória. Por isso o “inferno”, é lugar da morte eterna, sem vida. “Somos sonhados para a vida”, diz o papa Francisco, que todos já temos em Cristo ressuscitado. Até Ele, as religiões e filosofias nos brindavam uma esperança incerta de viver após a morte, como um postulado da razão, incapaz de morrer, ou como consolo, diz Unamuno, aos que temos nascido para morrer. Freud via na religião ou crença uma ilusão e Marx, o ópio do povo. Mas sem essa ilusão ou ópio, a vida real seria trágica e “paixão inútil” (Sartre). De qualquer maneira, todos alimentamos um desejo e uma esperança de viver, superando o limite intransponível da morte.

O mito de Gilgamesh, que o povo da antiga Mesopotâmia cultuava há mais de 4.000 anos, mostra-nos que essa flor mágica da vida que buscamos e queremos, não a encontramos neste mundo. Com toda verdade temos de confessar: “O Senhor é minha luz e minha Salvação” (Sl. 27). Entretanto, estas palavras proclamadas por um crente antes de Cristo, expressavam apenas o desejo de todo ser humano que, não encontrando resposta ao problema da morte e ao problema ainda maior do pecado, no limite do desespero ou da angústia existencial, como interpreta Kierkegaard a Fé, nossa única saída é arriscar-nos a crer ou esperar nossa Salvação em Deus, como fez Abraão. Não porque
temos certeza da mesma, senão porque não temos outra saída existencial. “A certeza da
Salvação veio à terra em Cristo. Não foi dado ao ser humano outro nome no qual possamos ser Salvos a não ser Jesus Cristo” (At. 4). Aderir a esta verdade exige a Fe, dom de Deus e, ao mesmo tempo, ato livre e querido de toda pessoa pelo qual, em certo momento da sua vida, decidimos, como afirma Pascal, “apostar”, radical e absolutamente, a sorte da nossa vida em Deus. Não podemos acender duas velas, como costuma dizer o povo, uma a Deus e outra ao demônio
ou ídolo. Enquanto Deus não for tudo para nós, carecemos da verdadeira e única Fé que nos faz conhecer, de maneira segura e certa, nossa Salvação. “Fé a posse do que esperamos e o conhecimento do que não vemos.” (Hb.11,1)

Pela Fé a esperança é já realidade, diz São Gregório Nazianzeno (séc. IV).

O acontecer da Salvação pode ser contemplado de três maneiras:

HISTÓRIA SAGRADA

Até metade do século XX, o agir salvífico de Deus era conhecido através das narrativas bíblicas do povo de Israel, que chamávamos História Sagrada, diferente da história do mundo ou do agir humano. Outros povos tem também suas histórias sagradas.

O profano e o sagrado eram dois campos separados. Até nossos dias temos esta mentalidade
salvífica divina como história sagrada. De uma pessoa religiosa dizemos que deixou o mundo, sua história profana, para se “consagrar” a Deus e viver uma história sagrada. Dicotomia que a antropologia desmente. Mircea Eliade, possivelmente o maior estudioso do fenômeno religioso, considera o ser humano essencialmente religioso. Uma pessoa sem religião é anômala. Jung ia mais longe: “sem fé não podemos ser mentalmente equilibrados”.

A dimensão religiosa, afirma M. Eliade é anterior e fundamenta o profano. O mito, história sagrada, não só precede as filosofias e as ciências, como também as acompanha para poder pensar com sentido nossa existência humana e o mundo que habitamos. É possível não acreditar no Papai Noel andando pelos telhados e entrando pelas janelas, mas não sabemos responder ao por que não cremos nele. Nosso saber empírico- eficiente, ao conferir os dados da evidência, faz desaparecer o desconhecido, mas faz também aumentar o Mistério.

No passado, o desconhecido era visto com temor, hoje com angústia de vazio. Na década de 1970, Horkheimer, um dos maiores pensadores do século XX na Alemanha, reconhecia merecido e necessário lugar da teologia no campo do saber científico, O saber sagrado nos mostra que o êxito e o fracasso, alegrias e tristezas não são a realidade última, conclusão que as ciências humanas não nos podem dar. A crença religiosa capta o rugido do ser aberto ao novo a culminar em Cristo, demasiado homem para ser só homem e que, após dois mil anos, nos interpela e provoca hoje mais do que nunca.

No século VI a.C., Xenofanes, pretendeu se libertar dos mitos dizendo: ”porque se os cavalos pensassem, pintariam os deuses como cavalos”. Platão, mais tarde, fugindo dos mitos, acabou inventando o mítico mundo celeste das idéias. Seu discípulo Aristóteles, escolheu ficar na terra à procura da ”substância” de um frango que até hoje ninguém encontrou no curral das coisas.

A cultura secular que o Iluminismo e positivismo nos legaram, dessacralizou as coisas, mas estas se rebelam e nos remetem ao mistério perguntando-nos: Por que há ser e não nada? Para que serve nossa liberdade? Sem o mistério, saber sagrado, diz Gabriel Marcel, a vida torna-se irrespirável.

O fenômeno religioso que os mitos e histórias sagradas narram não é fruto de uma mentalidade primitiva e subdesenvolvida como Comte disse, nem do
convívio social, segundo Durkheim, menos ainda neurose como afirma Freud ou “ópio do povo” segundo Marx, mas constitutivo do ser humano. Cícero deriva o termo religião do
latim “re-elegendo” (ler de novo) a vida na sua relação necessária com Deus, e chamava negligentes (preguiçosos) os não religiosos.

Santo Tomás de Aquino concebe o ser humano enquanto ordenado a Deus (Ordo hominis ad Deum).

Desmitizar ou dessacralizar nossa cultura, diz Barth, leva-nos a jogar a criança com a mesma água com a qual a banhamos. Sem Deus, o ser humano, é mero mamífero nem sequer evoluído. A História é uma e só pode ser sagrada para ser humana, embora, para ser Salvífica, precisa conhecer a lei da graça que nos veio em Cristo.

No regime da Lei, que nos obriga a merecermos nossa própria Salvação, a história sagrada é apenas relato grandioso de um passado originário, distante de nós mesmos. De fato, Deus libertou seu povo da escravidão, mas a escravidão continua na humanidade. Davi venceu o gigante Golias, mas os pobres deste mundo são dominados e vencidos pelos poderosos. Será preciso entender a história sagrada na sua dimensão de futuro, como um passado que garante a Salvação.

HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

Depois do Concílio Vaticano, a História Sagrada que, como dizemos acima é a única história do mundo, é contemplada como um acontecer dos tempos regidos pela graça Salvadora de Cristo, que o profeta Isaías vislumbrou: “Todos verão a Salvação de nosso Deus” (Is. 52,10). A Salvação segue seu curso desde os primórdios da Criação ainda que tenha de trilhar os caminhos tortuosos do pecado. Há um fio condutor inquebrantável que une todos os fatos da história e criaturas ao Reino de Deus. “Somos de Deus e a Ele pertencemos” (Sl 100,3).

Lactâncio, chamado o Cícero cristão, do século III, derivou o termo Religião do latim ”re- ligando” (duplamente ligados) a Deus Criador como suas Criaturas e ao Deus Salvador como filhos Seus em Cristo.

Na história, vista apenas como sagrada, Deus nos precede e acompanha. Na sua perspectiva salvífica, transcende a própria história. O passado não mais é memória senão “memorial”, prolepse (antecipo) protótipo e causa exemplar da mesma Salvação esperada no futuro, presente em Cristo Ressuscitado.

Os grandes acontecimentos da história sagrada vividos pelo povo de Israel, foram preâmbulos desse futuro glorioso. A vocação de Abraão, a libertação da escravidão do Egito, as proezas do rei Davi, o retorno do Exílio e outros fatos reais ou lendários, não por isso menos históricos, fizeram da história sagrada narrada no AT uma história de crescente esperança. Se Deus nos tirou no passado da escravidão do Egito, Ele nos libertará de toda outra escravidão. Esta é a lógica da Fé e da esperança, incipiente no povo de Israel, à luz do grande acontecimento da sua libertação do Egito, epicentro da sua fé e memória de futuro, celebrado na Páscoa, por isso, ao termo do rito pascal se diz: “Hoje (ainda hoje) escravos, mas amanhã livres”. O sonhado amanhã do povo de Israel tornou-se presente na manhã da Ressurreição de Cristo. Desde esse radiante amanhecer, “não somos mais escravos, senão filhos, herdeiros da vida eterna pela graça de Deus” (Gl. 4,7).

A Ressurreição de Cristo é o único fato da história do mundo que une o passado e o futuro. Tudo quanto aconteceu, acontece e acontecerá, consuma-se em Cristo, memorial e visão (flashforward) de nosso futuro que, por estarmos na estrada do tempo ou da história, percebemos só pela Fé, por isso, muitas vezes, vacilantes, o experimentamos de maneira insegura e incerta.

“Caminhamos pela Fé e não pela visão” (2Cor. 5,7). Entretanto, da mesma maneira que as estrelas a cintilar na noite prometem e garantem radiante amanhecer, também, no nosso dia a dia, passando pelo vale escuro do pecado, da dor e morte, a Ressurreição de Cristo nos comunica, como certa e segura, a Salvação aos que cremos, pois a história não é apenas sagrada senão acontecer salvífico. Não mais lemos a história pessoal ou do mundo com a nostalgia de um paraíso perdido, nem inseguros de ser ele nosso destino. Lembro o choque emocional que me proporcionou ao ler, na década de 1970,o pequeno livro de Carlos Mesters, “Paraíso, Saudades ou Esperança?” Ainda o pecado original me reportava a um passado feliz perdido, a ser recuperado por méritos próprios e pelo sofrimento e a morte de Cristo. A história ainda não era em mim de Salvação da qual tomei consciência no ano 1975 ao inserir na minha existência o acontecimento da Ressurreição de Cristo. Eu tinha ouvido dela, mas como fato constitutivo da minha história e da história do mundo. A partir daquele momento, alegrias e tristezas, êxitos e fracassos, vida e morte, passaram a ser momentos do meu futuro glorioso. Comecei ler o livro da vida, como faz o povo judeu na sua literatura, invertendo a ordem das páginas, a partir da última página da história, que é a Ressurreição de Cristo. Só esta página ilumina e dá sentido a todos os acontecimentos de nossa vida e do mundo.

O HOJE DE NOSSA SALVAÇÃO

A história sagrada nos remete a um passado; a história da Salvação e a um futuro glorioso. Por isso, São Paulo nos diz que somos Salvos na esperança. (Rm. 8)

Psicologicamente, todo futuro, como costumamos dizer, é “obscuro” e a esperança muito alongada nos poderia levar ao desespero. O teólogo Oscar Cullmann percebeu esse “handicap”, interpretando a Salvação como um “já, mas ainda não”. De fato, em várias passagens bíblicas, particularmente do NT, revela-se o ”já da nossa Salvação”, “esse tempo que chamamos hoje” (Hb. 3,13).

Na noite em que Jesus nasceu em Belém, os anjos anunciaram aos pastores que cuidavam dos seus rebanhos no campo: ”Hoje nasceu-nos o Salvador” (Lc. 4,21).

No início da sua vida profética, na sinagoga de Nazaré, após ter lido uma passagem do profeta Isaías, Jesus disse aos ali congregados: “Hoje se cumprem as palavras de Salvação que acabam de ouvir” (Lc. 4 21). Estando em casa de Zaqueu, tido como pecador público, detestado e condenado pelo povo, Jesus lhe diz: “Hoje chegou a Salvação nesta casa” (Lc. 19,9). Ao malfeitor criminoso que morria crucificado ao seu lado, Jesus lhe disse: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc. 24,43). Na teologia chamamos a esse hoje salvífico “kairós”, oportunidade singular ou momento no qual acontece nossa Salvação, no qual a eternidade se faz presente na estrada do tempo em todos os acontecimentos.” Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados e nem um só fio deles se perderá” (Lc. 21,28).

Nada acontece por acaso ou arbitrariamente, assim como nada está fatalmente predeterminado, nem pela natureza das coisas, nem pela vontade de Deus, pois negaria a liberdade de Deus, da qual nos fez partícipes.

A História é o acontecer no horizonte de infinitas possibilidades, objeto da vontade livre de Deus e também da nossa, como Ele nos revela na cura do Cego de Jericó, a quem Jesus pergunta: “Que queres que te faça?”. Ambas as vontades, de Deus e do cego, não estavam determinadas. A cura salvífica acontecia naquele “hoje” ou momento.

Nem tudo o que acontece é vontade de Deus, nem vontade do homem. O pecado, “mistério da iniquidade”, em nós e no mundo, distorce a história da Salvação, mas não a pode destruir, porque Deus a assumiu em Cristo e seguirá seu curso até ser consumada no fim dos tempos. Esta aventura salvífica do ser humano e da Criação, por vezes, caótica e trágica, terá um final glorioso e feliz, porque “a Salvação pertence ao Deus”.

São Paulo faz esta leitura otimista da História: ”tudo coopera para nossa Salvação” (Rm. 8,28). As lágrimas, diz o grande poeta hindu Tagore, são estrelas na noite de um radiante amanhecer, e a as alegrias são lampejos de um dia feliz. Nosso otimismo salvífico não repousa no passado vitorioso acontecido, nem na esperança de um futuro melhor. Fundamenta-se no sol sem
ocaso do “hoje” no qual Cristo Ressuscita em cada momento da História. Por isso Jesus nos recomendou ficar em permanente vigilância. Só dorme quem espera mais um dia. Quem vigia, espera no hoje de cada dia.

Perguntaram ao noviço Jesuíta São Luiz Gonzaga, seus companheiros, enquanto jogavam no pátio: “Que você faria se agora Cristo lhe chamasse para ir com Ele? – Continuaria jogando, pois o estou esperando hoje”.

No século XVII, à raiz do terremoto que destruiu a cidade de Lisboa (1o. de novembro de 1755), Leibniz defendia a tese de que este mundo que habitamos é o melhor dos mundos que Deus poderia ter Criado. Nada mais contrário ao plano salvífico de Deus que nos projeta a Novos Céus e Nova Terra onde o mar (pecado e morte) não mais existe (Ap.21,1). O melhor dos mundos está por vir.

A história não se esgota na História. Nenhum momento ou memória pode reter o acontecer da Salvação. Ele é esse “going” contínuo, ao mesmo tempo ,futuro e presente, um “hoje” ou “kairós”, instante favorável que nos faz eternos.
Por isso, Deus “lembra-se das suas promessas de Salvação, não de nossos pecados”, daquele passado sempre carente e imperfeito que não podemos reverter. A Salvação não pode ser entendida como uma reconstrução ou redenção, mas como uma nova Criação. “eis que eu venho e faço tudo novo” (Ap.21, 5). A grandeza de nossa Fé cristã, frente a todos os credos religiosos, reside radicalmente em que todo dia, em cada momento, nascemos de novo, sem o carma de nossas culpas nem a frustração de não termos realizado nosso último sonho. “Hoje, diz São Paulo, a Salvação está mais próxima do que quando começamos” (Rm. 13,11)

DEUS REVELOU-SE A MOISÉS NUMA SARÇA ARDENTE QUE NÃO SE CONSUMIA: “EU SOU AQUELE QUE SOU. O DEUS DOS TEUS PAIS, DE ABRAÃO, ISAQUE E JACÓ” (Ex.3,1-15)

Este episódio bíblico confirma a tese de Mircea Eliade: O sagrado fundamenta o profano. A iniciativa na história da Salvação é sempre de Deus. Nele vivemos, existimos e somos (At.17,20). Não só nos tem Criado, como também chamado. O episódio da sarça ardente de Moisés, mito ou lenda, torna nossa existência e a existência do mundo mais real e histórica, como afirma o historiador judeu Abba Eban. O nome de Deus revelado neste acontecimento, “Javé”, Aquele que é, não tem um sentido estático, mas ativo e presencial: Eu sou Aquele que está e Aquele que faz ser, Criador e Salvador. Deus não está distante, “no Céu”, nem é indiferente a tudo quanto nos acontece, como o concebeu Aristóteles (séc. IV a.C.), que foi quem O definiu como “pensamento do Seu próprio pensamento”, a Quem podemos amar, mas Ele não nos pode amar, pois seria infeliz, contaminado com nossas misérias ou necessitado de nós para existir.
Deus, dizia, só pode ser solitário. No século XVI o ser humano pretendeu ser apenas racional, substituindo a fé pela ciência. Movimento filosófico que atingiu maior auge a partir do século XVIII , até culminar com a “morte de Deus” proclamada por Nietzsche. Apagando a divina “sarça ardente”, nós e o mundo que habitamos, perdemos seu fundamento e coexistência. Marx profeticamente o reconheceu: “Tudo o que é sólido desmancha-se no ar”. O sociólogo Bauman qualifica o tempo presente de “líquido”, inconsistente. Nietzsche lamentava que a morte de Deus nos mergulhou “numa noite interminável”. Heidegger, na sua tese doutoral “Ser e Tempo” (1929) via no ser das coisas uma realidade atirada (dasein), suspendida no abismo do seu próprio nada, definindo o ser humano:” ser-para-morte”. De fato, sem nossa dimensão religiosa, pela qual contemplamos o ser e a vida de tudo quanto existe alicerçado no Ser de Deus, tudo carece de base e de sentido.

Os emblemáticos Exercícios Espirituais, possivelmente a
espiritualidade que mais influiu nos cristãos de ocidente, iniciam sua primeira meditação com o título ”Princípio e Fundamento”. De fato, se podemos assentar nossa vida sobre outra base fora de Deus, nenhuma espiritualidade nos serve, os latinos teriam toda razão em denominar a “matéria” (mater) nossa mãe, inerte e sem vida. O fenômeno religioso não é acidental, mas constituinte do ser humano. “sarça ardente que não se consome” que nenhum ateu pode extinguir. O ponto de partida da nossa dimensão religiosa ou de relação com Deus é um sentimento profundo de dependência e desejo infinito de todo ser humano, afirma Schleiermacher. Mas essa “rocha” inabalável ou pedra angular do universo só nos serviria para pensar não para viver, se dela não sair à água da vida, como Deus revelou a Moisés no deserto.

Deus não é um ser gélido ou triângulo perfeito sem braços, como o concebe a maçonaria, mas ser atuante de amor e misericórdia que chama a ser ao que não existe e dá vida aos mortos. Dar a conhecer o nome significa na Bíblia entregar sua própria pessoa a quem o revela. Por isso, o verdadeiro nome de Deus é “Emanuel”, Deus conosco. O povo de Israel o invocará como seu aliado, unido nas suas lutas. Cristo irá mais longe, nos unido em ser e vida ao proprio Deus.

Há um detalhe eloquente ao revelar, Deus, seu nome a Moisés, na sarça ardente. O texto alude a dois nomes divinos: “Eu sou aquele que sou” (Javé) e “o Deus de vossos pais”. O Sarah ou Todo-Poderoso e o Eterno Javé misericordioso. O primeiro nome é patrimônio de todas as religiões e nos relaciona com Deus com sentimento de temor. Sua grandeza nos faz indignos de lhe receber em nossa casa, como confessou o Centurião a Jesus (Mt. 8,8) e que não muito evangelicamente também nós, católicos, confessamos, antes do rito da comunhão. O segundo foi revelado em Cristo e nos faz sentir filhos de Deus no amor, livres de todo temor. Finalizando o comentário da “sarça ardente”, manifestação do sagrado em nossa vida profana, também nós podemos contemplá-la no sol. Ele também arde há mais de cinco bilhões de anos. Muitas culturas até o divinizaram, Moisés tirou suas sandálias para se aproximar da sarça ardente em sinal de estar pisando em terra santa ou divina. Hoje o sol é uma simples fornalha de hélio que, apesar de ser fonte de vida, nele não ouvimos falar a Deus.

São Francisco de Assis reconheceu no sol a sarça ardente de Moisés, o chamou irmão, e cantou nele a glória de Deus, lamentando tê-lo tido presente tanto tempo sem percebê-lo.

Os Céu e a Terra Proclamam a Vossa Glória

Deus manifesta-se e nos fala de muitas maneiras. Todas as Criaturas revelam-nos sua presença. Até confessamos isso quando dizemos: Deus está em todo lugar. “Moisés reparou que a sarça ardia sem se consumir e disse: Vou olhar mais de perto”. Vamos olhar mais de perto a flor que desabrocha, a semente que germina, o sol que acorda todos os dias, pois “Os céus e a terra narram as maravilhas de Deus”.

“NÃO QUERO QUE IGNOREIS OS FATOS DO PASSADO A NOS SERVIR DE EXEMPLO” (1Cor. 10,1-12)

Os fatos do passado, reais ou lendários, cumprem uma dupla função. O papel da História, “mestra da vida”, como a definia Cícero, e também promessa de futuro. Ortega y Gasset representava os fatos da História como tábuas de um naufrágio a flutuar no mar que nos mostram os perigos em nossa travessia pelo mar da vida. São Paulo adere em certa maneira a tal interpretação da História, remetendo-nos à árdua travessia do povo de Israel pelo deserto que, apesar de terem presenciado os sinais milagrosos de Deus, murmuraram e não confiaram Nele. R. Guardini faz uma leitura realista da História e da nossa vida pessoal. Nossa existência, diz, não é auto-inteligente nem segura. Ela é precária e desordenada, e considera o mito do pecado original a melhor explicação para a nossa realidade. A ciência pretende superar este mito e acaba ficando cega ou, como afirma Wittgenstein, sem tocar a vida sequer com um dedo. Além de não ignorar os fatos, tábuas de um naufrágio, será preciso não esquecer a precariedade do próprio navio no qual viajamos, o pecado no qual temos nascido. A outra função da História, no seu sentido positivo, é contemplar os fatos salvíficos de Deus, que sempre estarão presentes no meio de todas as tempestades, como causa exemplar de uma realidade mais sublime,
“protótipo” ou memorial de futuro.

As desgraças e males deste mundo nos revelam nossa prioridade e limite de sentido, e nos dispõem a esperar de Deus nossa Salvação. Os
êxitos e conquistas fortalecem essa nossa esperança. Se Deus nos cura de uma doença, nos curará de todas. Se nos chamou do nada para existir, nos chamará da morte para viver. Sem Deus as desgraças tornam-se trágicas e tudo de bom, maná efêmero.

Alegrias e tristezas são os fios que tecem nossa existência, porque Deus nos destinou para uma vida eterna e feliz.

Se não tivéssemos tristezas, as alegrias poderiam nos alienar, e se não tivéssemos alegrias poderíamos desesperar.

Só existe um pecado, disse Hegel, na sua interpretação da História como um devir, até atingir o Absoluto: “parar no finito”.

Santo Agostinho experimentou a vida como inquietude, almejando descansar em Deus.

JESUS INTERPRETOU DOIS FATOS TRÁGICOS ACONTECIDOS EM JERUSALÉM: A MORTE DE ALGUNS GALILEUS REBELDES CONTRA O DOMÍNIO ROMANO, ORDENADA POR PILATOS A SER EXECUTADA NO ALTAR SAGRADO DO TEMPLO, E A MORTE DE 18 PESSOAS ESMAGADAS PELA QUEDA DA TORRE DE SILOÉ, DIZENDO:
“ACREDITAIS QUE POR TEREM SOFRIDO ESSA SORTE ERAM MAIS PECADORES DO QUE TODOS OS HABITANTES DE JERUSALÉM? NÃO, EU VOS DIGO, MAS SE NÃO VOS CONVERTERDES, PERECEREIS DO MESMO MODO. ” (Lc. 13,1-9)

Nas tragédias naturais não encontramos culpados, embora nós possamos culpar a nós mesmos e pensarmos ser um castigo de Deus ou uma prova para nossa Fé.

Essa leitura histórica dos fatos, ao menos depois de Cristo, carece de sentido. Deus não causa o mal e nem sequer, como costumamos dizer, o permite.

O mal cósmico remete-nos à natureza da própria Criação que, para existir “separada” de Deus no tempo e no espaço, estará sujeita ao mal até retornar a Deus. Mas também o mal, fruto da nossa perversidade: guerras, violência, injustiças e todo tipo de mal infligido livremente pelo ser humano, tem de ser interpretado dentro do mistério da iniquidade.

O pecado é mais forte do que nós. Não por isso, nos exime de lutar contra ele, mas, como a morte, só Deus pode o vencer em nós. A Vitória já é antecipada em Cristo Ressuscitado, mas precisamos esperar até o fim de nossa vida pessoal e da história deste mundo, como Jesus nos revela na parábola do Joio e trigo.

Consola-nos saber que o mal, o pecado e a morte, não têm futuro. O bem será pleno. Esta esperança feliz que temos em Cristo, diz São Pedro, numa das suas cartas, nos purifica de nossos pecados e nos liberta da morte.

Porque existe o mal, afirma São Tomás de Aquino, é que existe Deus, para dele nos Salvar.

A nossa Precariedade e a Salvação

Jesus interpreta os males acontecidos em Jerusalém: um cometido pela perversidade de Pilatos, o outro ocasionado por uma tragédia natural, para nos revelar nossa precariedade e necessidade de esperar nossa Salvação de Deus. Nisto consiste o que chamamos conversão.

A Conversão

Não se trata de retificar uma conduta moral, que nunca podemos realizar, pois, na nossa condição humana, o pecado é nosso existencial ou maneira de ser, mas reconhecer que só em Cristo temos a vitória sobre o mal.

A Fé não nos livra dos problemas nem de nossas deficiências, Ela lhes dá sentido. Faz-nos passar pelo árido deserto deste mundo à terra florida do país dos vivos. O sentido último de nós e do mundo se nos revela sempre de novo, ao mesmo tempo em que permanece oculto. O último sentido é o limite do sentido, que nos faz transcender em Deus.

O Mistério da Iniqüidade e a Douta Esperança

A razão postula a Fé para não se tornar irracional e insensata. Guerras, tragédias, dor, doenças, morte, injustiças e todo tipo de mal, que chamamos de”mistério da iniqüidade”, só encontram sentido na “douta esperança” da Salvação que temos em Cristo. A única lógica que encontramos no sofrimento, nosso verdadeiro problema existencial, pois, para a morte até podemos encontrar sentido na própria natureza, mas não encontramos razão para explicar e entender por que sofremos. Na filosofia chamamos isto de “problema limite” que a razão não pode superar.

As religiões apelam à justiça de Deus, que castiga os maus e premia os bons, negando o verdadeiro Deus, revelado em Cristo: bom para com todos e Salvador do mundo. O sofrimento, ao qual o mesmo Deus assumiu, Jesus nos disse ser caminho “necessário” da nossa glorificação. Pela cruz, à Luz, tem sido o grande slogan do cristianismo . Ele é loucura para a razão, escândalo para toda crença apenas religiosa, mas sabedoria de Deus, nos diz São Paulo. Lutar e tentar evitá-lo faz parte do mesmo sofrimento que, à maneira de parto doloroso, nos fará passar à vida eterna e feliz em Deus.

No sofrimento, dizia Albert Camus, só cabe o desespero. Para nós, que cremos em Cristo, só cabe a esperança da Salvação.

Pereceremos como as vítimas de Jerusalém acima citadas, sem essa feliz esperança, não porque os descrentes e ateus se condenem, porque todos seremos salvos, nos revelou Jesus: “Vim para que todos tenham vida” (Jo.10,10) – O que nos é revelado, ao comentar, Jesus este episódio, é ser Ele Quem de fato nos Salvará. Só Nele o mal é transformado em bem e a morte em vida.

Padre Jesus Priante Espanha.
Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.
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Direitos Reservados.

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