ETERNA É SUA MISERICÓRDIA

‘Ele é nosso “going to” existencial, futuro contínuo, que se realizará em cada um de nós no último ano em curso de nossa vida e, no fim dos tempos, para toda a Criação. Essa é a “Feliz Esperança” de Cristo, nossa Páscoa.’

Coube ao papa João Paulo II a inspiração de dedicar este domingo à Misericórdia de Deus, completando assim o verdadeiro sentido pascal da Ressureição de Cristo. A maior parte dos cristãos, ainda hoje, não tomou consciência da dimensão salvífica da Páscoa como uma libertação não só da morte, mas também do pecado, um mal maior do que a própria morte. De fato, nossa vida imortal seria trágica e insuportável se, após esta vida, tivéssemos de carregar a culpa de nossos pecados. Seria essa uma das razões pela qual muitos delinquentes, para se libertar do seu sentimento de culpa, suicidam-se. A Salvação que Cristo nos brinda com sua Ressurreição nos comunica uma vida imortal e gloriosa e também a santidade de Deus. Esse é o
sentido bíblico, de “justiça”, a bondade e a Misericórdia de Deus a nos comunicar a Vida Eterna como um dom ou graça, independentemente de nossos méritos.

Deus é mais santo e bom do que nós pensamos. Ele é Justo, que significa bom e santo. Três vezes santo, como cantamos, o que significa boníssimo.

Na década de 1950, Adorno, da Escola filosófica de Frankfurt, negava a Ressurreição porque a justiça é impossível de ser realizada. O mal feito é irreversível. Toda compensação para reparar esse mal é incompleta. Ninguém pode devolver a vida que lhe foi arrebatada por um assassino ou a paz à pessoa ofendida. Sendo a Ressurreição o passo desta vida mortal a uma vida imortal, nos tornaria a todos credores ou devedores, ofensores e ofendidos. E assim como é impossível neste mundo que as partes de um pleito fiquem plenamente satisfeitas com o veredito do juiz, incapaz também de equacionar os fatos à lei, à vida após a Ressurreição seria insatisfeita e infeliz. O Papa Bento XVI, reportando-se ao argumento de Adorno, justificava a necessidade da Ressurreição precisamente em nome da justiça. Porque esta é impossível de se cumprir, mesmo tendo a Deus como Juiz, pois o merecido castigo do malvado não pode devolver nunca o bem infligido ao inocente, é que torna-se necessária a Ressurreição, pela qual nascemos, bons e maus, novas criaturas. Para o Papa Bento XVI, a Misericórdia de Deus é a garantia da nossa Salvação. Ela, conforme o termo hebraico a designa, “rahamim”, significa “entranhas maternas” a nos gerar de novo. Nascemos e vivemos no pecado e nele morreremos, pois só Deus é santo.

A Misericórdia é o plus do amor divino que nos faz seus filhos,
através do parto doloroso da morte, em que nasceremos imortais, gloriosos e santos pela Ressurreição. Fomos criados por Deus para existir neste mundo na condição de mortais e pecadores, mas Cristo veio para tornar-nos imortais e santos pela sua morte e Ressurreição. O realismo deste prodígio realiza-se na sua mesma pessoa. Pela sua Encarnação na nossa natureza humana assumiu o pecado e a morte do mundo e pela sua Ressurreição fomos todos divinizados. A sorte e o destino de Cristo são também nossos. Por isso São Paulo diz ser Cristo nossa Páscoa. Nele vivemos e morremos com nossos pecados, dores e mortes para, nele e com ele, Ressuscitar. Não é fácil superar o sentimento natural religioso que todos temos, pelo qual nos relacionamos com Deus externamente, como “pro-fanos” (diante da luz ou de Deus) para a Fé que nos faz sentir unidos a Deus. Por isso, afirma K.Rahner, o cristianismo só pode ser místico, experiência de comunhão com Deus em Cristo, de outra maneira não é cristianismo.

A RESSURREIÇÃO NOS LIBERTA DO PECADO

No cemitério deixaremos não só os restos mortais, também nossos pecados e culpas. O pecado identifica-se onticamente com o mesmo mal, “mistério da iniquidade”. Não sabemos o que de fato é, apenas o experimentamos nos múltiplos males que nos acontecem, inclusive, independentemente de nossa vontade e até dá vontade de Deus. É claro que o pecado ou o mal não pode ser um deus mau, rival do Deus bom e criador, como pensa a filosofia maniqueia, da qual todos nos participamos de alguma maneira, para poder dar uma resposta racional ao problema do mal.

A Biblia nos revela que o pecado, causa de todo mal e da própria morte, torna-se existencialmente consciente em nós como ato de idolatria, isto é, crer e esperar o ser e a vida fora do Deus único e verdadeiro, revelado a Abraão e aos seus descendentes, o povo de Israel.

Todas as religiões são boas na medida em que implicitamente confessam e invocam o Deus revelado a Abraão e, de maneira plena em Cristo.

Constantemente encontramos nos textos bíblicos as palavras: “Escuta, Israel, eu sou teu Deus e não há outro fora de mim” . Quando negamos este princípio existencial, tudo se reduz a pecado e morte, e nos priva da “graça” de Deus. Até popularmente costumamos designar nossos males como “desgraças”, isto é, desprovidos da graça . Santo Agostinho, definia o mal não como algo existente em si mesmo, mas como uma carência do bem que nós e o mundo ainda não temos, pois fomos criados do nada, e portamos esse nada ate sermos tudo em Deus. Pecado, morte e nada implicam-se mutuamente. A Salvação é a plenitude do ser e da vida que, pela Ressurreição, nós e toda a criação teremos. Antes de Cristo, essa salvação era uma promessa, que em Cristo Ressuscitado foi cumprida. Ele, disse o papa Francisco na sua bênção Urbi et Orbi domingo passado, não é um anjo nem um mito, mas a mesma pessoa de Deus à maneira humana que realiza a Salvação do mundo. Nem sequer o título de Salvador, como herói externo a nos libertar do pecado e da morte lhe seria apropriado. Ele mesmo é nossa Salvação. O que aconteceu na sua vida, morte e Ressurreição acontece em cada um de nós e em toda a Criação. Deus revelou-se a Abraão como Criador e Todo-Poderoso. Em Cristo como Salvador.

O pecado consiste agora em crer e esperar a vida fora de Cristo. Deixamos o deísmo das filosofias e religiões e mesmo o Deus de Abraão, para crer, ser e viver em Cristo. Por isso Jesus disse aos seus discípulos: “Vocês creem em Deus, creiam também em mim”. “Eu e o Pai, somos um”. “Quem me vê a mim, vê ao Pai” (Jo.14.) “Eu sou a videira e vocês os ramos, separados de mim não tem vida” (Jo.15). O pecado que nos priva da vida consiste em estarmos separados de Cristo. “Esta é a vitória que vence o mundo (símbolo de todo mal): a nossa Fé em Cristo” (1Jo.5,4). Ele reafirmou essa verdade de muitas maneiras, mas foi por ocasião da ressuscitação de Lázaro que solenemente disse: “Eu sou a Ressurreição e a Vida, quem crê em mim vive eternamente”.(Jo.11)

Em tudo quanto pensamos, cremos, fazemos e queremos buscamos sempre um resultado ou uma conclusão. Logo após a Ressurreição, inspirado pelo Espírito Santo, o apóstolo Pedro, livre de todos os preconceitos, nos legou a conclusão à qual chegará todo ser humano antes ou depois: “Não temos outro nome no qual possamos ser salvos (ter a Vida) a não ser Jesus Cristo”. (At.4)

Consola-nos que o pecado da incredulidade em Cristo, que nos priva da vida, também será vencido. O Espírito Santo nos dará essa graça: “Ele nos convencerá do pecado de não ter crido em Cristo” (Jo.16,9). O Anticristo, identificado com o Maligno, é tudo o que nos separa de Cristo. Mas ele já foi vencido em Cristo Rssuscitado.

“JÁ, MAS AINDA NÃO”

Pertence ao teólogo franco-alemão esta fórmula, que nos permite entender a Páscoa como real acontecimento da nossa Salvação. Já estamos salvos do pecado e da morte com todas suas tragédias, males e malícias, mas isto ainda se está realizando. Von Balthasar, do qual fizemos referência na semana passada, preferiu expressar este mistério através do símbolo do Círio Pascal. A Chama da Luz e da vVda arde triunfante consumindo ao longo dos tempos a cera da morte e do pecado do mundo presente. Por isso esse Círio é marcado com uma cruz e cinco chagas, e com a data do ano em curso, para significar que a morte e a Ressurreição continuarão até o dia em que Cristo apareça gloriosamente no Fim dos Tempos. O Evangelho de hoje, Jo. 20,19-31, confirma esta tese. Jesus aparece ressuscitado aos seus discípulos dizendo: “A Paz esteja convosco!” E mostrou-lhes as chagas dos cravos”. Aparentemente, depois de Cristo ou, melhor, com Cristo, tudo continua igual: doenças, dor, tragédias, guerras, pecados e mortes imperam em nós, mas como fermento na massa, a energia da Ressurreição nos vai transformando. Cristo continua morrendo e Ressuscitando em nós. Ele é nosso “going to” existencial, futuro contínuo, que se realizará em cada um de nós no último ano em curso de nossa vida e, no fim dos tempos, para toda a Criação. Essa é a “Feliz Esperança” de Cristo, nossa Páscoa.

“A MULTIDÃO DOS FIÉIS ERA UM SÓ CORAÇÃO E UMA SÓ ALMA” (At. 4,32-35)

Os frutos da Ressurreição são o amor e a unidade.

O mundo conhecerá que Cristo Ressuscitou na medida que criamos uma fraternidade universal. Pertence aos verdadeiros cristãos serem sinal e sacramento dessa unidade.

Toda divisão é diabólica. Diabo é uma palavra grega que significa divisão. O último desejo e testamento de Cristo foi: “Que todos sejam um” (Jo.17). François Mauriac in Life of Jesus, Vida de Jesus, diz que pela Ressurreição, Cristo não mais ficou confinado a sua terra natal, a Palestina, mas tornou-se realmente presente em todo tempo e lugar. Sua Encarnação no ser humano se tornou universal. Só nele é que podemos ser um. A verdadeira fraternidade consiste em nos sentir unidos a Cristo, como membros dum só Corpo. Jacques Maritain na década de 1940 defendia a tese que o único mecanismo possível é o Cristianismo. Os outros humanismos, como a história nos mostra, são um humanismo trágico. O filósofo inglês Hobbes (séc. XVII) definia o ser humano como “lobo para o homem”.

A comunhão de todos em Cristo é o plano da Criação e da Salvação de Deus. A unidade ou comunhão em Cristo é alimentada com todo gesto de amor e perdão. “Todo aquele que crê em Cristo, nasceu de Deus, e ama a quem o gerou e a todo aquele Deus gerou” (1Jo.5,1). O amor deixa de ser preceito para ser a coerência da nossa Fé. Mas como o pecado habita em nós até o fim da vida, sempre haverá em nós conflitos, ódios, indiferença que nos separam diabolicamente de Cristo. O perdão a recompor nossa unidade será sempre uma constante.

RECEBEI O ESPÍRITO SANTO. AQUELES A QUEM PERDOARDES OS PECADOS SER-LHES-ÃO PERDOADOS”. (Jo.20,19-31)

O poeta Robert Frost diz : “To be social is to be forgiving”. Não podemos conviver neste mundo sem exercitar o perdão, que não se reduz à mera desculpa ou conclusão duma dívida, mas a profissão da “cultura da doação”. Perdão significa dar sempre de novo (per-donar). Porque é dando que se recebe, diz São Francisco de Assis. A melhor definição de Deus que eu já encontrei pertence ao Papa Francisco: “Deus é aquele que dá”, nunca tira. O perdão de Deus para conosco não se reduz ao louvável sacramento da Penitência. Este sacramento se faz presente toda vez que nos perdoamos ou recompomos nossa união a Cristo perdoando-nos mutuamente e também a nós mesmos, muitas vezes este perdão para com nós mesmos é o mais difícil, causa e fonte de nossas angústias e depressões.

Mas o perdão não tem que estar ligado ao pecado propriamente. Inclusive, o texto grego do Evangelho deste domingo, não menciona nesse dom do perdão que Cristo ressuscitado deu aos seus discípulos o pecado, mas a entrega e doação que temos de fazer de nossa vida. Perdoar é dar palavras, coisas, amor e vida aos outros.

“DAI GRAÇAS AO SENHOR PORQUE É BOM, ETERNA SUA MISERICÓRDIA”(Sl.117)

“Que o diga a Casa de Israel: eterna é sua Misericórdia” “Que o digam os fiéis dos Senhor: eterna é sua Misericórdia” “Que o digam todos os povos: eterna é sua Misericórdia”.

Não teríamos palavras mais sublimes para este Domingo da Misericórdia de Deus do que este sublime salmo. Será o canto do fim da nossa vida pessoal e de todos os povos. Cervantes finaliza sua famosa novela, pondo nos lábios de Dom Quixote, no leito da sua morte, confessando aos seus escudeiro Sancho: “Não creio que meus pecados possam vencer a Misericórdia de Deus”. Foi a única derrota aceita por este desventurado cavaleiro a enfrentar os moinhos de vento.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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