A Hospitalidade nos faz Humanos – Cartas do Padre Jesus Priante

Hospitalidade, termo latino que designa o hóspede e aquele que o recebe para lhe servir (lhóspede= lavar os pés), é uma virtude sagrada, essencialmente humanitária.

Muitas culturas fazem referência a ela como sendo a maneira pela qual os deuses testam as bondades das pessoas.

O povo de Israel vai mais longe. A hospitalidade aparece em
vários relatos bíblicos como sacramento ou sinal da presença de Deus na pessoa que nos visita.

Dentro de uma cultura nômade ou seminômade, a hospitalidade era uma questão de vida ou morte para quem empreendia viagem com escassos meios de sobrevivência. Acolher um viandante ou peregrino era um dever sagrado. No cristianismo,a hospitalidade nos identifica como cristãos. “Quem vos acolhe, me acolhe a mim” (Lc. 10). “Eu era estrangeiro e me acolhestes” (Mt. 25,35).

No passado mais remoto, a casa familiar, tinha até quarto reservado para um
possível hóspede. Mais tarde, os caminhos sagrados darão lugar aos profanos, e a hospitalidade será comercializada. Constroem-se casas apropriadas, hospedarias e paradores, para cumprir esta finalidade, acolher o viandante.

Na Idade Média nascem os Hospitais e Hospícios, nomes que fazem referência à hospitalidade, recuperando sua sacralidade, de receber e servir os doentes mais pobres e necessitados, mas também esta sagrada e evangélica hospitalidade será profanada.

O mundo apropriou-se das palavras e desapropriou a hospitalidade do seu espírito.

Os Hospitais e Hotéis, lugares de hospedagem, tornaram-se santuários do deus dinheiro a quem servem e adoram hóspedes e hospedeiros. A indústria hospitalar e hoteleira movimenta uma parte colossal da riqueza mundial, carente de amor e misericórdia. Nossas casas, onde hospedar os mais necessitados, hoje, carecem de espaço e, o que é pior, ninguém arrisca-se a receber um estranho, pelo contrário, as protegemos e vigiamos temendo qualquer visitante “mal intencionado”.

As nações constroem gigantescas muralhas para impedir a entrada do peregrino emigrante à procura de melhor vida ou simplesmente para sobreviver.

Acesso ao Interior

Nós mesmos nos refugiamos dentro de nós mesmos em intransponíveis fortalezas,
vedando a entrada até dos mais íntimos, professando a antropologia de Hobbes (século XVII): “O homem é lobo para o homem”. Resta proteger-nos para não sermos mordidos pelos outros porque não somos mais humanos.

Sem um espírito hospitaleiro de acolhimento mútuo nos tornamos estranhos, indiferentes, enfrentados e inumanos. A hospitalidade humanizante é possível se no rosto de cada pessoa vemos o rosto de Deus.

Nas primeiras gerações cristãs dizia-se: “Vistes um homem, viste a Deus”. De fato, fomos criados à imagem e semelhança de Deus, esta é nossa verdadeira natureza. Se no outro não vemos a Deus, deixamos de ser humanos. Para universalizar este humanismo divino, Cristo assumiu a figura de servo (hospedeiro a lavar nossos pés) e de pecador (hóspede a acolher todos) para ninguém se sentir excluído na casa do Reino dos Céus. Por isso, no Juízo ou critério final da História, seremos identificados como humanos na medida em que percebamos em nossos semelhantes o próprio Deus, na pessoa de N. S. Jesus Cristo, especialmente nos mais pobres, pecadores e necessitados: os famintos, sedentos, nus, doentes, encarcerados e estrangeiros (Mt. 25, 35-36).

O Papa Francisco passará à História como o maior arauto do humanismo, baseado na hospitalidade. Não são muralhas, diz ele, que temos de construir senão pontes para acolher-nos uns aos outros. Receber um emigrante, diz o papa, é receber ao próprio Cristo.

Temos que professar a “cultura do encontro”, sermos “com os outros”e não viajantes solitários. Contra o culto narcisista de nós mesmos e idolátrico das estrelas de Hollywood, temos que ver em cada uma das pessoas o Sol de Cristo ressuscitado radiante em cada rosto humano.

JAVÉ APARECE A ABRAÃO. ELE VÊ TRÊS HOMENS DE PÉ, À ENTRADA DA SUA TENDA, RECONHECENDO NELES A PRESENÇA DE DEUS” (Gn.18, 1-10)

Este relato encarna a sacralidade da hospitalidade. Ver no outro que nos visita ou com quem nos encontramos a presença de Deus, não só nos humaniza como também nos diviniza.

Abraão está à porta da sua tenda em Mambré (Iraque) em dia de sol causticante. De repente, três homens desconhecidos, cansados do caminho, aproximam-se. Abraão os acolhe na condição de servo e hospedeiro, lava-lhes os pés, contemplando neles ao próprio Deus.

Cristo ratificou esta tese sagrada da hospitalidade, como mencionamos acima, e nos deixou este gesto como distintivo da nossa identidade cristã ordenando-nos “lavar os pés uns aos outros”, tradução literal da hospitalidade. A Carta aos Hebreus, 11, interpreta este episódio bíblico de Abraão no mesmo sentido.

Liderança Servidora

São Paulo fundamenta o espírito do servo, capaz de lavar os pés (hospedeiro) e servir dizendo: “considerando os outros superiores a ti”(Ef. 2). Sem este espírito de servo hospedeiro o outro carece de rosto divino e a hospitalidade converte-se mais numa perturbação do que uma bênção, que passamos a celebrar com um cafezinho, mais do que sinal de acolhida festiva, maneira de acelerar a despedida de quem nos visita…

Abraão prepara e brinda aos seus hóspedes um grande banquete. E Deus, presente naqueles homens, que não se deixa ganhar nunca em generosidade, lhe promete tudo quanto desejava: um filho da sua esposa Sara no qual prolongar, na sua corrente sanguínea a vida.

Isaque, esse filho que “sorri” e nos faz sorrir, prometendo-nos um futuro feliz, nos vem de Deus. Nos privamos Dele quando não caminhamos na Sua presença, que se faz visível em cada uma das pessoas que encontramos e acolhemos. Nossa existência é sublime quando sobrenaturalizamos tudo e, como aprendemos no catecismo, vemos a Deus em todo lugar, sendo o ser humano seu próprio santuário.

Onde está um ser humano, aí está Deus. Por isso a hospitalidade, que abrange toda acolhida, doméstica ou pessoal, dos outros, tem caráter divino.

Contra Sartre, que afirmava: “O inferno são os outros”, confessamos com um espírito de hospitalidade humanizante:

Estamos no
Céu, em, e com os outros.

“DEUS QUIS MANIFESTAR EM CRISTO A GLÓRIA ESPERADA QUE ESTÁ EM VOCÊS. MISTÉRIO ESCONDIDO DESDE O COMEÇO DOS TEMPOS E GERAÇÕES, E QUE AGORA É REVELADO AOS CRISTÃOS” (Cl. 1, 24-28)

São Paulo faz uma apologia ao Mistério de Cristo, no qual habita a plenitude da divindade. Nele temos “tudo em modo pleno”. Ele é a última extensão de nós e do universo. Além Dele o ser e a vida não podem esticar-se mais. Em termos darwinianos, Ele é o mutante de toda evolução, a sua meta definitiva, eterna e infinita em Deus.

Esta plenitude e “glória” da CRIAÇÃO foi “revelada aos cristãos “, significando que não somos verdadeiros cristãos, sem a absoluta convicção de que em Jesus de Nazaré radica toda esperança e possibilidade do devir da História. Podemos conquistar novos mundos, inventar novas máquinas, professar novas culturas, superar obstáculos e deficiências, mas jamais preencheremos o vazio do ser e da vida que temos sem Cristo.

Até o presente momento, a História não desmentiu tal tese. Ele é o único fundamento de tudo quanto existe e Seu Logos ou razão de ser, como nos é revelado em Jo.1.

Irreversíveis Frustrações

Da mesma maneira que o sonho paradisíaco do Comunismo humanista e ateu acabou em pesadelo e trágica alienação, também o novo sonho do progresso científico e tecnológico acaba, na vida de cada um, em irreversível frustração.

Não deixa de ser uma prova científica a experiência pessoal e o legado da História. Se até o presente a conquista da vida não foi possível, podemos prognosticar ,”cientificamente”, esse frustrante e trágico futuro do ser humano e do universo. Jesus nos desafia: “Porque sem Mim nada podeis fazer” (Jo. 15) “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”(Jo.14).

A ciência contempla estas verdades absolutas irracionais e incertas, anti-científicas por carecerem de instrumentos de verificação. Entretanto, nos diz Pascal, temos que afirmar que não existe nada mais irracional do que não reconhecer o limite da propria razão, que a ciência idolatra. Antes dos doutores das ciências sentarem na cátedra do saber humano, um rude pescador da Galiléia, Pedro, já atingiu seu cume dizendo ser Cristo o único que tem palavras de vida eterna. (Jo.6.)

Toda verdade científica ou racional afirma Popper, é “falseável”, isto é, o que sabemos hoje, amanhã será desmentido e conhecido de outra maneira. Iremos formulando mera opiniões, verdades provisórias e inconsistentes, como água que corre esquecendo sua nascente para mergulhar no absurdo do mar da morte.

A verdade ou Logos absolutos de Cristo não consiste em ser objetivamente a origem e fundamento da criação, senão ter-se feito “carne”, isto é, incorporado em nós e no mundo criado. Jesus de Nazaré não é mera pessoa histórica mas o próprio corpo ou sujeito da História, esse devir do ser e da vida, de tudo quanto existe, que Nele alcança sua plenitude.

No passado, a filosofia e teologia tentaram provar a existência de Deus como causa explicativa do mundo que, sendo contingente, exigia um ser absoluto, mas deixava o ser e a vida do mundo criado fora Dele. O mistério da Encarnação era reduzido a Jesus de Nazaré como pessoa divina externa, que veio salvar o mundo como o poderia fazer um poderoso herói. A definição de pessoa segundo Boécio (séc. V) “substância individual de natureza racional”, não só obscureceu o mistério de Cristo, como o novo ser humano. Antes de Cristo éramos “semelhantes” a Deus e, como pessoas, substâncias individualizadas por uma porção de matéria, éramos semelhantes entre nós. Depois de Cristo, Deus encarnado, somos “corpo” (realidade) de Deus.

Essa nova antropologia crística faz cada pessoa tão divina como o próprio Deus.

Quando ignoramos este novo humanismo que, como diz São Paulo, foi revelado só aos cristãos, passamos a nos conceber como meros “indivíduos”, porções humanas ou simples objetos contáveis para qualquer coisa. Um humanismo sem Cristo justifica as guerras, as injustiças, a fome, a pobreza e todo tipo de misérias. Torna nossas relações protocolares e robotizadas e nos vermos, uns aos outros, como fantasmas.

Cristo veio, afirma o Concílio Vaticano II, a nos revelar Deus e seu projeto de salvação e também nossa verdadeira dignidade humana.

São Paulo se fez arauto desse Mistério, dizendo que sua missão é anunciar “com toda sabedoria”, sem qualquer incerteza e dúvida, que em Cristo fomos divinizados. Passamos a ser, de meras criaturas, a filhos de Deus e irmãos entre nós.

“ENQUANTO CAMINHAVAM, JESUS ENTROU NUM POVOADO , E UMA MULHER, DE NOME MARTA, O RECEBEU EM
SUA CASA” (Lc.10, 38-42)

Este episódio evangélico inspirou ao longo dos séculos a dupla espiritualidade cristã, vida ativa e vida contemplativa, representadas na atitude de Marta e Maria, respectivamente.
Marta se defez em atenções e serviços para acolher Jesus em casa, enquanto Maria, “sentada aos seus pés escutava suas palavras”.

São Bento (séc. VI) propôs aos seus discípulos, os Beneditinos, unir ambas, estampando o espírito da vida monástica com o lema: “Ora et labora”, reza e trabalha. Uma sem outra, são igualmente alienantes. Por muito que trabalhemos, nos diz Jesus, não podemos acrescentar um só côvado à duração de nossos dias, mas também, sem nosso trabalho, de braços cruzados, profanamos a graça salvífica de Deus.

No contexto da mensagem central deste domingo, sobre a sagrada e humanizante hospitalidade, as atitudes de Marta e Maria, que acolhem Jesus na sua casa, iluminam o espírito que deve inspirar o acolhimento das pessoas que nos visitam ou encontramos em nosso dia a dia. Podemos fazê-lo de maneira funcional e protocolar, como Marta, preparando o necessário para servir da melhor maneira a quem recebemos. Tal pragmatismo hospitalar, o praticamos nas nossas relações comerciais, públicas e domésticas. No entanto, todos notamos a diferença entre apenas sermos servidos e sermos acolhidos.

Sem um sorriso, todas as portas ficam fechadas e mortas. Sem empatia, nos tornamos apáticos, distantes e estranhos. A eficiência serviçal, sem afeto, nos faz mesquinhos e sem alma ou “homo ex machina”.

O mero “funcionamento” esconde a morte, por isso, até qualificamos ela com o termo de “desfunçao”, que significa deixar de funcionar.

Jesus, ainda que pareça elogiar e preferir a atitude contemplativa de Maria e não o ativismo de Marta, mostra-nos a dimensão transcendental da hospitalidade . Não basta servir e fazer coisas para os outros, nem admirar seus méritos e virtudes, senão reconhecer em cada pessoa o rosto de Deus.

Sem a divinização das pessoas, até os mais íntimos nos incomodam. Maria acolhe Jesus como Deus, “escolhe a melhor parte”, o lado divino da hospedagem que nos faz inteiramente humanos e não meros funcionários ou máquinas que, por qualquer defeito, deixam de funcionar, rompendo a engrenagem da nossa convivência.

Estar com Deus é estar com os outros e vice-versa. Só na relação humano-divina a hospitalidade é sagrada e humanizante.

Padre Jesus Priante
Espanha.

Edição e intertítulos por Malcolm Forest
São Paulo.

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