Luzes e sombras sobre a família

    A Igreja, iluminada pelo Evangelho, sempre lembrou uma verdade básica: “A Família é a célula mãe da Sociedade” e, com São João Paulo II, repete que “o futuro da Humanidade passa pela Família”. Nestes tempos de tantas controvérsias é muito importante refletirmos sobre a base fundamental ou alicerçadora da vida social. Além das luzes e sombras que hoje existem sobre a família, encontraremos também na História várias situações críticas sobre a mesma. É claro que temos muitas correntes e visões na História, porém seria interessante confrontarmos dois lados da moeda.
    A família monogâmica e estável é uma decorrência da própria Lei Natural Moral impressa por Deus no ser humano. Daí entendermos porque todos os povos em diferentes épocas têm, apesar de algumas contestações minoritárias, a família como base de todas as demais instituições sociais.
    Porém, a família, enquanto instituição, sofreu – como sofre hoje nos planos teórico e prático – contestações ao longo dos tempos. Dentre os que a atacaram estão Platão, filósofo falecido em 347 a.C., Thomas Morus, filósofo dos tempos modernos, Thomas de Campanella, no século XVII, além de outros pensadores mais recentes até chegar à verdadeira guerra antifamília que temos nos dias de hoje, conforme tem denunciado, com certa reiteração, o Papa Francisco.
    Platão, ao descrever uma “sociedade ideal”, prega a total comunhão de bens a seu modo. Contudo, nela não só casas, animais e outros utensílios estariam a serviço de todos, mas também a partilha das mulheres e das crianças, por ele desprezados como seres de segunda categoria, estavam previstas nesse Estado onipotente. São suas palavras: “Nem o pai conhece o seu filho, nem o filho sabe quem é seu pai”, portanto, logo depois do parto as crianças todas são levadas a um lugar comum, tipo de orfanato, mas chamado de lactário (lugar do leite), e as mães aí poderiam amamentá-las, mas apenas por alguns dias. O restante dos cuidados seria dado por terceiros, e as parteiras teriam entre outras atribuições a de jamais permitir a uma mãe reconhecer o seu próprio filho naquele amontoado de bebês. (Cf. República 457 d. 464 d. apud E. Bettencourt. Curso de Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, s/d, p. 121).
    De algum outro modo, contestações semelhantes foram repetidas ao longo do tempo: Thomas Morus, em sua obra Utopia, no século XVI, por exemplo, concebeu uma sociedade sem classes. Nela a família seria abolida por completo. Um século depois, Thomas de Campanella, em sua obra Civitas Solis (Cidade do Sol, 1623), retomou as teses de Platão, dando um passo além: na sociedade que ele inventaria, homens e mulheres viveriam em casernas com dormitórios separados e – segundo critérios da Medicina e da Astrologia – separariam como se fossem animais os pares aptos à procriação. As crianças nascidas desse consórcio arbitrário seriam imediatamente entregues ao Estado e este lhes daria toda a educação necessária para a vida. Pais e filhos jamais se conheceriam e a comunhão de bens incluía a partilha das mulheres entre os homens.
    Todos esses pensamentos foram retomados no século XIX por outros pensadores que afirmavam, sem base científica ou histórica, o seguinte: em suas origens, o homem e a mulher viviam na promiscuidade sexual, de modo que qualquer homem teria acesso a qualquer mulher que desejasse, pois predominava a “comunhão de bens”, e a mulher era um ser humano inferior. Depois, teria havido o matriarcado (as mulheres mandavam) e, por fim, a monogamia. Esta só veio após as experiências anteriores, de forma que a família de acordo com a Lei Natural Moral nunca existiu, segundo tais pensadores. Com base em todos esses pensamentos, Friederich Engels, um dos grandes líderes marxistas, propôs, no século XIX, a extinção da família, pois esse modelo seria, de acordo com ele, o exemplo vivo da opressão da mulher pelo homem, assim como era a opressão dos patrões aos empregados nas fábricas. Mais: não haveria nenhuma distinção entre homem e mulher, e os filhos de um casal deveriam ser educados pelo Estado, não pela família.
    No século XX, o psicólogo Ernest Boernemann retomou algumas ideias de Platão e de Marx, a fim de reimplantá-las e se possível ultrapassá-las. Em resumo, ele defendeu o fim da monogamia e da propriedade particular. A geração humana não deve ser feita dentro do matrimônio – que, segundo Boernemann, precisaria ser extinto – mas pelas tecnologias (fecundação in vitro, que seria heteróloga, ou seja, entre um homem e uma mulher estranhos ou, ao menos não casados, dado que o matrimônio seria extinto) e as diferenças entre homem e mulher deveriam ser reduzidas ao mínimo. Afinal, segundo o psicólogo em foco, a sociedade sem classes, pregada pelo comunismo, deve levar à sociedade sem distinções naturais, como se vê no homem e na mulher.
    Podemos ver por aí a teoria do livro “Admirável mundo novo”, muito difundido no século passado, e também a atual teoria da não-existência de uma lei natural e sim, apenas, de uma lei positiva para determinar todos os comportamentos humanos.
    Todas essas teses foram preparando terreno, a fim de que surgisse a ideologia de gênero – outro sistema ideológico denunciado pelo Papa Francisco – cujos primeiros passos já eram dados no século XX com Simone de Beauvoir, que pregava o seguinte: “Ninguém vem ao mundo mulher, fazem-te mulher” e o consequente também seria verdadeiro “Ninguém vem ao mundo homem, fazem-te homem”. Essa extinção da diferença entre homem e mulher seria levada à educação das crianças, às escolas e aos demais espaços profissionais. Teríamos – e agora a ideologia de gênero propõe isso – um ser humano neutro e não de acordo com a sua sexualidade biológica.
    Colocados esses problemas todos, voltemo-nos aos antropólogos e etnólogos da sociedade Anthropos, de Viena (Áustria), que respondem às teorias acima por meio do estudo de povos que, ainda no século XX, viviam como nos primórdios da História (ou da Pré-História?) de modo a poder oferecer um retrato fiel da humanidade primitiva: os pigmeus, na África central, os indígenas, nas Américas, os esquimós, na Oceania, etc.
    Os membros do grupo de estudos – Schimidt, Gusinde, Koppers e Schebesta – agiram por etapas, ou seja, primeiro aprenderam a língua dos nativos, depois conquistaram a sua confiança e, por fim, passaram a viver entre eles e ouvir seus relatos para poderem formular o resultado de suas importantes pesquisas, reunidas em seis grossos volumes, que leva o título Der Ursprung der Gottesidee. Tais pesquisas, contudo, não tiveram grande difusão nas Universidades, pois não confirmavam, mas, antes, confrontavam-se com o pensamento marxista predominante na chamada “classe intelectual” do século XX. Esse é um método que utilizam – não aceitar contestações bem fundamentadas para que a própria mentira propalada seja difundida.
    Como quer que seja, o resultado desse árduo trabalho chegou até nós com dados importantes, que os referidos autores dividem por partes, ou seja, vão desde o que chamam de cultura originária até a alta cultura, passando pela cultura média ou primária e mista. Vejamos o que nos apresentam esses ricos resultados.
    Há 600.000 anos, período paleolítico antigo, houve o surgimento do homem, que vivia do que colhia dos produtos da terra, pois não sabia cultivá-la de modo sistemático nem caçar animais, por isso eram chamados de caçadores e coletores primitivos; os homens trabalhavam fora e as mulheres em casa ou próximo dela.
    O matrimônio era monogâmico com a primazia do homem, mas o respeito às mulheres era garantido. A união conjugal era estável, sendo o divórcio coisa rara ou grande exceção. Reconhecia-se a propriedade particular, não existia aristocracia nem escravidão do ser humano e a religião era monoteísta, com o culto a um Deus que é Pai e Remunerador do que os homens fizeram de bom ou de ruim. Essa pesquisa, como dito, respondeu às teorias marxistas e, por essa razão, foi segregada de não poucas instituições de ensino do nosso tempo.
    Esses mesmos beneméritos estudiosos nos deixaram ainda outros dados: na cultura média ou primária, há 100.000 anos, aparecem os caçadores superiores, cultivadores e pastores. O ser humano realizou progressos na indústria, confeccionando instrumentos simples, mas úteis à caça aos animais de modo contínuo. Da domesticação dos animais vem o regime pastoril (dos pastores). Isso muito distingue esse homem daquele da cultura paleolítica, que caçava apenas para sobreviver. Também o solo passa a ser cultivado de forma metódica e eficiente, mas tudo isso é acompanhado, infelizmente, da decadência moral e religiosa.
    Sim, há o predomínio do homem sobre a mulher, surgindo, assim, o patriarcado, além de ser o matrimônio não mais monogâmico, mas, agora, poligâmico (um homem poderia ter várias mulheres, porém uma mulher não tinha vários homens), aparece aqui também o direito de primogenitura, ou seja, o filho mais velho tinha direito à maior parte na herança do pai. No campo religioso, passa-se a cultuar os astros, especialmente o Sol como símbolo do homem forte e subjugador. Admitem-se vários deuses (politeísmo) e surge também a magia (o ser humano tenta dominar Deus por meio de ritos específicos). Ao lado dessa tendência, aparece, especialmente entre os cultivadores da terra, quase em contrapartida, o regime de matriarcado (a mulher tem maior destaque que os homens) e a deusa maior é a Mãe Terra, símbolo da força feminina geradora da vida e forte nos momentos difíceis. Os homens se reúnem em sociedades secretas e prestam culto aos mortos e a seres naturais, como as plantas. Daí o animismo.
    Na cultura mista, ainda segundo os mesmos etnólogos austríacos, nos anos 5000 e 3000 a.C. as figuras do pastor e do agricultor se unem, dando origem aos homens do campo ou camponeses. A vida familiar volta a se solidificar e o trabalho harmonioso entre marido e mulher ajuda a reequilibrar a vida social. A consciência religiosa é ainda obscura, com o culto aos astros, aos seres naturais (plantas, terra, água etc.), desenvolve-se a magia a ponto de deixar de lado o culto ao Ser Supremo, que é Deus, o Criador de tudo.
    Chega-se, por fim, à alta cultura, período datado de 3000 a.C. mais ou menos, e sobre o qual já há diversos documentos históricos. Têm-se aqui os grandes impérios como o Egito, a Assíria, a Babilônia entre outros, de modo que as classes sociais vão se diversificando, o poder despótico aparece com a divinização do monarca. O politeísmo tem seu auge com muitos deuses e semideuses (deuses de segunda classe) e a decadência moral tem também sua preponderância na vida social. O erro ganha status de verdade e vice-versa. É o Cristianismo quem vai salvar os povos dessa verdadeira barbárie a valorizar a Lei Natural Moral e promover a revolução do Evangelho, cujas normas são exigentes, mas acessíveis a todos pela graça de Deus.
    A digressão feita nos campos da História, da Antropologia e da Etnologia pode parecer cansativa, mas é uma grande forma de demonstrar os erros que se semeiam nos dias de hoje ao se falar da cultura humana originária.
    Seria para se sentir vergonha de retomar tal pensamento em pleno século XXI, no qual tanto se fala na dignidade humana, especialmente na das mulheres e das crianças. Nesse ponto, os estudos atrás expostos dissipam as teses errôneas que o desconhecimento alimenta.

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