Bento XVI, a Fé e a Misericórdia

    O L’Osservatore Romano, órgão de comunicação oficioso da Santa Sé, trouxe em sua edição n. 12, de 24 de março último, p. 6-8, uma extensa entrevista com o Papa emérito Bento XVI, um dos maiores teólogos de nosso tempo, a respeito da fé e da misericórdia, visando de modo especial as Idades Moderna (tempo da Reforma Protestante) e Contemporânea (nosso tempo, quase repleto de indiferentismo religioso ou insubordinação do homem a Deus).
    Dada a importância da temática, elaboramos uma série de artigos que percorrem os pontos mais importantes da fala do Papa Bento, certos de que poderão levar muitas pessoas à reflexão. De resto, eles deixam ver nas entrelinhas – ao contrário do que alguns podem pensar e até alardear – a continuidade nos ministérios de São João Paulo II, o dele próprio e, agora, o de Francisco. Trabalhemos os tópicos acrescentando, quando for o caso, considerações ilustrativas de outras fontes da Teologia.
    Que é a fé e como se chega a crer? – Esta pergunta é central na vida humana e merece muita atenção. Pois bem, Bento XVI a responde valendo-se da face dupla, mas complementar da fé, ou seja, o eu e o nós, o individual e o comunitário. Sim, escreve ele que “a fé é um contato profundamente pessoal com Deus, que atinge o meu tecido mais íntimo e me põe diante do Deus vivente em absoluta imediação, isto é, de maneira que eu lhe possa falar, amá-Lo, entrar em comunhão com Ele. Mas, ao mesmo tempo, esta realidade extremamente pessoal está inseparavelmente relacionada com a comunidade: introduz-me no nós dos filhos de Deus, na comunidade peregrina dos irmãos e das irmãs, faz parte da existência da fé. O encontro com Deus significa, também, ao mesmo tempo, que eu mesmo sou aberto, arrancado à minha solidão fechada e acolhido na comunidade viva da Igreja. Ela é também mediadora do meu encontro com Deus, que, contudo, chega ao meu coração de maneira totalmente pessoal”.
    Este trecho da fala do Papa emérito nos traz grandes lições de Teologia Fundamental e de Eclesiologia. Vamos realçar aqui alguns aspectos desses ensinamentos à luz dos Cursos de Teologia Fundamental e Eclesiologia da nossa Escola Mater Ecclesiae. O primeiro ponto é a fé, e o segundo é essa mesma vida de fé vivida de modo pessoal e comunitário. Vejamos.
    O Concílio Vaticano I (1870), diante das concepções errôneas de seu tempo, definiu que “a fé… é uma virtude sobrenatural, pela qual, prevenidos e auxiliados pela graça de Deus, cremos como verdadeiro o conteúdo da Revelação, não em virtude da verdade intrínseca das proposições reveladas, vistas à luz natural da razão, mas por causa da autoridade de Deus, que não se pode enganar nem enganar a nós” (Denzinger –Schönmetzer 3008 [1789]). Essa definição encerra um ponto importante: se na Filosofia (saber racional apenas, sem a fé), a verdade é intrínseca ou está na proposição mesma, na Teologia (saber suprarracional, não irracional, mas acima da razão), a verdade é extrínsica ou está fora da proposição. Não sendo evidente em si mesma, acreditamos por causa da autoridade d’Aquele que a revela a nós: o próprio Deus.
    No século XX, o Concílio Vaticano II (1962-65), tendo em vista outro contexto e novos problemas em relação à fé, assim se expressou: “Ao Deus que revela deve-se a obediência da fé pela qual o homem livremente se entrega todo a Deus, prestando ao Deus revelador um obséquio pleno do intelecto e da vontade e dando voluntário assentimento à revelação feita por Ele” (Dei Verbum, 5).
    Vê-se, assim, que a fé não é algo meramente cego e sentimental, como se todo ser humano tivesse de crer em alguma coisa sem saber bem o que é. Ao contrário, há de crer em algo que também a inteligência possa reconhecer. Embora não seja fruto de uma intelectualidade fria, também não pode ser fruto da mera confiança ou dos afetos do homem e da mulher. À fé se aplica a inteligência, faculdade mais nobre do ser humano, a tentar entender Deus, o objeto mais elevado e perfeito que podemos conhecer em nossa vida de peregrinos deste mundo em demanda da pátria definitiva.
    Dizemos, então, que a fé, como resposta à graça, é um ato da inteligência movida pela vontade. Sim, pois o objeto proposto pela fé não é evidente por si mesmo. Afinal, como se pode, diante da lógica clássica, dizer que Jesus é, ao mesmo tempo, Deus e homem? Pode Deus ser Uno e Trino? Como é que a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho, sendo Deus, a grandeza por excelência, se faz presente na pequena hóstia consagrada? etc. Ante tais proposições de fé, a inteligência fica em um impasse: “isso não se faz evidente por si mesmo como 2 + 2 = 4, mas também não é absurdo como se fosse possível existir um círculo quadrado ou o todo fosse menor que suas partes”. Em suma, não se está ante algo meramente racional ou evidente (diante da evidência, a razão teria de dizer Sim), mas também não se tem uma proposta irracional (ante esta deveria dizer Não). Como fará, então, a inteligência? – Passará a decisão livre à vontade: “Você quer ou não quer crer?” e ela decidirá pelo acatamento ou pela recusa.
    Volta-se, desse modo, ao que já mencionamos: a fé não se move pela verdade intrínseca (evidência), mas, sim, pela verdade extrínseca. Cremos porque nos apoiamos em Deus e Ele é digno de crédito naquilo que revela a cada um de nós. Ele não se engana nem engana as suas criaturas. É a fé um ato livre, um assentimento do homem ao seu Criador. Crer é um ato nobre do ser humano, dada a nobreza do objeto em questão, o próprio Deus.
    Aliás, em termos de fé humana (e não sobrenatural), todos acreditam, mesmo os que dizem não crer em nada. Sim, o homem crê no noticiário da TV, dos jornais, da internet, do rádio etc., uma vez que se ele decidisse comprovar se realmente ocorreu tudo o que lhe é transmitido, ficaria louco, pois deveria viajar para o Exterior a fim de confirmar, in loco, que o avião realmente caiu, dirigir-se ao prédio da Bolsa de Valores para ver se os dados transmitidos estão corretos; crê também que NN. é seu pai e NN. é sua mãe sem pedir exames etc. Desses poucos exemplos, vemos que a fé não é, de modo algum, coisa extraordinária na vida humana, mas faz parte do seu dia a dia. Ora, se cremos em tudo isso – caso contrário, ficaríamos loucos –  por que não crer em Deus que a nós Se revela?
    Porque as verdades de fé, nobres como são, mexem com o ser humano como um todo. Requerem, pois, mudança de vida ou vida reta na busca da verdade. Daí se esbarrarem com alguns fatores de ordem intelectual e moral como, por exemplo, a ignorância religiosa: há quem crie um fantoche da fé e atire nele como se aquele trampolim criado, gratuita ou maldosamente, fosse a fé a ser professada. Justifica-se a pessoa dizendo não crer porque pensa, erroneamente, que: os católicos adoram imagens, a Bíblia é contra a evolução e a ciência, Deus fez o mundo em seis dias, a Igreja não pode ser infalível, pois alguns de seus filhos erraram ao longo da História etc. Falta, pois, estudo sério, sereno e continuado das verdades de fé.
    Outro fator é o vício de métodos: a pessoa se intitula autodidata e começa a ler a Bíblia ou outros livros sem nenhum referencial seguro ou sem entender que a Tradição Oral é anterior à Escritura. Foi essa Tradição que deu origem à Bíblia e a acompanha. Querer aprender o texto bíblico sem essa Base ou sem saber de que gênero literário trata esse ou aquele livro bíblico é arriscar-se a fazer a Palavra de Deus dizer as maiores monstruosidades possíveis. Há quem aprenda ainda meias verdades, o que, em termos, é pior do que a mentira. Daí dizer um provérbio popular: “Aprender mal é pior que não aprender”. Imagine alguém que se apresentasse como piloto de avião, mas não soubesse conduzi-lo bem… quanta desgraça poderia causar? – No plano da fé, ensinar mal pode pôr em risco a vida espiritual de muitos irmãos e irmãs que esperam de nós a doutrina cristalina da fé e da moral todos os dias.
    Existem também os obstáculos de ordem intelectual. Eles vêm de um ser humano prepotente, que se julga no direito ou até no dever de colocar Deus de lado para assumir o seu lugar: “Ele não existe, mas eu existo, portanto sou um deus…”, pensam. A sensualidade também impede o ser humano de ser puro, a fim de ver a Deus (cf. Mt 5,8). Faz com que ele seja incapaz de querer mudar de vida para sentir o Senhor que lhe fala. Com efeito, já o filósofo Sêneca, falecido no ano 63 da nossa era, ensinava: “Se a virtude a que aspiramos é de tão grande valor, não é porque a isenção de vícios seja uma felicidade real, mas porque assegura à alma toda a sua liberdade e a prepara ao conhecimento das coisas celestes, tornando-a digna de conversar com Deus” (Quaestiones Naturales, Prefácio).
    Afirma, ainda, Bento XVI que a fé é uma resposta pessoal a Deus (“eu quero crer”), mas não há de ser vivida individualmente, e, sim, na Comunidade-Igreja, mediadora do meu encontro com Deus. Aqui entramos na Eclesiologia (estudo da Igreja) com uma pergunta decisiva: como alguém passa a fazer parte da Igreja visível? – Pelo sacramento do Batismo. Instituído por Cristo (cf. Mt 28,18-20; Mc 16,15-16), ele é a porta de entrada no plano da graça ou da vida sobrenatural (além da natureza). Pelo Batismo, o cristão morre sacramentalmente para o pecado e ressurge para a vida nova em Cristo. Ninguém entra na Igreja com “um ato burocrático, mas mediante o sacramento”, relembra o Papa emérito.
    Por isso se diz que o Batismo se dá já no momento do derramamento da água na cabeça de quem é batizado, criança ou adulto, mas ainda não se deu por inteiro, pois dependerá de como cada um viverá a graça batismal ao longo de sua vida. Quem a cada dia se esforça, não obstante as quedas, para fazer viver em si o novo homem, Cristo, e morrer o velho homem, Adão, por renúncia ao mal e pela prática do bem, está vivendo de modo coerente o seu Batismo. Ele é vida nova e divina aos filhos e filhas de Deus.
    Ora, a Igreja, mediante sua doutrina e seus demais sacramentos, ajuda cada um a bem viver o seu Batismo e, por conseguinte, chegar à plena união com Deus. Ela não se faz por si mesma, como destaca Bento XVI, ela é mais do que uma comunidade humana. É o Corpo místico de Cristo prolongado ao longo da história (cf. Cl 1,24; 1Cor 12,12-21), e nos acompanha por toda a nossa vida entregando-nos, se em nossa liberdade não nos desviarmos d’Ela, ao Pai celeste, no fim de nossa caminhada terrena.
    Resta-nos terminar essa reflexão com as palavras do Cardeal Henri de Lubac, SJ, ao escrever, de modo muito belo, o seguinte: “A Igreja é minha Mãe, porque Ela me gerou para a Vida. É minha Mãe, porque Ela não deixa de me alimentar e, por pouco que eu me preste, Ela me aprofunda na Vida. E, se em mim a Vida ainda é frágil e trêmula, fora de mim eu a contemplei na força e na pureza do seu borbulhar. Eu a vi, eu a toquei, de modo indubitável, e posso testemunhá-lo a todos”.
    Continua de Lubac a dizer também: “A Igreja é nossa Mãe, porque Ela nos dá o Cristo. Ela gera o Cristo em nós. Ela nos gera para a vida do Cristo. Ela nos diz, como Paulo dizia a seus caros coríntios: ‘No Cristo Jesus, mediante o Evangelho, eu vos gerei’ (1Cor 4,15). Em sua função materna, a Igreja é essa Esposa gloriosa e sem mancha que o Homem-Deus faz sair do Seu coração transpassado para uni-La a si no êxtase da Cruz e torná-La fecunda para sempre” (Paradoxe et Mystère de l’Eglise. Paris, 1967, apud E. Bettencourt, OSB. Curso de Eclesiologia. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1996, p. 244).
    Eis a razão pela qual aquele que tem fé busca vivê-la retamente, com a graça de Deus, em sua Igreja, hoje e sempre, apesar dos percalços a que todos estamos sujeitos no dia a dia.

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