“A gente dá um jeito!”

    Em 1977 chegou ao público a primeira edição do livro “Crítica da Razão Tupiniquim” do professor Roberto Gomes. O livro foi reeditado várias vezes, mas por opção do autor “foi mantido rigorosamente tal como na primeira edição”, como escreve no posfácio da 12ª edição. O projeto do livro é pensar a “Razão Brasileira”, isto é “pensar o que se é, como se é”. Desde a sua primeira edição até hoje houve alterações no modo de pensar brasileiro, porém muitas das intuições permanecem atuais.
    O capítulo sexto reflete sobre o mito da concórdia: o jeito. Escreve Roberto Gomes: “O ufanismo brasileiro privilegia um objeto: o jeito. É voz corrente que damos um jeito em tudo, do existencial ao político, do físico ao metafísico. E não paramos aí: ficamos muito satisfeitos em ser, pelo que nos parece, o único povo capaz de tão saudável atitude”.
    A sociedade tem leis e normas que regulamentam a convivência e o funcionamento social. Mas isto soa como formalismo, legalismo. “Eu sei que esta é a regra, mas não dá para dar um jeito”? “Seu guarda, eu sei que infringi a norma de trânsito, mas porque me multar”? Destes pequenos jeitos chegamos aos milionários que resultam em grandes corrupções. As normas são estas, mas para mim ou para aquele grupo são diferentes.
    Temos inúmeras regras de fiscalização, seja por legislação ou norma interna, nos processos licitatórios com objetivo de prevenir desvios. Vários tribunais analisam os contratos e seu cumprimento. Múltiplos documentos são exigidos. Com todo o aparato burocrático, a corrupção não diminuiu.
    Ilustrando com outro exemplo. Está em análise o afastamento do presidente da república. Se for afastado como será a sucessão? O debate sobre a sucessão é ilustrativo. Na atual Constituição já foram afastados dois presidentes. A Constituição, a lei maior, diz que o processo sucessório é este, mas porque não fazer de outro jeito? É a Constituição, mas por que segui-la? Mas a gente dá um jeito de achar outro caminho conveniente.
    Se dar um jeito parece ser algo para nos orgulharmos como brasileiros, continua refletindo o professor Roberto Gomes, isto traz eleitos colaterais sérios. Um deles é a desconfiança. Quem está falando comigo está sendo transparente? É isto mesmo que quer dizer?
    Da desconfiança nasce a burocracia. Múltiplas exigências, muitas descabidas, acrescidas de morosidade, para impedir a transgressão da regra, para controlar o jeitinho. Para provar que “eu sou eu” preciso de uma série de documentos, repetidos, carimbados para dizer a mesma coisa. Constantemente é preciso provar a minha veracidade e que sou eu mesmo.
    Ouvimos com frequência as pessoas reconhecerem que temos muitas e boas leis. Se fossem cumpridas a vida seria mais fácil e tudo funcionaria melhor. O cumprimento das leis, portanto, não pode ser compreendido como formalismo ou legalismo. Seu cumprimento é o respeito aos valores fundamentais da sociedade. O jeito é uma maneira marota de desrespeito aos valores maiores.

     

    Dom Rodolfo Luís Weber
    Arcebispo de Passo Fundo
    02 de junho de 2017

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