Versões online da Bíblia – hebraico, aramaico, grego, latim – apresentadas em Paris

Paris (RV) – Um novo programa de edições online dos textos bíblicos foi apresentado esta quarta-feira (07/12) em Paris, na presença do ator Michale Lonsdale – que leu algumas passagens bíblicas – e do dominicano Olivier-Thomas Venard, coordenador da iniciativa. O site tem versões em francês, inglês e espanhol.

O projeto, intitulado “La Bible en ses traditions” (“A Bíblia nas suas tradições”) – e sugestivamente com a abreviatura “Best” – prevê a publicação das versões hebraica, aramaica, grega e latina das Sagradas Escrituras, “sem privilegiar uma ou outra em nome de uma frequentemente discutível ‘autenticidade'”. Uma Bíblia, portanto, moderna e poliglota, enriquecida com notas de rodapé, tornando-a acessível a todos.

O anúncio do projeto foi antecipado nos dias passados em uma entrevista concedida ao jornalista e historiador Michel De Jaeghere, do ‘Le Figaro’, pelo coordenador dos trabalhos, o dominicano Olivier-Thomas Venard, Doutor em Teologia e em Letras, docente de Novo Testamento e Vice-Diretor da ‘École Biblique et Archéologique française’ de Jerusalém, que promove o projeto “Best”.

Na entrevista, que reproduzimos a seguir, Venard qualifica como “revolucionária” a iniciativa.

Uma revolução na história da literatura

Escutar as Escrituras em estereofonia. Esta é a imagem musical que o dominicano Olivier-Thomas Venard, Vice-Diretor da ‘École Biblique de Jerusalém’, usa para explicar o projeto que na França disponibilizará online as versões antigas da Bíblia.

P: Em dezembro o senhor lançará um ambicioso programa de edição do texto bíblico na internet. Em que consiste?

“Todas as Bíblias atualmente disponíveis apresentam um texto que é paradoxalmente artificial: é na prática uma reconstrução do texto “original” feita por estudiosos. O problema é que o original não pode ser encontrado e, em certos casos, talvez não tenha nunca existido. De fato, a Bíblia não é tanto um livro, mas uma biblioteca, que recolheu progressivamente livros escritos, editados e remodelados, em duas ou três línguas, por cerca de um milênio.

Inseridas na  história real, as Escrituras se apresentam, portanto, imediatamente como diferentes. Como os cristãos têm quatro Evangelhos que narram a mesma história, mas com muitas diferenças entre eles, assim, cerca de um terço do Antigo Testamento se apresenta a nós em diversas versões: em hebraico, em grego, em latim, em siríaco, por sua vez diversificadas, sem que se possa dar a prioridade absoluta ou sistemática a um deles. Ora, isto não é um defeito a ser corrigido, é uma riqueza!

Como observa o autor do Salmo 62,  “Deus falou uma vez, e duas eu escutei”: quando o verdadeiro Deus fala aos homens na linguagem deles, a sua palavra produz imediatamente a pluralidade. O nosso projeto consiste em disponibilizar online as diversas versões do texto, sem privilegiar um ou outra em nome de uma frequente discutível “autenticidade”.

Em primeiro lugar, porque os textos provenientes dos manuscritos mais recentes do que dos outros podem ter retomado tradições mais antigas: por exemplo, São Jerônimo elaborou a Vulgata no século V depois de Cristo, a partir do texto grego da versão dos Setenta, que remonta ao século III a.C, mas traduzindo também manuscritos hebraicos disponíveis na sua época e hoje perdidos.

Depois, porque a antiguidade não é necessariamente um critério: é necessário abandonar a imagem infantil de uma Bíblia “ditada” por Deus ao escritor sagrado nos moldes do Jibrîl (o anjo Gabriel), que dita o Alcorão a Maomé.

A inspiração divina das Escrituras passa pela humanidade de seus múltiplos autores e redatores e acompanha a sua longa elaboração da Bíblia, incluindo o trabalho dos escribas tradutores ou copistas!

O nosso modelo de tradução apresentará esta riqueza, consentindo ler as diversas versões na mesma página. Na prática: não se deverá mais contentar  em escutar a Bíblia em mono, mas lá ela poderá ser ouvida em estéreo; a Palavra de Deus não é uma simples melodia, é uma polifonia! Por fim, ofereceremos gratuitamente esta tradução, porque é um escândalo no mundo francófono que as bíblias católicas modernas sejam antes de tudo um objeto comercial. Nenhuma é de livre acesso!”

P: O caráter ilimitado da internet permite também multiplicar o trabalho de comentar…

“Nas suas notas muito históricas, a maior parte das Bíblias disponíveis procura explicar o mundo precedente ao texto, aquele que de qualquer maneira o produz. Nós queremos completá-las com notas sobre o mundo sucessivo ao texto, aquele que o texto influenciou, antes ainda, fez nascer! É aquela conhecida como história da recepção: nós não somos os primeiros a ler as Escrituras e, quer sejamos mais ou menos conscientes disto, a nossa leitura nunca é ingênua e sempre cheia de imagens, de interpretações destes textos que povoam a nossa memória, individual e coletiva.

Para entender bem uma narrativa bíblica, vale portanto a pena tomar consciência dela, e descobrir não somente o modo como religiosos judeus e cristãos a comentaram no decorrer dos séculos, mas também aquilo em que os autores literários inspiraram-se, a representaram, a representaram, os músicos colocaram na música e os cineastas transpuseram em um filme, e assim por diante. Deve-se portanto estudar também as pinturas do Beato Angelico, o Nabuco de Verdi ou os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille!

O trabalho em andamento será disponibilizado online em dezembro (scroll.bibletraditions.org). Em parte! Porque serão necessários anos para elaborar toda a Bíblia neste modelo. Por isto, ao compartilhar os nossos primeiros resultados, convidaremos os leitores a melhorá-los e a enriquecê-los continuamente: em qualquer momento de suas leituras poderão nos enviar um e-mail para propor correções, aprofundamentos”.

P: O sistema de comentários de vocês mostra os desenvolvimentos que o texto bíblico nunca deixou de ter em todos os ambiente da cultura, da pintura à literatura, da ópera à dança. Colocando lado a lado por um momento a dimensão propriamente espiritual, como explica a incrível fecundidade das histórias que que narra?

“Pelo próprio modo em como foram elaboradas, as Escrituras reuniram um fabuloso concentrado de milênios de sabedoria humana desdobrada em civilizações tão prestigiosas como a suméria, babilônia, egípcia. Todas Ihibridizadas pelos escritores judeus antigos, que “filtraram” de certa forma as religiões dos povos que os circundavam, conservando os seus tesouros de sabedoria humana e ao mesmo tempo criticando as suas falsas concepções do divino e do sagrado.

E depois, ao centro da Bíblia cristã, há aquela maravilha que é a Encarnação: Deus ama de tal forma o homem, aproximando-se dele a ponto de tornar-se um de nós. Que se acredite nisto mais ou menos, não se pode que não constatar que tal crença produziu aquilo que o próprio grande crítico marxista Erich Auerbach definiu como uma verdadeira revolução na história da literatura.

A partir daquele momento, aquilo que existia de mais nobre, de mais profundo, de mais chocante, passou a não mais ser reservado aos reis e às rainhas em seus palácios, mas torna-se acessível a qualquer um. Se se acredita que Deus mesmo se fez carne e sangue por meio de uma jovem como Maria de Nazaré, toda pessoa humana assume, desde a sua origem, um valor sem igual: os traços individuais que fascinam os pintores, a história insubstituível de cada um que inspira os escritores, nada de tudo aquilo existiria sem este novo status que a revelação cristã deu a cada pessoa”.

P: O Antigo Testamento apresenta um Deus vingativo, ciumento, que multiplica os apelos à violência e que parece, portanto, um pouco primitivo para a nossa mentalidade moderna?

“Me desculpe se sou um pouco duro, mas me parece que “primitiva” é a bem-aventurada ignorância das Escrituras em que nós, modernos, nos comprazemos! Deter-se no Deus irado ou vingativo dos oradores do Grand Siècle ou ao Adonai Sabaoth dos românticos como Victor Hugo é uma caricatura, porque o Antigo Testamento apresenta também um Deus que sofre, que diz ao seu povo que é infiel, por exemplo, “com os teus pecado me davas trabalho e me cansavas com tuas culpas” (Isaías 43,24), ou até mesmo um Deus quase insípido mas com a força de ser o “pai açucarado”, por exemplo em Oséias, um dos mais antigos Profetas da Bíblia, do Século VIII antes da era cristã, para quem Deus é terno “como quem levanta até seu rosto uma criança, para dar-lhe de comer ” (11,4).

Dito isto, é verdade, na Bíblia se apresenta o problema da violência. Desde que deixamos o nosso programa de ‘retradução’ e de comentários da Bíblia, recebemos regularmente as cartas comoventes de um senhor muito idoso, grande leitor da Bíblia em seu quarto no hospital, abalado por tantas passagens violentas, que nos pede para “desminá-las”.

Uma maneira para fazer isto é de levar em consideração o desenvolvimento progressivo da revelação. Os homens aos quais Deus começa a falar chegaram a praticar a vingança cega. Reduzi-la por meio da famosa Lei do Talião já era uma espécie de passo em frente: “olho por olho, dente por dente” já é melhor do que “tu me roubaste um bem, massacrarei toda a tua família”.

É claro que a misericórdia e o perdão são o melhor exercício diante da violência, mas trata-se aqui de uma imitação da paciência de Deus – não pagai o mal com o mal, mas sejais misericordiosos como o vosso Pai celeste é misericordioso – o que requer tempo para aprender.

Das páginas mais selvagens do Antigo Testamento, até ao “Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem” de Cristo sobre a Cruz, que reza pelos seus algozes, as Escrituras inspiradas por um Deus infinitamente compassivo, podem acompanhar cada um de nós no caminho do controle da violência”.

P: A Lei de Moisés não é talvez pesada para cumprir, como as prescrições do Alcorão?

“Não é absolutamente a minha experiência. E certamente não é a do judaísmo rabínico que nós amamos, em que a Torah é tudo, exceto um livro fixo a ser imposto à força a todos, mas um detonador de interpretações, de interrogações quase ao infinito, um catalizador da inteligência prática!”

P: No passado os cristãos foram muitas vezes tentados a defender a sua fé com a espada….

“Quando o fizeram, foi contra os próprios textos sagrados, portanto, não como cristãos, mas como ímpios ou pecadores. No início do terceiro milênio, o Santo Padre João Paulo II justamente pediu perdão por aquelas traições da mensagem do Evangelho”.

P: O Jesus que os Evangelhos apresentam é um reflexo das narrativas oculares ou a expressão da fé de comunidades de fieis?

“Os Evangelhos se fundam em testemunhos e transmitem fatos históricos irredutíveis, muito além da elaboração literária que os caracteriza. Os exegetas individuaram em todo o Novo Testamento a existência de uma “tradição isolada” relacionada a Jesus: um conjunto de narrativas e de palavras que lhe são atribuídas, que foram transmitidas fielmente sem que lhe tenham sido feitos modificações ou acréscimos.

Por exemplo, enquanto a questão de circuncidar ou não os filhos dos novos fieis provenientes do mundo não judaico agitava as primeiras comunidades, não se permitiu ali de inventar um discurso claro de Jesus a este respeito! Ou ainda, enquanto nos Evangelhos de João ou de Lucas se venera Jesus Verbo, não lhe são atribuídas palavras em que ele mesmo se designaria claramente como tal.

Mas – não resta dúvida – para transmitir esta memória de Jesus de modo vivo, desde o início ela foi adaptada ao público ao qual queria que fosse comunicada. Os próprios Evangelhos, por exemplo o de Lucas nas suas primeiras linhas, descrevem o trabalho realizado: seleção, verificação, acabamento. Mas tudo isto é feito dentro dos limites que aparecem bem refletidos pelas diferenças existentes entre os quatro Evangelhos canônicos”.

P: O cristianismo se ressente  do fato de ser uma religião do livro e por isto ligada aos condicionamentos de quem redigiu os seus textos, com preconceitos e as concepções de seu tempo?

“Atenção! O cristianismo “não” é uma religião do livro, mesmo se é uma religião “com” livro. A expressão “religião do livro” faz parte do discurso islâmico que, geralmente, não deixa nem o judaísmo nem o cristianismo definir-se sozinhos e os redefine nos próprios termos.

A fórmula fácil “religião do livro” não pertence ao patrimônio cristão e, certo, a menos que não se esteja convencido da veracidade do Islã, é necessário rejeitá-la. Para nós católicos, em todo o caso, a Escritura tem o status de pró-memória. Pró-memória sagrado, talvez, beijado e incensado pela liturgia, mas para sempre pró-memória.

Em palavras simples: não acredito que Cristo tenha ressuscitado porque está escrito no livro, mas isto foi escrito porque no início alguns testemunhos narraram o seu encontro com ele e quiseram deixar um registro sobre isto! Para o cristianismo, no centro não está o livro, mas a pessoa de Jesus Cristo: Deus fez-se carne para manifestar-se, dotando-se de cordas vocais, de pulmões, de uma boca, de um corpo, para falar, com palavras e gestos, e transmitir uma mensagem vital, crucial para os homens. E a transmissão viva e contínua da sua revelação, que chamamos tradição, constantemente irrigada pelo rio das Escrituras”.

 

Fonte: Rádio Vaticano

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