Notas para a leitura de Querida Amazônia

    A Exortação “Querida Amazônia” (QAm), do Papa Francisco, tem dois pontos de partida bem evidentes: (a) a indignação diante das violações dos direitos das pessoas e dos povos, bem como da própria natureza; e (b) o fascínio diante da beleza e do equilíbrio da criação, da sabedoria e da harmonia dos povos tradicionais da região. Avança reforçando a necessidade de uma síntese entre social e espiritual, numa perspectiva cristã (cf. QAm 62-65) e desenvolvendo as ideias de valorização das culturas locais e da inculturação do Evangelho (cf. QAm 70-75).

    Francisco não deixa de reconhecer a importância do progresso, nem a possibilidade de um desenvolvimento sustentável e harmonioso da região. Também reconhece a necessidade de uma política indigenista que se encaminhe para a integração e a interculturalidade. Contudo, o texto não deixa dúvidas quanto ao fato de que os exemplos positivos ainda são poucos e insuficientes diante das injustiças praticadas e das ameaças aos ecossistemas. Além disso, a integração e a interculturalidade devem partir do respeito à autonomia e à autodeterminação dos povos – reconhecendo inclusive o direito ao isolamento voluntário (QAm 29). Ainda nesse ponto, deve-se sublinhar que o Papa acompanha a posição da comunidade científica internacional, que tem apontado os perigos que a devastação da Amazônia apresenta para o mundo, em função do impacto que trará particularmente para as mudanças climáticas globais (QAm 48). Referindo-se também à chamada “internacionalização” da Amazônia, apontando que esse não é um caminho de solução dos problemas, ainda que sejam louváveis e necessárias as colaborações de organismos multinacionais e organizações da sociedade civil”. Em lugar de uma “internacionalização”, o importante é a atuação responsável dos governos nacionais (QAm 50). Nesse sentido, a Exortação é um poderoso grito de denúncia contra os erros históricos praticados na região.

    Esse quadro da Amazônia só se completa, porém, com a percepção de “todo o seu esplendor, o seu drama e o seu mistério” (QAm 1). Mesmo os erros (o drama) ganham sua justa perspectiva só a partir do fascínio pela obra de Deus. Como na Laudato si’, o jogo entre indignação e denúncia, beleza e fascínio orienta a posição humana mais adequada, capaz de valorizar o que deve ser valorizado e condenar o que deve ser condenado. Nessa perspectiva, o texto faz várias referências a poetas latino-americanos, católicos ou não; à sabedoria dos povos indígenas, sua sobriedade feliz e sua vida em comunidade (QAm 71); à diversidade de espécies, querida pelo próprio Criador (QAm 49,54). Nas palavras de Andrea Tornielli, no Editorial de apresentação da Exortação, “um texto escrito como uma carta de amor […] que ajudam o leitor a entrar em contato com a maravilhosa beleza daquela região, mas também com seus dramas diários”. A trilha da beleza, na sensibilidade de Francisco, é o caminho que nos afasta de uma militância raivosa, meramente negativa, e nos aproxima da contemplação do mistério e da capacidade de valorizar o bem que existe no mundo.

    A inculturação do Evangelho, particularmente entre as comunidades indígenas, se torna um fio condutor, ora implícito, ora explícito, ao longo da Exortação. Essa atenção não nasce de uma questão demográfica (as populações indígenas são realmente minoritárias na Amazônia de hoje) ou midiática (ditada pela importância dada ao tema pelos meios de comunicação). Nasce, em primeiro lugar, da atenção evangélica aos mais frágeis e vulneráveis (QAm 75), mas também a uma sabedoria acumulada em suas culturas (QAm 70-72), que permite a síntese que levará a uma “santidade com rosto amazônico” (QAm 77-78).

    O caminho tanto para essa inculturação do Evangelho quanto para desenvolvimento socioambiental justo e inclusivo passa pela escuta (QAm 26-27). Francisco reafirma continuamente na Exortação a importância de ouvir, primeiro passo para dialogar e para encontrar soluções criativas e baseadas na realidade concreta, local e não de ideias abstratas e vindas de outros contextos (QAm 66-70).

    Toda a perspectiva socioambiental não estará completa, nem se realizará a contento, sem o anúncio explícito do encontro com Cristo. “Como cristãos, não renunciamos à proposta de fé que recebemos do Evangelho”, diz o Papa (QAm 62). Os povos amazônicos “têm direito ao anúncio do Evangelho” (QAm 64). “A inculturação do Evangelho na Amazónia deve integrar melhor a dimensão social com a espiritual, para que os mais pobres não tenham necessidade de ir buscar fora da Igreja uma espiritualidade que dê resposta aos anseios da sua dimensão transcendente. Naturalmente, não se trata duma religiosidade alienante ou individualista que faça calar as exigências sociais duma vida mais digna, mas também não se trata de mutilar a dimensão transcendente e espiritual como se bastasse ao ser humano o desenvolvimento material […] Deste modo resplandecerá a verdadeira beleza do Evangelho, que é plenamente humanizadora, dá plena dignidade às pessoas e aos povos, cumula o coração e a vida inteira” (QAm 76).

    As dificuldades pastorais da Amazônia recebem atenção numa extensa parte do documento (QAm 81-103). O Papa observa que essas questões serão resolvidas na medida que se desenvolve essa inculturação cheia do Espírito, com comunidades cada vez mais vivas, leigos atuantes e solidariedade de outras comunidades (cedendo, por exemplo, missionários e sacerdotes para a região).

    O Papa já havia falado da Amazônia como algo “nosso”, não no sentido de uma posse, mas de uma responsabilidade e um afeto compartilhados (QAm 37, 55), termina a Exortação defendendo o diálogo e o trabalhar juntos para superar os conflitos e as adversidades, inclusive numa postura ecumênica e inter-religiosa (QAm 104-110).

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