21° Domingo Comum – B – Cartas do Padre Jesus Priante

“O CRISTIANSMO SERÁ MÍSTICO OU NÃO SERÁ CRISTÃO”
(K.Rahner)

Ao longo do tempo, os cristãos adotaram duas grandes espiritualidades: a ascética e a mística. A segunda, mais comum e condizente com a religiosidade natural do ser humano; a segunda busca a salvação pelos próprios méritos. Esforço, disciplina, renúncia e sacrifício configuram a vida espiritual de todo asceta; Von Balthasar, afamado teólogo alemão, vê nesta espiritualidade, presente em todas as religiões, uma condescendência de Deus. Ele aceita e abençoa nossa boa conduta e boa vontade no cumprimento de nosso dever moral ditado pelos mandamentos que performan nossa consciência ética, mas que nunca condicionam a Salvação que Ele nos brinda de maneira gratuita. Não somos nós os que nos salvamos, mas Deus é quem nos Salva. “A Salvação pertence a Deus” é o grande princípio da nossa Fé. A espiritualidade mística visa viver a Fé como uma comunhão em e com Deus. O místico experimenta a existência unida a Deus. Não somos nós quem vamos a Deus, mas Deus que vem a nós, ou, melhor, que está e vive em nós. Santo Agostinho o expressa dizendo: “Deus é mais íntimo a nós do que nós em nós mesmos”. E São Paulo o sublima: “Não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim”. Esta dimensão mística, essencial da nossa Fé cristã, foi desprestigiada e desvirtuada por muitos, qualificando-a negativamente de misticismo ou intimismo angelical e desencarnado. K. Rahner, o maior teólogo do século XX, após toda uma vida dedicada à reflexão dos mistérios de nossa Fé, chegou à conclusão de que o cristianimo é místico ou não é cristão. A Encarnação de Deus no ser humano e, por extensão, em toda Criação, fundamenta essa tese. Somos “Corpo místico de Cristo” e, Nele, do próprio Deus. Sem uma dose de panteísmo (Deus em tudo e tudo em Deus) não é possível entender a Fé cristã. Nem sequer
a expressão “Deus conosco” (Emmanuel) ou “Ele está no meio de nós” exprimem o mistério místico de Cristo que nos une a Deus.

Também não cumpre a experiência mística da Fé cristã a outra versão das duas grandes espiritualidades: vida ativa e vida contemplativa que plasmaram as diferentes congregações religiosas ao longo dos tempos. Nenhuma ação ou obra boa nos torna santos e nos leva à comunhão vital com Deus, assim como o “êxtase” de uma vida contemplativa nos arrebata da nossa condição terrena. A mística da nossa Fé consiste, segundo Von Balthasar, não em irmos a Deus (caminho da ascese) mas na vinda de Deus a nós. Ele vem não como hóspede de nossas almas, mas feito carne (realidade histórica) em nossa carne, vida na nossa vida real. A revelação bíblica mostra-nos cinco maneiras de Deus vir ou encarnar-se em nós por obra do Espirito Santo:

-Na pessoa de Jesus de Nazaré: “Deus se fez homem”, unindo o ser humano a Deus.

-Na Virgem Maria: “Concebeu e deu à luz o Filho de Deus”. Ele se fez Mãe em Maria.

-No Pão eucarístico: “Aquele que comer deste Pão viverá por mim”. Tem a mesma vida divina. Não por acaso Jesus nasceu em Belém, que significa “Casa do Pão”. Deus anunciava Sua Encarnação no Pão.

-No povo reunido em nome de Jesus, “Corpo mistico”. Se faz presente esta encarnação divina após a consagração ou encarnação no Pão suplicando: “Envia,Senhor teu Espírito para sermos um só corpo e um só espírito”, realizando o pedido de Jesus a Deus Pai: “Que todos sejam um como nós somos um” (Jo.17).

-Na Criação: “Tudo será em Deus.” (Ap.21) O futuro da história do universo finalizará numa comunhão de todas as criaturas em Deus. Também essa Encarnação cósmica é obra do Espírito Santo, presente nos primórdios da Criação (Gn.1) a ser consumada pelo mesmo Espírito que suplica dentro de nos: “Vem, Senhor Jesus”(Ap.22) .

“EU E MINHA FAMÍLIA SERVIREMOS A JAVÉ, POIS ELE É NOSSO DEUS”(Js. 24,1-18).

Josué convocou o povo de Israel após passar o rio Jordão para tomar posse da terra de Canaã. Fez breve histórico da ação libertadora de Deus, desde Abraão, libertado da sua idolatria, assim como da recente libertação da escravidão do Egito, atravessando penosamente durante 40 anos o deserto e, agora, cruzando o rio Jordão. Lembrando esses prodigiosos fatos, Josué diz ao povo todo: “Escutem hoje a quem querem servir: aos deuses de outros povos ou a Javé, a gente Deus de Abraão, porque eu e minha família serviremos só a Javé”. O povo a uma só voz respondeu: “Nós também só serviremos a Javé”. A escolha ou pacto que Josué fazia com seu povo não era mística de comunhão com Deus, que nos veio através da sua Encarnação em Cristo. Tratava-se de uma adesão “externa”, comum em todas as religiões, pela qual temos a Deus como nosso “aliado” nas lutas de nossa vida, esperando Dele Sua ajuda. Sem Cristo, todas as religiões são, “profanas”, termo grego que significa estar em frente ou diante da luz, no caso, de Deus. Ele permanece distante e separado de nós. Por isso só pode ser invocado com medo e temor. Da mesma maneira, como temos repetido muitas vezes, ser difícil passar do regime da lei do dever ao regime da graça em Cristo, também é difícil passar do espirito religioso à verdadeira Fé, própria do cristianismo, que nos une realmente a Deus. Aderir a um Deus Todo Poderoso,que abre as águas do mar da vida para passarmos a pé enxuto, que faz chover maná no deserto para suprir nossas carências ou que nos faz derrotar nossas adversidade e inimigos, é fácil e até necessário. De fato, o ser humano é naturalmente religioso porque é precário, necessitado e mortal, por isso invoca um ser superior que lhe possa ajudar nas suas carências. Aderir e esperar a vida de um Deus crucificado vai além do sentimento religioso natural. Exige, o dom da Fé, que nos faz sentir em Cristo divinizados. Chesterton expressava a diferença entre Fé e mera religiosidade dizendo: “Antes, como religioso, eu acreditava em Deus. Agora, pela Fé, só creio em Deus”. A fé vai além da conversão moral. Ela nos faz santos como Deus é Santo e nos une a Deus. Isso significa ser ” místico”, sinônimo de cristao. Pela fé nos unimos a Cristo e em Cristo a Deus.A graça ou as ” graças”,como costumamos dizer, para referir a ” ajuda” de Deus na solução dos problemas de cada dia, é comunhão de vida com Deus.
“O HOMEM DEIXARÁ SEU PAI E SUA MÃE E SE UNIRÁ A SUA MULHER, E SERÃO UMA SÓ CARNE. ESTE MISTÉRIO É GRANDE EM RELAÇÃO A CRISTO” ( Ef. 5,21-33)
O Sl. 8 nos revela que a criaçao narra as maravilhas de Deus, mas encontra no ser humano sua maior glória e grandeza.Ele foi criado homem e mulher para serem uma só carne, como Deus Pai,Filho e Espírito Santo são três e um só Deus.Tudo quanto existe veio da UNIDADE divina e a ela retorna.A sexualidade é, ao mesmo tempo, separação e procura da unidade divina. Sexo , do latim secare, signfica cortar ou separar o que formava um só corpo. Daí sua interpretação moral de pecado e morte,que significam o que está separado da vida,que é Deus. Os entes vivos nao seriam sexuais se fossem imortais como as baterias e os anjos.As plantas e os animais unem-se misticamente a Deus transmitindo ,pela união sexual ,a vida a sua espécie ,a espera da sua comunhão com Deus no fim dos tempos.Pertence ao ser humano, em nome de toda a criação, exprimir também sexualmente a comunhão com Deus. Além de cumprir sua função reprodutiva,comum a todos os entes vivos sexuados porque mortais, a união do homem e da mulher é sinal e sacramento da união de Deus com o ser humano e, por extensão, com toda a criação.

O amor esponsal é místico, nos mergulha no mistério da Salvação de Deus, como se nos revela nesta carta São Paulo: “Esse mistério (a união do casal) é grande em relação a Cristo e seu povo”. Na Bíblia, a imagem do casamento aparece frequentemente para designar a relação amorosa e de união de Deus com seu povo que, em Cristo, é todo ser humano. Esta relação esponsal supera a existente entre amigos, que exige reciprocidade nem sempre correspondida. É superior também à relação filial, que implica submissão, obediência e respeito e, por tanto, distanciamento. Na comunhão do casal, o outro é seu próprio corpo (ser e vida). O amor é a própria união e vice-versa. “Ninguém odeia sua própria carne (pessoa) pelo contrário, a nutre e dela cuida como faz Cristo com seu povo, seu Corpo”. Entende-se a razão pela qual, na celebração deste grande mistério do Casamento, declara-se o mesmo como indissolúvel, para sempre, pois romper a união de um casal significaria romper a união do ser humano com Deus.

Eu costumo dizer que um casal separado ou divorciado torna o mundo mais ateu e a Salvação do mundo mais insegura e incerta.

H.Kung, um dos maiores teólogos do século XX, falecido recentemente, considera a fidelidade o atributo mais próprio e significativo de Deus, maior do que ser Todo-Poderoso e, mesmo, misericordioso. A fidelidade de Deus nos brinda a absoluta certeza da nossa Salvação. Por que Deus é fiel, sua união com o ser humano é eterna e irreversível. O casal cristão tem a missão de tornar visível pela sua união mútua, fiel e indissolúvel, a Salvação do mundo. Quando Cristo foi interpelado pelos fariseus sobre o divórcio que a Lei de Moisés permitia, disse: “No princípio não foi assim.
Moisés o permitiu por causa da fraqueza humana”. Esta fragilidade permanecerá até o Fim dos Tempos, por isso o divórcio hoje é mais frequente que o o próprio casamento. Nem por isso, o Sacramento da união de Deus para conosco em Cristo, que o casal cristão é chamado a viver, é abolido.

Sempre haverá casais exemplares, vivendo unidos como Cristo está unido com o ser humano por toda a eternidade. O
que sim podemos afirmar é que o casamento, como sacramento ou sinal de Salvação, só pode ser vivido misticamente, enquanto comunhão de nós com Deus. De outra maneira, não passará de dois egoísmos juntos.

“A QUEM IREMOS, SENHOR? TU TENS PALAVRAS DE VIDA ETERNA. NÓS ACREDITAMOS E SABEMOS QUE TU ÉS O SANTO DE DEUS”(Jo.6,60-69)

Após Jesus ter revelado ao povo que lhe seguia, por terem visto o prodígio da multiplicação dos pães, que Ele era o Pão descido do Céu que nos dá a vida de Deus, todos, exceto os doze apóstolos, lhe abandonaram. Dirigindo-se a eles, lhes interpelou: “Também vocês querem ir embora?”. Pedro, em nome dos seus companheiros, confessou: “E a quem iremos, Senhor? Só Tu tens palavras de vida eterna”. Em três momentos Pedro, um simples pescador analfabeto da Galiléia, nos legou a única e verdadeira conclusão do saber humano que só podemos ter em Cristo. Em Mt. 16l: Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”, única esperança da história. Em At. 4: “Não foi dado aos homens outro nome (pessoa) pelo qual
possamos ter a vida a não ser Jesus Cristo”. É nesta ocasião em que Jesus revela-se como Pão a ser comido para termos a vida eterna. As ciências, filosofias e crenças buscam uma verdade absoluta ou conclusão à qual aderir para dar sentido à própria existência e ao mundo que habitamos. Mas, como afirma Popper, essa meta ninguém atingiu nem poderá atingir racionalmente. Toda verdade é provisória e inconsistente. Jesus declarou a Pedro, conhecedor da verdade de Deus, revelada em Cristo: “Feliz és tu, porque não foi a carne e o sangue que te revelou isso, mas meu Pai”. Desafiando a todo saber humano, Jesus disse: “Eu sou o caminho a verdade e a vida”.

Ele não é uma verdade lógica ou ideologia, mas fato. O saber é conclusivo e verdade absoluta quando nos comunica a vida e nos une a Deus. Só Cristo fez real nossa comunhão real com Deus, de maneira física e concreta. Hegel, conclui a história com o advento do “Espirito Absoluto”, ideia abstrata sem carne e vida, que seria uma versão do budismo a procura de uma Iluminação vazia.

Aristóteles, pelo caminho da razão, reduziu Deus a “pensamento do pensamento”, carente de amor e inacessível ao ser humano. Nenhuma filosofia nem religião jamais imaginou a possibilidade da nossa comunhão vital com Deus. E sem essa verdade o pensar humano carece de conclusão e de sentido. De nada nos serviria conhecer o que as coisas são objetivamente e conhecer todos os mistérios se seu ser e vida ficarem separados de nós. Jesus se fez Pão para tornar-nos concorpóreos e consanguíneos a Deus, verdade conclusiva de todo saber, agir e esperar do ser humano.

Inciamos a reflexão deste domingo afirmando que o cristianismo será mistico ou não será cristão. A mistica cristã se vive plenamente na Eucaristia. Não precisamos ir a um mosteiro nem sermos uma Santa Teresa de Avila ou um São João de Cruz, chamado o mistico dos misticos, para sentir-nos realmente unidos a Deus. Todo aquele que come o Pão Eucarístico consciente de estar, mais do que recebendo, fisicamente, comendo a Deus feito carne em Cristo, une-se no ser e na vida a Deus. A Eucaristia é a mistica e o Mistério da nossa Fé. Temos de A viver como nossa verdadeira espiritualidade em suas duas grandes dimensões: Páscoa e Comunhão. Como Páscoa, passamos da morte e do pecado à vida santa de Deus. Como Comunhão, ficamos unidos eternamente a Ele. Seria tão sublime, dizer a nós mesmos toda vez que nos dispomos participar deste Mistério: vou celebrar minha vitória contra a morte e o pecado e unir-me a Deus. Na luta de cada dia, nunca nos sentiriamos derrotados e nossa viagem existencial seria feliz. Precisamos limpar o pó que ao longo dos tempos encobriram a pérola eucaristica.

Wittgenstein, na sua filosofia da linguagem, afirma que uma das grandes tarefas do saber humano consiste em corregir ou rescobrir o sentido das palavras. A Eucaristia precisa dessa redescoberta. Ela recebeu vários nomes ao longo da História, como fração do Pão, Páscoa, Missa, Eucaristia. Hoje nos reportaria seu maior sentido salvador se fosse referida significando sua ação salvifica de Deus e comunhão de vida com Ele. Expressões tão populares como Missa de setimo dia, de açao de graças, de casais, de sanação, de doentes, de almas e outras escurecem este Mistério mistico da nossa Fé. Da mesma maneira o acumulo de ritos e símbolos dentro da sua celebração que, ao invés de A enriquecer, A empobrecem e encobrem Seu verdadeiro sentido. E maior pecado cometemos ainda quando o Pão da Vida a comer, que Cristo nos dá gratuitamente O condicionamos aos nossos meritos e santidade, desmentindo as palavras de Jesus: “Eu não vim para os que tem saúde, mas para os doentes”. Há um livro de um teólogo australiano, não há muito tempo publicado, sobre a Eucaristia, intitulado: “Corpo partido para um Corpo partido”. Jesus quebrantado na cruz para nós quebrantados ou partidos pelo pecado, que nos ajuda a comer Pão da Vida sempre. As palavras antes da Comunhão: “Senhor eu não sou digno…” são maravilhosas mas não exprimem a grandiosidade da nossa Comunhão com Deus de maneira existencial e escurecem a graça salvifica de Deus, condicionando-a a nossa santidade. Sem uma vivência mística da nossa Fé, pela qual nos sentimos unidos a Deus, nos esforçaremos por ir a Deus sem jamais atingirmos esta meta e o cristianismo deixará de ser cristão, isto é vida de Cristo e, em Cristo, vida de Deus, que na Eucaristia se faz realmente presente.

Padre Jesus Priante
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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