A Fidelidade De Deus, Fundamento Inabalável De Nossa Salvação – Cartas do Padre Jesus Priante

Na década de 1980, o renomado teólogo suíço, H. Kung, amigo contrincante nas lides teológicas do papa Bento XVI, publicou uma volumosa obra de mais de mil páginas com o título: “Existe Deus?”. Nela refuta as chamadas Cinco Vias de Santo Tomás de Aquino a provarem racionalmente a existência de Deus, das quais a filosofia cristã foi herdeira até os nossos dias. H. Kung nega toda possibilidade de provar racionalmente (a priori) que Deus existe. É um Mistério além de nossa compreensão. No entanto, o mesmo autor afirma que, a posteriori, desde o pressuposto hipotético que Deus existe, nossa existência e a realidade do mundo que habitamos tornam-se mais lúcidas e razoáveis. O ateísmo é a maneira irracional de sermos humanos. Como dizemos no Brasil, ser ateu é ser “a toa”, pois a morte seria seu maior sentido, como o definiu Heidegger ao homem: “ser-para-a- morte”. Um ateu diz Pascal, só nos pode brindar o absurdo da morte. “Se Deus nao existe, afirma Dostoievski, tudo está permitido”, até o extermínio de nós mesmos e do planeta, como a História vem provando. Kant chega também a essa trágica conclusão: “Um ateu só pode escolher racionalmente como conclusão final da sua existência o próprio suicidio”. O filósofo grego Epicuro (séc. IV a.C.) justificava o ateísmo pelo fato de existir o mal, incompatível com a existência de Deus, que teria de ser bom e todo poderoso para evitá-lo.

Desde uma outra ótica, o historiador e pensador grego Plutarco (séc. I) dizia que preferia ser ateu do que crer num Deus a ser temido. Infelizmente, esse Deus que nos amedronta com seus castigos, é o Deus das religiões e também de quase todos os cristãos. “Ele virá julgar vivos e mortos”, dizemos no nosso Credo. Se vier para nos julgar (*), melhor que não venha, pois “se tiver em conta nossos pecados, quem se poderá salvar?” (Sl.130).

O papa Francisco diz que quem invoca um Deus de temor e medo nunca foi evangelizado. Deus existe porque nos salva. E o fundamento da nossa Salvação, segura e certa, segundo H. Kung, é sua Fidelidade, o atributo mais sublime, próprio e exclusivo de Deus, acima do seu amor e misericórdia, ao menos para nossa compreensão humana. De fato, o amor e a misericórdia têm um caráter de sentimento, sujeito a certa volatilidade, a Fidelidade, entretanto, per se é imutável. Um Deus infiel deixaria de ser Ele mesmo. Na tradição do povo judeu, Deus é chamado O Eterno, sinônimo da Fidelidade, rocha imutavel a dar consistência a toda a criação.

A Biblia faz eco deste atributo divino. A fidelidade tem o sentido de bondade paterna e de firmeza inquebrantável no cumprimento das sua promessa de salvação realizada em Cristo: “Nele está o esplendor do amor e a fidelidade de Deus” (Jo.1,14). O símbolo da “rocha” atribuído a Deus (Dt.32,4) e que Cristo fez seu, revela sua Fidelidade. Nenhum poder poderá vencer a vontade salvadora de Deus (Rm.8). Deus não mente nem se retrata, como nos revela o episódio da benção, mesmo equivocada, de Isaac ao seu filho Jacó. Este mentiu ao seu pai, que ficou cego, dizendo ser seu filho primogênito. Chegando mais tarde, Esaú, legítimo herdeiro, pediu a benção a seu pai, pela qual se tornaria herdeiro de todos os bens. O pai lhe disse: o sinto, mas já foi dada ao seu irmão e a bênção (dom de Deus) é irreversível. O dia em que Abraão, a quem Deus se revelou como único e verdadeiro Deus, recebeu sua bênção divina em favor de todas as gerações e povos (Gn. 12) Por isso, porque Deus é fiel, todos seremos salvos, herdeiros com seu Filho do Reino de vida e felicidade. Ele não só é fiel como também nos converte de nossa infidelidades e pecados (Sl.85) São Paulo reafirma essa tese: “Mesmo se formos infiéis, Ele permanecerá fiel.” (2 Tm.2,13) “Ele nos concede acender com segurança ao trono da graça. ” (Hb. 4,14). Quando nos definimos como “fiéis cristãos”, nos referimos não à nossa fidelidade a Deus, mas à necessidade que todos nós temos de professar nossa fé num Deus fiel. Tudo pode falhar em nossa existência e no mundo que habitamos, mas Ele, indefectivelmente, realizará seu projeto de salvação universal. Nossa fé no Deus Fiel nos liberta de toda culpa e torna instantânea nossa salvação.

Em todo momento, podemos ouvir de Jesus como o malfeitor que morria ao seu lado: “Hoje estarás comigo no Paraiso”.

“DE TI, BELÉM, A MENOR DAS CIDADES DE JUDÁ, SAIRÁ PARA MIM AQUELE QUE VAI REINAR SOBRE ISRAEL… ELE SERÁ FIEL E APASCENTARÁ , COMO PASTOR, SEU REBANHO COM A FORÇA E A MAJESTADE DE DEUS.” (Mq. 5,2-5)

No século VIII a.C.,
o profeta Miqueias, que tinha fama de anunciar sempre más notícias, anuncia a Boa Nova da vinda de um Rei Pastor que, de maneira firme e fiel apascentará seu rebanho (toda a Criação) com o poder salvador de Deus, trazendo a todos os povo a Paz, que significa vida feliz. Contra toda previsão humana, nasceria na pequena cidade de Belém.

Em Teologia defende-se a tese de serem o cumprimento das profecias e os milagres referidos à pessoa de Jesus, as provas da sua divindade.

De fato, seria humanamente impossível predizer, oito séculos antes, que a incontestável figura histórica de Jesus nasceria em Belém. Seus pais, José e Maria, moravam em Nazaré, ao norte de Judá. O censo, ordenado por César Augusto, fato incomum, a ser realizado em todo seu Império, do qual, na época , fazia parte o povo judeu, historicamente era impossivel de se prever. José pertencia, à distância quilométrica de mil anos, à estirpe do rei David, originário ancestralmente de Belém, David ali nascera, e o casal, Maria e José tiveram de ir a Belém, para o censo. Seu aparatoso casamento com Maria e, não menos estranho e inaudito, a gravidez Dela, antes de estarem casados, acrescentam maior força à profecia de Miquéias, a provar a divindade de Jesus. Todas estas coincidências não se explicam sem atribuir a Deus a sequência dos fatos. Da mesma sorte, os numerosos milagres de Jesus nos escassos três anos da sua missão profética provam sua divindade.

Seu ensino, o testemunho da sua vida, e o dos incontáveis mártires e santos que seguiram seus exemplos, assim como a experiência vivificante de todos os que crêem Nele, são argumento que tornam impossível reduzir Sua pessoa histórica a mero mito ou projeção humana, construída ideologicamente pelos seus seguidores.

A não ser por preconceito ou pessoal notoriedade sensacionalista, nenhum adversário ao longo dos tempos tem negado a existência de Jesus de Nazaré que, mais propriamente, teria de ser chamado Jesus de Belém. E não reconhecer Nele a Divindade, faria Sua existência irrelevante e a criação e a História humana ficariam cegas, pois não foi dado ao homem outro nome no qual possa ser salvo a não ser o de Jesus Cristo. (At.4)

Passado, presente e futuro encontram sentido e razão de ser só em Cristo. Mesmo que fosse um mito, seria tão necessário para dar sentido à nossa existência e a existência do mundo que deixaria de ser mito e sim fato real. Todos os mitos, mais do que necessários para manter viva a alma dos povos, à maneira de profecias, apontam a Jesus de Belém, como Ele mesmo afirmou: “As Escrituras (incluídos os mitos dos povos) falam de mim” (Lc.24). Ele é, diz o Concílio Vaticano II, tudo quanto Deus tinha a nos dizer e também fazer. Ele é a verdade e a vida e o caminho que as comunica. Nele se realiza o plano criador e salvador, que vai além da relação Criador / criatura, levando-nos à comunhão com Deus, meta de toda a Criação. E o faz de maneira desconcertante. Nasce num inexpressivo povoado de Belém. Mora em Nazaré, na Galileia dos gentios, região relegada e desprezada do povo judeu. Incia sua missão profética em Zabulkon e Neftali, povoados de infieis e pecadores. No auge da Sua fama, tido como Messias por seus numerosos milagres, é precipitado, pelo mesmo povo que o engrandecia, no abismo do total desprezo e, tido como impostor e blasfemo por atribuir-se a si a divindade , sendo condenado a morte de cruz, castigo dado pelos romanos aos escravos rebeldes e pessoas indesejáveis.

Trifón, um rabino judeu do século II, expressou esse desconcerto histórico de Jesus dizendo: “Sabíamos que as Escrituras, referindo-se ao profeta Isaias, anunciaram a vinda de um Messias sofredor, mas era impossivel de conceber que fosse crucificado”. Até nossos dias nessa pedra tropeçam os judeus, as religiões e todo pensamento humano. No entanto, as gerações inutilmente buscarão a vida até não encontrarem Cristo.

Podemos ser anticristos ou desconhecedores de Cristo, mas nunca sem Cristo. Uma das profecias que mais impactou minha vida encontra-se em Zc. 8,23: “Todos os povos virão atraso de um judeu e, asindo seu manto, dirão: “queremos ir contigo”. Tudo será de Cristo e Cristo de Deus (1Cr. 3,23). Os Cursilhos de Cristandade adotaram como seu grande slogan: “Eu e Cristo, maioria absoluta”. Sem essa radicalidade nunca seremos cristãos.

CRISTO, AO ENTRAR NO MUNDO DISSE: SACRIFÍCIOS E OFERENDAS, Ó DEUS, NÃO QUISESTE. EIS QUE EU VENHO PARA FAZER TUA VONTADE, PELA QUAL SOMOS TODOS SANTIFICADOS E SALVOS”(Hb.10,5-10)

A vontade de Deus, disse Jesus, é que todos sejam salvos (Jo.6,39) e estarmos a viver com Ele (Jo.17,24). ” E se Deus é por nós, quem nos poderá separar dele?” (Rm.8).

Desde uma óptica apenas religiosa, inata ao ser humano, a Salvação tem de ser merecida pelas nossas obras (sacrifícios e oferendas). Até Cristo, todas as religiões cultivavam este sentimento.

A razão humana rege-se pela lei de dar a cada um o que merece, embora esta definição romana, que Ulpiano nos legou, apenas forense, tem uma compreensão maior. Não só temos de dar a cada um o que merece ou lhe pertence, mas o que necessita para ser plenamente humano, meta que só Cristo nos pode brindar. Ele veio realizar toda justiça pela qual somos santificados e salvos. Ele não é simples mediador ou sacerdote, conceito próprio das religiões, do qual a carta aos Hebreus guarda reminiscências,mas o “meio divino” no qual somos divinizados. Infelizmente, o termo “redenção”, no lugar de Salvação, empobreceu a missão de Cristo. Ele não é um senhor rico que paga nosso resgate ou bombeiro que nos tira de uma situação limite, mas Aquele que incorporou nossa insignificância de criaturas ao seu infinito eterno e divino. A gota que buscava o mar. Nele tornou-se oceânica. O Mistério da Encarnação nos revela não haver dois planos: criaçao e salvação. Deus nos criou para comunicar-nos Seu Ser e Vida Trinitária. Não existimos ao lado de Deus ou de Cristo, mas no seu próprio Corpo divino.

Do mesmo modo, não existe um mundo separado de nós, nem de Deus. O universo insere-se em nós, nós em Cristo e Cristo em Deus (1Cor.3,23). Sem uma pequena ou grande dose de panteísmo não encaixaremos o Mistério da Salvação em nós. Até se completar a obra salvadora de Deus, pecado e graça estarão juntos, não como antagônicos, nos diz São Paulo em Rm. 3, mas à maneira de fermento, a graça vai transformando gloriosamente nossas vidas. O pecado é a repulsa do plano salvífico que a Fidelidade de Deus não deixará prevalecer.

“ISABEL DISSE A MARIA: “FELIZ QUE ACREDITASTES, POIS O QUE TE FORA DITO DA PARTE DO SENHOR SERÁ CUMPRIDO.” (Lc. 39-48)

Maria, grávida de Jesus, foi à casa de sua parente Isabel, também grávida do seu filho João Batista. Logo que Maria chegou, João Batista com seis meses de gestação (grande argumento contra o aborto) pulou de alegria no ventre da sua mãe. Ela, cheia do Espírito Santo, disse à Maria: “Donde me vem que a Mãe do meu Senhor venha a mim?” Essas palavras antecipavam quatro séculos à Fé cristã, proclamada por todos os cristãos no ano 431, em Éfeso (Turquia) onde Maria morou com São João até ser Assunta ao Céu. Se Maria não fosse fisicamente Mãe de Deus, Jesus seria Deus, mas não homem. Céu e terra continuariam separados e a Criação mordida pelo nada. Assim, dentro do Tempo de Natal, no dia primeiro de Janeiro, celebramos este Mistério de Maria, Mãe de Deus, fundamento da divindade de Jesus, nascido em Belém.
Deus, na História da Salvação, antecipa muitas vezes as palavras que em determinado tempo não podemos compreender. É o que o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo chama “evolução dos dogmas” ou das verdades de Fé. Elas crescem e se alongam tornando mais clara e próxima nossa Salvação. Não somos nós os que temos palavras ou Logos, como afirmou Aristóteles (sec. IV a.C.) mas a Palavra de Deus, fonte e cume de todo discurso, é que nos cria e leva além de nós mesmos e do mundo que habitamos. Morrem nossas palavras e nossas vidas quando a Palavra de Deus não mais ressoa em nós. “Só Tu tens Palavras de Vida Eterna” (Jo.6), disse Pedro a Jesus. Profecia que permanecerá viva até o fim dos tempos. “Passará o céu e a terra, mas minha palavra não passará” (Mt.24,35). Essa Palavra de vida e de Salvação é a própria pessoa de Jesus. “E O Verbo (a Palavra) se fez carne e habitou no meio de nós”(Jo.1). Na década de 1970, Lyotard qualificava, o que ele chamou “pós-modernidade”, como sendo o tempo da morte das grandes narrativas, tornando tudo efêmero e fragmentário. No nosso tempo, o sociólogo Bauman denominou nossa sociedade e cultura “líquidas”, sem fundamento. Paul Ricoeur falou da morte dos símbolos, linguagem da alma no seculo XX. K. Rahner, antes, em 1949, publicou o maravilhoso opúsculo “O Ouvinte da Palavra”, depois da Segunda Guerra Mundial, quando a Humanidade sofreu seu maior silêncio. Todas suas palavras tinham morrido em Auschwitz, Rahner dizia: “Quem sabe se ainda Deus nos pode falar”, Sua Palavra criadora e salvadora é a única esperança da história.

O profeta Amós considerava que o maior castigo que seu povo e, com ele, todos os povos, podem sofrer é o silêncio de Deus. Isabel confirma essa tese, dizendo a Maria: “Feliz és tu que acreditastes, pois o que te foi dito da parte do Senhor será cumprido”. A Palavra se fez carne (historia) e habitou entre nós. Ela faz brotar vida no silêncio das areias inertes do tempo, onde todos nossos discursos morrem.

Porque Deus é fiel, a
salvação seguirá indefectivelmente seu curso (Sl.84). ” O pecado e o mal não nos devem desesperar, porque Deus é fiel e santo” (1 Jo. 1,8).

Se analisarmos o Evangelho de São João, digamos isto de passagem, podemos constatar que ele substitui o termo “conversão”, próprio do A.T e também do NT, pelo termo Fé, pela qual esperamos a Salvação no devir de nossa vida pessoal e dos tempos, já presente à maneira de semente, aguardando sua colheita no dia da vinda gloriosa de Cristo. “Já somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que seremos”(1Jo.3).

A História toda, para São João, concentra-se na morte e na Ressurreição de Cristo. Por isso, a diferença dos Evangelhos Sinópticos, que só reportam uma Páscoa celebrada por Jesus em Jerusalém, enquanto São João alude a quatro. Sua narrativa evangélica conclui: “Tudo isto foi escrito para que creiam que Cristo é o Filho de Deus e, crendo tenhais a vida eterna”.

A Fé em Cristo é a única ferramenta que temos para não morrer no caminho. E a Fé nos vem pela Palavra (Rom.10).

Como em Maria, o Verbo de Deus entra pelo ouvido. A Palavra é a pessoa de Jesus de Nazaré, nascido em Belém, morto na cruz e ressuscitado. Ele é o “Amém” de Deus, fiel à Sua promessas de Salvação.”Em Cristo não há sim e não, mas só sim” (2Cor.1,19).

Na Bíblia, Amém não significa, “assim seja” como costumamos traduzir, mas o cumprimento de promessas salvíficas de Deus em Cristo. Com essa Palavra encerram-se as paginas da Biblia: Amém, vem, Senhor Jesus, que a Sua graça esteja com todos”(Ap.22,21).

Não é nosso desejo ou pedido que Deus atende, mas sua vontade e plano de Salvação que, por ser fiel à sua promessa, cumpre-se em Cristo. Maria já antecipou o Canto de vitória reservado para o fim dos tempos: “Minha alma engrandece ao Senhor, e meu espírito exulta em Deus, meu Salvador porque fez maravilhas e Suas bênçãos alcançam a todas as gerações, conforme prometera a Abraão e a sua descendência. Santo é seu Nome”. Com este otimismo é que devemos interpretar nossa existência e o devir dos tempos, por vezes tão, tão trágicos e escuros, mas sempre vitoriosos no Deus fiel, o Amém em Jesus Cristo.

(*) julgar neste contexto pode também ser interpretado como “governar“.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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