Eros e Ágape na Encíclica Deus caritas est

Daniela Jorge Milani

Segundo Nietzsche, o Cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, enfraquecendo aquela que seria a verdadeira força impulsionadora de vida para o homem. Mas Bento XVI, em sua encíclica Deus caritas est (DCE), responde a essa crítica dizendo que essa ideia é equivocada e não atende ao apelo do verdadeiro humanismo.

Eros é uma força instintiva em direção ao outro, é amor que não depende da inteligência ou da vontade, mas, de certa maneira, se impõe ao homem. O próprio amor de Deus por seu povo foi retratado na Bíblia como erótico: “Sobretudo os profetas Oséias e Ezequiel descreveram esta paixão de Deus por seu povo, com arrojadas imagens eróticas. A relação de Deus com Israel é ilustrada por meio das metáforas do noivado e do Matrimônio, consequentemente, a idolatria é adultério e prostituição” (DCE, 9). O livro bíblico do Cântico dos Cânticos, que relata o desejo entre esposos, foi bem cedo entendido como a descrição do amor de Deus pelo homem e que exprime a união a que o homem é chamado a estar com seu Deus, pois sendo Ele a fonte de todo ser, é, ao mesmo tempo, “um amante, com toda a paixão de um verdadeiro amor”.

Mas o amor de Deus pelo povo é também descrito como ágape, ou seja, pleno de gratuidade, sem limites e condições. Novamente Bento XVI menciona o livro de Oseias, no qual Deus mostra que é capaz de perdoar a traição de seu povo com outros deuses, assim como em sua vida real Oseias perdoa sua esposa infiel. A reação de Deus mostra seu grande amor: “Como poderia eu abandonar-te, ó Efraim, entregar-te, ó Israel? […] Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas comovem-se. Não executarei o ardor de minha ira, não tornarei a destruir Efraim, porque eu sou Deus e não homem” (DCE, 10).

A gratuidade do amor se mostra precisamente no perdão. Deus poderia fazer justiça, punindo o povo que lhe foi infiel. Contudo, não consegue fazê-lo. Demonstra a compaixão decorrente de seu grande amor: “E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor” (DCE, 10).

Deus, portanto, eleva o eros, mas o coloca totalmente fundido ao ágape. Assim, a realização humana não é viver o eros até seu esgotamento, deixando-o subjugado ao instinto, o que traduzir-se-ia necessariamente na vivência egoísta da relação a dois, fazendo do outro um meio para obtenção de prazer e descartando-o quando já não é mais capaz de dar felicidade. É necessário vivê-lo juntamente com o ágape. O eros vem de Deus, mas tem necessidade de amadurecimento por meio de constantes purificações e sacrifícios. Isso não é sua destruição e sim sua cura (DCE, 5).

Desse modo, embora o eros seja inicialmente ambicioso, fascinação pela grande promessa de felicidade, depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais com ele, doar-se-á e desejará existir para o outro. E, assim, insere-se nele o momento do ágape. Se isso não acontecer, o eros decai e perde mesmo sua própria natureza (DCE, 7).

Enfim, é na superação do egoísmo, no dom de si, na gratuidade, que irá se desenvolver o amor humano para ser vivido segundo o mandamento de Cristo: “Amai-vos como eu vos amei”

Daniela Jorge Milani, mestre e doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP, é advogada em São Paulo.
 

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