A Dimensão Histórica da Salvação – Cartas do Padre Jesus Priante

A Salvação não é uma utopia nem uma ideologia, mas uma “economia”, isto é, uma série orgânica de acontecimentos nos quais Deus é o protagonista.

Há “sinais” que nos revelam algo que vai além do prefixado, que não pode ser notado pela observação racional e que se rege pela lei científica de causa e efeito, pela lógica dedutiva ou pela constatação de fatos da História comum, da qual Heródoto (séc. V a.C.), segundo Cícero, é seu fundador.

Embora o termo grego “história” signifique pesquisa ou busca, o que pretende é narrar a veracidade dos fatos, não seu sentido transcendente. A História comum é problemática e incerta, pois os fatos são irreversíveis, portanto, impossíveis de contar ou recompor.

Os fatos têm tantas versões quanto historiadores. No século XVII, J.B. Vico identificou o fato com a mesma realidade. “O fato é o próprio ser”. Só existe o que acontece ou vem a ser.

Wittgenstein diz: “a realidade é a totalidade dos fatos”.

Aristóteles considerava o fato a realidade que passou a ser em “ato”. O que previamente era um ser, também real, em estado potencial, torna-se, ele mesmo, atual no espaço e no tempo. Assim, uma semente, ser potencial da espiga, não pode ser uma figueira. Cada coisa ou fato tem sua própria realidade substancial e permanente; porém, pela óptica da história comum, são apenas monumentos inertes de um passado. Na História da Salvação, os fatos não morrem, nem ficam nos museus da memória, eles são criativos e memória de futuro, portadores de vida e Salvação, que só os olhos da Fé podem contemplar.

O teólogo francês Chenu apela à necessidade de recuperar a historicidade da realidade dos fatos e sua narrativa para ver neles a Salvação de Deus. Não se trata, diz ele, de uma análise estática dos acontecimentos ou das ideias, crenças feitas ou mesmo da Bíblia, mas de enxergar os “vivos” e salvíficos dos fatos emergentes. Pertence ao papa João XXIII a expressão “sinais dos tempos”, novo objeto da nossa Fé, assim como o termo “aggiornamento” que nos torna crentes e videntes de nosso tempo.

O princípio de historicidade impede todo tipo de dogmatismo ou verdade congelada.

O teólogo Uruguaio J. Segundo, na década de 1980, falava de “Evolução dos Dogmas”.
No campo da ciência, Popper dizia que toda verdade científica é “falseável”, isto é, sujeita a ser desmentida por novas descobertas. Na ética, a historicidade, faz da consciência um laboratório de valores, personaliza e socializa a lei natural dentro das circunstâncias em que se vive. No passado, antes do Concílio Vaticano II, não se via clara a relação entre o pensamento ou crença e a realidade, complexa demais para ser confinada em dogmas. Não significa que tudo seja relativo ou indiferente, senão que tudo se relaciona de maneira dinâmica à procura da Verdade e da Vida que excede a todo acontecimento histórico. A probabilidade, tanto no pensar, como no agir, é inerente à História. Os erros, teóricos e práticos, são verdades ou fatos que ainda não chegaram a ser no seu tempo.

A história da Salvação pode ser lida ou contemplada de quatro maneiras:

NA PRÓPRIA HISTÓRIA

O termo evangelho, “boa notícia”, sugere que a Salvação é fato ou notícia e não uma doutrina, ideologia ou utopia. Santo Ignácio de Loyola legou aos seus discípulos os jesuítas a espiritualidade de ver Deus presente em todas as coisas pelo dom que ele chamou do “discernimento dos espíritos”, isto é, percebendo o que vem de Deus e o que não vem Dele. A Salvação revela-se no acontecer cotidiano, recomendava ler os episódios evangélicos (ditos e feitos de Jesus) imaginando-se estarem presentes neles.

De Enoque, que significa em hebraico “andar com Deus”, se diz que foi arrebatado ao Céu sem passar pela morte porque “andou com Deus” (Hb. 11,6). Mais do que fazer tudo em nome de Deus, como costumamos dizer, é preciso viver nosso dia a dia, nas alegrias e tristezas, tendo presente a Deus. Vê-Lo caminhando conosco na rua, no trabalho, nas nossas refeições, “quando deitamos ou levantamos “(Sl. 139,2).

Vemos a Salvação de maneira presencial, na própria História, nos “milagres”, aqueles que interrompem a lei natural ou naqueles que permitem ver seu curso de maneira diferente. O povo costuma chamar “graça” genericamente a todo fato salvífico, como pode ser uma cura, a superação de uma dificuldade ou crise. Há um livro, não lembro agora seu autor, intitulado “Honestidade com Deus”, que nos convida não só a sermos educados com Deus, mas a reconhecermos Seus dons. Honestamente, dificilmente poderíamos contar a história de nossa vida sem a presença ativa e Salvadora de Deus. Superar os riscos da infância não foi algo apenas natural, assim como superar nossas aventuras e desventuras e suportar os sofrimentos inerentes à nossa condição humana e terrena. Também na dor podemos ver a Salvação. Nesta mesma perspectiva, na História, contemplamos nossa Salvação nos “sinais” sacramentais, particularmente o Batismo e a Eucaristia, essencialmente pascais, que mantém sempre atual o passo do pecado e da morte à Vida Eterna, nosso grande e insolúvel problema existencial. Experimentar a Salvação na história pessoal ou na do mundo é uma grande espiritualidade, que consiste em mover-se e viver no mundo do invisível, conforme se nos revela Hb. 11,1: “Fé a maneira de ter o que esperamos e o meio de conhecer e ver o que não vemos.”

ATRAVÉS DA HISTÓRIA

Na década de 1980, o discurso teológico incorpora a “mediação da História” no Mistério da nossa Salvação. Os fatos são caminho ou meios nos quais e pelo quais Deus realiza seu plano irreversível de Salvação. São Paulo o expressa dizendo: “Tudo coopera para nosso bem” (Rm. 8,28). Até o pecado, segundo São Francisco de Salles (séc. XVII) é como adubo que nos faz crescer em bem e santidade. Antes dele o tinha dito São Paulo: “onde está o pecado, aí está a graça”(Rm 5,20). E Santo Agostinho: “Deus não permitiria o mal se não fosse para tirar dele maior bem”.

O fim salvífico é o único fim do homem. A graça é interior à natureza, da qual (a graça) nem o ateu pode sair, afirma K.Rahner. Na mesma linha, Von Balthasar diz: “O estado de natureza é pura abstração ou subtração. A ordem da Criação é a ordem da graça e da Salvação”. A Encarnação de Deus em Jesus é necessária e torna a História com Ele meio da Salvação do mundo. O expressamos dizendo “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, isto é, se fez história salvífica até o fim, como Ele prometeu:” Eu estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos “(Mt. 28). A História é pascal: passo constante da morte à vida. Por isso, caótica e dolorosa, até atingir sua glorificação. Contemplada como meio de Salvação, a experimentamos através da espiritualidade da Cruz. Nossos limites, carências, dores, luta pela vida, pecados e mortes, são meios nos quais e pelos quais Deus nos Salva.

O cristianismo, desde o ponto de vista racional, é a única filosofia que encontra sentido positivo no absurdo do sofrimento e da morte.

Nas primeiras gerações cristãs era perguntado ao candidato ao Batismo: “Qual é tua cruz?” Ele narrava sua vida pessoal com seus sofrimentos e problemas. A seguir lhe perguntavam: “Para que lhe serve essa sua cruz?”, ao que respondia: ”Para minha Salvação”.

Sem essa sabedoria, de fato, carecemos da Fé cristã e não somos discípulos de Cristo: “Se alguém quer me seguir, tome sua cruz” (Mt. 10,38).

Contra o chamado evangelho da prosperidade, pelo qual vamos a Cristo em busca de milagres, caindo na “tentação da História”, isto é, procurar a Salvação fora Dela, precisamos crer que, precisamente, na nossa realidade concreta, pessoal ou do mundo, se faz presente nossa Salvação por obra e graça de Deus. Por isso, podemos partir deste mundo em qualquer momento de nossa vida sem por isso deixar algo por esperar ou terminar. Nem tudo o que nos acontece e vivemos é vontade de Deus, nem fruto da vontade do ser humano e mesmo da lei cósmica. A História é um leque de possibilidades, mas o que acontece, os fatos, é meio do qual Deus serve para nossa Salvação. A leitura da História que fazemos pela Fé deixa de ser história comum, que narra a morte de seus protagonistas, para se tornar a História da Salvação, viva e vivificante. A História vivida como “meio de Salvação” implica aceitar a tese de K.Rahner, segundo qual a Salvação afeta a toda a História do mundo criado e a todo homem. Não existem duas Histórias, diz ele, a História da Salvação de Deus leva dentro a história do mundo e vice-versa, embora dela poucos tenham consciência. Esta tese influenciou o Concílio Vaticano II e hoje é preferida por boa parte dos teólogos. O Cardeal Daniélou, embora reconhecendo “cristãos anônimos” nas pessoas não evangelizadas, considerava “necessária” a evangelização para tornar consciente ao mundo a Salvação de Cristo.

NO PRINCÍPIO DA HISTÓRIA

Podemos contemplar a história da Salvação como um retorno ao tempo originário, em forma de “redenção”. Esta visão prevaleceu na história do cristianismo, especialmente desde o século XI com Santo Anselmo. A realidade factual na qual nos encontramos é de uma natureza ou mundo “caído”, escravizado ao pecado e morte, que precisa um Redentor, que precisa satisfazer a justiça de Deus com o preço do seu sofrimento, e a morte de Cristo, somado ao nosso. Este horizonte salvífico só é entendido desde a premissa do “pecado original” no qual nascemos, que performa nossa existência e a realidade do mundo que habitamos, onde o mal (pecado e morte) nos configura.

Não podemos existir neste mundo sem pecado, dor e morte. A graça de Deus que nos Salva em Cristo é externa a nós e ao mundo, por isso, de alguma maneira, condicionada aos nossos méritos para recebê-la… Santo Agostinho resumiu esta perspectiva salvífica da história dizendo: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”. Se antes de Cristo, Redentor do mundo, a Salvação era impossível, não fica menos problemática a mesma pelo fato que exige nossa “quota” de participação e méritos para recebê-la com a contribuição de Cristo. A pergunta que os
fariseus fizeram a Jesus continua em nós: “São poucos os que se salvam?” (Lc. 13,23) A Salvação, contemplada como redenção, remete-nos ao princípio da História, quando vivíamos em um
Paraíso com Deus, do qual fomos expulsos pelo pecado, esperando agora que, com Cristo, possamos retornar.

Mas, existe outra interpretação mais positiva e favorável nesta perspectiva de retorno ao tempo originário da Criação. São Paulo nos brinda quando nos revela o mistério da predestinação: “Fomos predestinados antes da Criação do mundo para sermos Salvos” (Rm. 8,29). “Desde a eternidade Deus nos destinou para sermos seus filhos” (Ef. 1,5). Significa que, nós e o mundo, estamos neste mundo, mas, como disse Jesus “não pertencemos a este mundo” (Jo. 17). Como o lendário Ulisses, sofremos a dor “nostálgica” e a perigosa travessia de nosso retorno a nossa Pátria e casa paterna de Deus. A missão Salvadora de Cristo consiste em ser Ele o “caminho” dessa odísiaca viagem. Ele é o princípio original dos tempos da Criação e Salvação. (Jo.1,1) O pecado original ou mal deste mundo é inerente à mesma Criação que, para sair de Deus, teve de sofrer a ferida do cordão umbilical cortado do Seu seio para poder existir na História (tempo e lugar) para retornar e entrar em comunhão eterna com Deus, realizada pela sua Encarnação em Jesus de Nazareth. Finalmente, neste horizonte salvífico de retorno aos primórdios, contam também os “fatos misteriosos dos mitos”, não menos reais e históricos, que precedem aos fatos propriamente históricos. Dentre os incontáveis mitos dos povos, que nos remetem ao “tempo originário” foram escolhidos, como grandes significantes da história da Salvação revelada ao povo de Israel, os narrados nos onze primeiros capítulos do Gênesis: Criação do mundo e de Adão e Eva, o “pecado original”, a origem do sofrimento, luta pela vida e morte, do fratricídio de Caim e de todas as violências e guerras; o Dilúvio universal, início das grandes extinções do planeta (os geólogos contabilizam cinco, hoje estamos a beira de uma sexta) e a Torre de Babel, origem das nações, culturas e línguas, que nos separam e nos confrontam. Dentro desses mitos da origem, subjace uma necessidade e esperança de Salvação, expressada na inata religiosidade humana à procura de Deus, tão necessária como a própria existência, que se faz
Mistério (além da história) em Cristo.

NO FIM DA HISTÓRIA

Esta é a visão escatológica da história da Salvação é partilhada pela maior parte dos teólogos no nosso tempo. Enquanto estamos neste mundo, podemos ignorar e até negar a existência de Deus. Mesmo com a vinda de Cristo, sua morte e Ressurreição, como argumentava pensador romano Celso (séc.II), contra o otimismo dos cristãos, tudo segue igual. Continuamos a sofrer e morrer. Entretanto, como consta numa carta dirigida por um cristão anônimo a tal Diogneto de Roma, que indagava saber a razão que animava aos cristãos a viverem com alegria sua Fé no meio das tribulações, o que nos torna diferentes é nossa “esperança de Salvação” em Cristo. Como o resto das pessoas, sofremos, lutamos pela vida e morremos, mas aguardamos uma vida feliz no fim da nossa vida pessoal e, no fim da História, para todos. Até o fim dos tempos ignoramos a razão pela qual crescem juntos o joio e o trigo, o bem e o mal, a vida e a morte. Aparentemente tudo termina mal neste mundo.

A literatura apocalíptica nos revela que a Salvação será precedida por uma grande catástrofe. Em nível pessoal é mais do que evidente. O tempo encurva nosso corpo e nossas mentes. Resta-nos esperar em Deus.

A Teologia da Esperança

A Teologia da esperança ou escatológica, que contempla a Salvação no fim da História, tem em Moltmann, Pannenberg e muitos outros, seus mais eloquentes arautos, confirmando a tese de São Paulo: “Somos Salvos na esperança” (Rm. 8). Uma esperança, diz o Papa Bento XVI, que é “substancial”, segura e certa porque o que esperamos está já realizado em favor de nós e do mundo em Cristo Ressuscitado, antecipação e garantia de nossa Salvação.

Oscar Culmann a exprime dizendo: “já, mas ainda não”. Já estamos Salvos, mas ainda esperamos sua manifestação ao deixarmos a estrada do tempo. O sentido do arcano mistério da Salvação orienta-se pela percepção de Deus presente e oculto na História. O Concílio Vaticano II (Gs. 9) afirma que a Igreja é a era final da História, epifania da verdade e da graça, “sinal e instrumento da Salvação do mundo” e portadora da “feliz esperança” de todos, que é o mesmo Cristo. Poderíamos afirmar que o único fato histórico certo para todos os tempos é que a Igreja (comunhão sensível de pessoas em Cristo) permanecerá até o fim deste mundo, conforme Cristo prometeu: “O poder dos infernos (todo mal) não lhe fará sucumbir (Mt. 16).

Mercaba

Ainda que tenhamos de sair deste planeta para habitarmos outro, a “mercaba” da Igreja irá conosco. Até a Parusia, ou aparição gloriosa de Cristo haverá duas ou mais pessoas reunidas em seu nome (Mt. 8) suplicando e aguardando por Ele. São Paulo acrescenta a este fato que nos remete ao fim da História, a existência do povo de Israel. Sua conversão a Cristo será sinal da Sua vinda gloriosa. Também poderíamos pressagiar com a mesma certeza dos fatos, a permanência da cidade de Jerusalém, sacramento e emblema da esperança de todos os povos chamados a viverem na Cidade do Céu. Pena que está maravilhosa visão escatológica da Salvação, pela qual esperamos ”novos Céus e nova terra”, foi escurecida pela doutrina tétrica dos “novíssimos” (morte, juízo, purgatório, inferno e paraíso). Um final assim, ninguém deseja esperar, por isso, a Vida e a História só podem ter uma leitura trágica.

“ASSIM DIZ O SENHOR: VOU REALIZAR UMA COISA NOVA, QUE JÁ ESTÁ APARECENDO: NÃO A VEDES? (Is. 43,16-21)

O texto pertence ao tempo do Exílio do povo judeu na Babilônia (Iraque) no século VI. a. C. Lá permaneceu cinquenta anos. Prodigiosamente, sem qualquer prognóstico humano, o rei Ciro da Pérsia (Iram) ordena e facilita seu retorno a Jerusalém e ajudará na reconstrução do seu Templo. Um profeta, que aqui se autodenomina Isaias, para dar continuidade ao espírito do primeiro Isaias, dois séculos antes, cheio de otimismo, vislumbrando um futuro feliz para a humanidade com a vinda de um Messias, anuncia também a intervenção Salvadora de Deus na História, servindo-se dos fatos e de seus protagonistas humanos. Esta narrativa bíblica confirma a tese acima exposta: “A Salvação através da História”. Mas também sugere a outra perspectiva salvífica: “A Salvação na História”, isto é, ela mesma é a história da Salvação em todos seus acontecimentos. Por isso, nos convida a “ver” a ação salvífica de Deus, nas alegrias e nas tristezas, na morte e na vida.

Não estamos sós, “jogados” à nossa sorte. É claro que antes de Cristo, o próprio profeta Isaías, anterior ao Isaías do Exílio, contemplou o ser humano cego, “apalpando as paredes”, incapaz de ver sua Salvação. O próprio Abraão, pai da Fé, “desejou ver o dia de Cristo” (Jo. 8). Sua missão, declarou na Sinagoga de Nazaré, foi abrir os olhos dos cegos. “Eu vim para que vejam os que não vêem” (Jo. 9,39).

Embora São Paulo afirme que a Fé (visão do invisível) entra pelo ouvido (Rm. 10,10), a pregação que anuncia a Salvação fundamenta-se no testemunho dos que presenciaram ocularmente a pessoa de Jesus, seus milagres, morte e Ressurreição. “O que temos visto com nossos olhos, isso vos anunciamos” (1 Jo.1,1). Algo extraordinário teve de presenciar aquela dúzia de rudes galileus, ao quais se uniram outras testemunhas como eles, para se lançar ao mundo anunciando a Salvação que nos veio por um crucificado. Se dependesse apenas da pregação do que ouviram, a evangelização não teria acontecido do jeito que historicamente aconteceu dentro de um mundo greco-romano, culturalmente crescido. Porque os doze apóstolos O viram vivo após ter sido enterrado, era impossível reter para si este acontecimento inaudito e singular do qual dependeria a única verdadeira esperança do mundo.

Se diz que uma imagem vale mais do que mil palavras. A verdade, segundo Aristóteles, relaciona-se com a evidência. Mas só, metaforicamente, a razão “vê” a verdade fora dos fatos contemplados com os olhos, que podemos interpretar de múltiplas maneiras, mas jamais negá-los.

A História da Salvação, narrada na Bíblia, consiste numa série de acontecimentos ou fatos atribuídos a Deus e percebidos ocularmente pelo povo de Israel, particularmente pelos seus profetas. Fundamentados nesses fatos, sensíveis ou misteriosos, o povo crê e espera a Salvação de Deus. São Paulo atribuiu a si próprio o título de apóstolo porque também ele “viu” Cristo Ressuscitado a caminho de Damasco (1Cor. 15), embora São Lucas se lhe negue, pois não conheceu Jesus carnalmente.

Deus mostra sua Salvação “visivelmente” de muitas maneiras sem quebrantar seu plano: a Salvação pela Fé. Por ela vemos o invisível (Hb. 11,1) e também o visível. Um ateu ou uma pessoa carente de Fé não vê os milagres de Deus. Ao longo da História, são contadas numerosas “aparições” ou visões de Cristo, a Virgem, pessoas Ressuscitadas que, per se, são invisíveis por carecerem de uma corporeidade material, entretanto, por serem “corporais”, transformados pela Ressurreição, podem aparecer e tornar-se visíveis. Entretanto, não podemos ver Deus Pai, o Espírito Santo ou os anjos, que são incorpóreos. Deles apenas podemos ter “sinais”. São estes sinais que, pela Fé, podemos ver nos fatos de cada dia, e assim sendo, a pergunta do profeta Isaías será válida para todos os tempos: “Não vedes?”

São Paulo, em Rm 1, não isenta de culpa os que não vêem Deus na grandeza do universo com mais de 500 milhões de galáxias e mais de 100 milhões de corpos celestes, cada uma. “Contemplando os céus estrelados, pergunto-me, o que é o homem para dele Vos lembrar, Oh Deus?” (Sl. 8).

“Duas coisas me admiram, dizia Kant, o Céu estrelado e o imperativo do dever moral dentro de mim”. Também o uso das imagens nos ajuda a ver o invisível.

“TUDO CONSIDERO PERDA E LIXO APÓS TER CONHECIDO (VISTO) CRISTO… PROSSIGO ATRÁS DELE PARA VER SE O ALCANÇO, POIS JÁ FUI ALCANÇADO POR ELE” (Ef. 3,8-14)

Todo conhecimento filosófico ou científico não passa de um diagnóstico de médico forense a constatar a “causa mortis” de um cadáver, pois a vida, como afirma Wittgenstein, não tocam sequer com um dedo.

São Paulo, pela sabedoria que nos revelam suas cartas, poderia ser considerado uma das mentes mais prodigiosas da história humana. Foi o primeiro a encontrar sentido no sofrimento e na morte, onde toda razão topa com seu limite e as crenças religiosas com escândalo.

Culturalmente, podemos afirmar, que a mente ocidental, não só é mais paulina do que aristotélica, como também cristã. De qualquer maneira, a radicalidade a que chega São Paulo, após ter sido fanático judeu e versado na cultura greco-romana do seu tempo: “Tudo considero perda e lixo após ter conhecido a Cristo” – é a conclusão a qual teríamos de chegar cada um de nós, para realmente crer que a Salvação nos vem só de Cristo.

A filosofia é definida como atividade mental para resolver o problema da vida. E só temos um problema, afirma Unamuno, que morremos e, se morremos tudo
carece de sentido.

Lutero via como único problema poder ou não se salvar. O pecado, de fato, é maior problema maior do que a própria morte. Precisamente, a resposta e a solução destes problemas que humanamente não temos como superar, a resposta e solução as temos só em Cristo Ressuscitado. Único fato que dá sentido ao devir da História, ao ser humano e à toda a Criação.

“Se Cristo não Ressuscitou vã é nossa Fé”, diz São Paulo. Nós acrescentamos, também é vazia toda ciência, todo progresso, hoje tão ambíguo, pois enquanto a “inteligência” e o poder das máquinas crescem, o ser humano fica mais débil e primitivo.

Sem Cristo, defendia Maritain contra Sartre na década de 1940, não é possível um verdadeiro humanismo, só Ele e Nele podemos ser fraternos, filhos de um Pai de todos, assim como lutar por um mundo melhor que não se esgota na História.

Graças a Cristo, todo o “humanismo” sem Cristo, só pode ser um “humanismo trágico”, foi assim que o contemplou o povo da antiga Grécia, berço da filosofia.

“NINGUÉM TE CONDENOU?… EU TAMBÉM NÃO TE CONDENO.” (jo. 8,1-11)

Apresentaram os escribas e fariseus a Jesus uma mulher adúltera que, pela lei de Moisés, teria de morrer apedrejada. Jesus, inclinando-se, escreveu na terra com o dedo esta frase.

É a única vez que os Evangelhos aludem a gesto de escrever por Jesus. De fato, nada deixou escrito. Serão seus discípulos que após mais de 20 anos da sua morte e Ressurreição, recolheram algumas das suas pregações e milagres. Sabia Jesus escrever? Este episódio parece mostra-lo afirmativamente, embora, na época, aprender a ler era mais comum, mas escrever era próprio de uma elite privilegiada. Os meios materiais eram também muito escassos. Que teria Jesus escrito no chão? Se nos atentamos ao relato, teria escrito o que em outras circunstâncias disse: “Eu vim Salvar e não condenar” (Lc. 19,10) ou “Eu quero misericórdia e não sacrifício” (Mt. 9,13). Ele escreveu na terra, não em papiros que o tempo apaga, nem em tábuas de pedra que o pecado quebra, mas neste nosso planeta, a girar em busca da vida, que o pecado e a morte nos negam e que só o perdão e a misericórdia de Deus nos pode dar. Aos que pretendem conquistá-la pela lei da justiça, Jesus usa o chamado argumento “ad hominem”. Erguendo-se, disse: “Quem de vos estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar uma pedra”. “E começando pelos mais velhos, todos saíram um após outro”.

São João chama mentirosos os que acreditam estarem sem pecado (1Jo.1,8). Nascemos no pecado, nele vivemos e com ele morreremos. Só Deus tem o poder de tirar o pecado do mundo, assim como vencer a morte. Ambas vitórias as temos conquistadas em Cristo Ressuscitado. O veredicto final contra nossos pecados já foi dado por Jesus na pessoa da mulher adúltera: “Ninguém te condenou. Eu também não tenho condeno”.

Passamos a vida condenando os outros para nos justificarmos a nós mesmos.

Freud chama esse processo psicológico de ” mecanismo de defesa. ” Diz-se que o maior amigo do homem não é o cachorro senão o “bode expiatório”. As palavras de Jesus: “Não julgueis e não serão julgados” (L.6,37) tem um outro sentido mais sublime do que simples mandamento: Revela-nos que nem temos por que julgar-nos e condenar-nos a nós mesmos nem aos outros, porque também Deus não nos julga nem condena.

De São Jerônimo (séc. IV) se diz que, estando em Jerusalém, costumava chorar pelos seus pecados frente a um crucifixo. Certo dia Cristo na cruz lhe disse: “Entrega-me teus pecados.”Dificilmente temos este sentimento. Oferecemos a Deus um sacrifício ou boa obra, mas não nossos pecados. Com eles fazemos pedras para jogar contra os outros ou contra nós mesmos pelo sentimento de culpa. No fim da vida, todos deixaremos essas pedras e, de mãos vazias, diremos: Obrigado porque me livrastes do pecado e da morte.

A Graça Divina trabalha em nós misteriosamente. Uma das acusações dos fariseus contra Jesus era: ” Ele come com os publicanos e pecadores”. E finalizou sua vida na cruz morrendo entre dois assassinos.

Muitas vezes me pergunto, como Deus pode suportar nossos pecados e os pecados do mundo.? Quanta maldade, de fato. Admira-nos Seu poder Criador. Mas Seu poder é maior pela sua Misericórdia. É mais fácil chamar a ser o que não existe ou dar vida aos mortos, do que “descer aos infernos” de nossos pecados para sermos amados e glorificados. “A graça de Deus, diz Santo Agostinho, corre por este vale de lágrimas, do pecado e do nada”. Ela é interior em cada um de nós e do mundo criado, como o “fermento na massa”.

Padre Jesus Priante.

Espanha.

Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.

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Direitos Reservados.

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