Uma monja trapista nos ajuda a viver um Natal cristão

O real sentido do Natal que está ligado, de modo pleno, aos grandes mistérios da Encarnação e da Redenção. Entenda:

Num tempo em que somos, cada vez mais, instados, de modo insistente, a dessacralizar o Natal para torná-lo um “feriado a mais” do calendário, desejo oferecer-lhe, com a graça de Deus, uma reflexão sobre o genuíno sentido dessa solenidade da Igreja, à luz da espiritualidade trapista, nome popular da Ordem Cisterciense da Estrita Observância, que tem, no Brasil, dois mosteiros: o masculino, em Campo do Tenente (PR), e, em Rio Negrinho (SC), o feminino. Fá-lo-ei por meio de trechos de Cartas da Beata Maria Gabriela Sagheddu (1914-1939), monja da Trapa de Grottaferrata, Itália.

Desejo, no entanto, relembrar, de início, ainda que muito brevemente, o real sentido do Natal que está ligado, de modo pleno, aos grandes mistérios da Encarnação e da Redenção. Com efeito, após o pecado dos primeiros pais, Deus não se deixou vencer pelo mal, mas prometeu vencer o grande mal com um bem ainda maior: a Encarnação do seu próprio Filho, Jesus Cristo. Isso é o que lemos no livro do Gênesis, capítulo 3. Na bonança do paraíso terrestre, um casal – Adão e Eva – é tentado pelo maligno e cai na tentação. Consequência: perderam tudo o que possuíam de mais valioso, isto é, a santidade original que compreendia a filiação divina e os dons preternaturais, ou seja, a imortalidade, a impassibilidade, a integridade e a ciência moral infusa. Assim, como um casal que, por desleixo, perde sua fortuna em maus negócios e os filhos inocentes pagam por isso nascendo pobres, nós também nascemos carentes da filiação divina, mas a ela somos elevados pelo santo Batismo.

Isso é o que o Papa São Paulo VI nos recorda: “Cremos que todos pecaram em Adão; isto significa que a culpa original, cometida por ele, fez com que a natureza, comum a todos os homens, caísse num estado no qual padece as consequências dessa culpa. Tal estado já não é aquele em que no princípio se encontrava a natureza humana em nossos primeiros pais, uma vez que se achavam constituídos em santidade e justiça, e o homem estava isento do mal e da morte. Portanto, é esta natureza assim decaída, despojada do dom da graça que antes a adornava, ferida em suas próprias forças naturais e submetidas ao domínio da morte, é esta que é transmitida a todos os homens. Exatamente neste sentido, todo homem nasce em pecado. Professamos pois, segundo o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido juntamente com a natureza humana, pela propagação e não por imitação, e se acha em cada um como próprio” (Credo do Povo de Deus, n. 16).

E continua: “Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Sacrifício da Cruz, nos remiu do pecado original e de todos os pecados pessoais, cometidos por cada um de nós; de sorte que se impõe como verdadeira a sentença do Apóstolo: ‘onde abundou o delito, superabundou a graça’ (cf. Rm 5,20). Cremos professando um só Batismo, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo para a remissão dos pecados. O Batismo deve ser administrado também às crianças que não tenham podido cometer por si mesmas pecado algum; de modo que, tendo nascido com a privação da graça sobrenatural, renasçam da água e do Espírito Santo para a vida divina em Jesus Cristo” (idem, n. 17-18).

Voltando ao fio condutor deste artigo, noto que, logo após a ocorrência do pecado, Deus promete o Salvador para derrotar a serpente infernal, o demônio, autor do pecado. Sim, “o Senhor Deus disse à serpente: ‘Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais domésticos e feras do campo; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar’” (Gn 3,14-15). É o chamado Protoevangelho ou o primeiro anúncio da salvação. E Deus escolhe enviar o seu Filho, na plenitude dos tempos, nascido de uma mulher (cf. Gl 4,4). Refaz o caminho da perdição de um homem e uma mulher – Adão e Eva, o casal das origens –, também por um homem e uma mulher, Cristo e Maria, o Filho divinamente gerado e sua mãe, a Santíssima Virgem. Daí São Paulo ver em Nosso Senhor o novo Adão (cf. Rm 5,12-21) e os Padres da Igreja associarem Nossa Senhora à nova Eva.

Sim, referindo-se a Gn 3,15, o Catecismo da Igreja Católica assevera: “A Tradição cristã vê nesta passagem um anúncio do ‘novo Adão’ que, pela sua obediência até à morte de cruz (Fl 2,8), repara superabundantemente a desobediência de Adão. Por outro lado, muitos santos Padres e Doutores da Igreja veem na mulher, anunciada no protoevangelho, a Mãe de Cristo, Maria, como ‘nova Eva’. Ela foi a primeira a beneficiar, de um modo único, da vitória sobre o pecado alcançada por Cristo: foi preservada de toda a mancha do pecado original e, durante toda a sua vida terrena, por uma graça especial de Deus, não cometeu qualquer espécie de pecado” (n. 411). É Maria Santíssima, em virtude dos méritos de Cristo, preservada do pecado em vista da maternidade divina (cf. Lc 1,35) profetizada por Isaías 7,14 e recordada por Mateus 1,23.

Cristo, sem deixar de ser Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, assume, no ventre de Maria, também a nossa natureza humana em tudo, menos no pecado, e, por isso, é verdadeiro Deus e também verdadeiro homem. Uma só pessoa, a divina, mas com duas naturezas, a divina e a humana. Portanto, Nossa Senhora é – como celebramos em 1º de janeiro – Mãe de Deus. Não de Deus em sua eternidade, mas de Deus feito homem no tempo. Eis, em síntese, o que diz o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica: “A Igreja chama ‘Encarnação’ ao mistério da admirável união da natureza divina e da natureza humana na única Pessoa divina do Verbo. Para realizar a nossa salvação, o Filho de Deus fez-se ‘carne’ (Jo 1,14) tornando-se verdadeiramente homem. A fé na Encarnação é o sinal distintivo da fé cristã” (n. 86).

Por isso, “o Concílio de Calcedônia ensina a confessar ‘um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na sua divindade e perfeito na sua humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro homem, composto de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai pela sua divindade, consubstancial a nós pela humanidade, ‘em tudo semelhante a nós, exceto no pecado’ (Hb 4,15); gerado pelo Pai antes de todos os séculos, segundo a divindade e, nestes últimos tempos, por nós homens e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria e Mãe de Deus, segundo a humanidade” (n. 88). Daí a Igreja exprimir esse mistério “afirmando que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com duas naturezas, a divina e a humana, que se não confundem, mas estão unidas na Pessoa do Verbo. Portanto, na humanidade de Jesus, tudo – milagres, sofrimento, morte – deve ser atribuído à sua Pessoa divina, que age através da natureza humana assumida” (n. 89). Por conseguinte, “Maria é verdadeiramente Mãe de Deus porque é a mãe de Jesus (Jo 2,1; 19,25). Com efeito, Aquele que foi concebido por obra do Espírito Santo e que se tornou verdadeiramente Filho de Maria é o Filho eterno de Deus Pai. É Ele mesmo Deus” (n. 95). Isso significa que “Jesus foi concebido no seio da Virgem apenas pelo poder do Espírito Santo, sem intervenção de homem. Ele é o Filho do Pai celeste, segundo a natureza divina, e Filho de Maria segundo a natureza humana, mas propriamente Filho de Deus nas suas naturezas, existindo nele uma única Pessoa, a divina” (n. 98).

Perceba o imenso sentido do Natal. Ele concretiza, nove meses depois (25 de dezembro), tudo quanto o anjo anunciara em 25 de março. Daí, toda a vida de Cristo ser uma redenção físico-mística, pois conforme Ele toma contato com a nossa realidade, a vai santificando; por fim, realiza, na cruz, a redenção propiciatória por meio de sua entrega total ao Pai (cf. Dom Estêvão Bettencourt, OSB. Iniciação Teológica. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2013, p. 152-158). Será que temos consciência de tudo isso ou nos voltamos muito mais para o secundário do dia a dia? Neste ponto, creio, como mencionei no início, que alguns trechos de Cartas da Beata Gabriela Sagheddu muito podem ajudar a relembrar ou mesmo a reaprender o verdadeiro sentido do Natal, solenidade do nascimento do Senhor.

Em 29/12/1935, ela escreve à sua mãe: “Não tendo conseguido escrever para o Natal, o faço no Ano Novo. Desejo-lhe que neste ano, que começa nestes dias, o Senhor a preencha com suas bênçãos celestiais; que conceda à senhora e a todos os demais membros da família as graças de que necessitam para a vida temporal e a salvação eterna. Recorde-se de invocá-lo e Ele com certeza não deixará de escutá-la”.

“Agora, conto-lhe como passamos o Santo Natal. No dia da Vigília de Natal, fomos para a cama às cinco. Pareço ouvi-la rir e dizer: ‘cedo demais’. Porém, nós nos levantamos às nove e cantamos até às onze e meia, mas não pense que foram canções, o que cantávamos eram salmos. Depois, à meia-noite, começou a missa do Menino Jesus, também cantada, e nessa missa comungamos. Pense, receber o Senhor antes da uma hora e me diga se não parece melhor do que comer um cordeiro e salsichas grelhadas como se faz em Dorgali. Após a missa, ainda cantamos de novo e depois fomos descansar um pouco. De manhã, ouvimos outras cinco missas”.

“Parece-lhe demais? Era o dia de Natal e é necessário venerar o Menino Jesus que, por amor a nós, nesse dia, se dignou descer do céu a esta terra miserável e a deitar na manjedoura de um estábulo. Meditemos nesta sublime lição. Ele, que é onipotente, criador do céu e da terra, se humilhou tanto; e nós, suas miseráveis criaturas, não queremos reconhecer o nosso nada e a nossa indignidade. Meus queridos, prometamos ao Senhor reconhecê-lo, ao menos de agora em diante, e reparar, enquanto pudermos, o mal que tenhamos cometido e todos os pecados que se cometem no mundo, que são muito numerosos. Agora peço-lhe que me faça saber como a senhora passou o dia do Santo Natal. […] Deixe-me saber se a missão que era esperada veio e se o compadre Billia e Salvador foram se confessar” (Cartas da Trapa: vida e correspondências de Maria Gabriela Sagheddu, monja trapista do século XX. São Paulo: Cultor de Livros, 2021, p. 86-87).

No dia 21/12/1936, a monja volta a escrever para a mãe com estas palavras: “O dia de Natal está se aproximando e também o final do ano. O Menino Jesus virá carregado de presentes e trará paz e amor aos corações. Preparemos também o nosso coração a fim de que Ele o encontre pronto para recebê-Lo e Ele não deixará de nos dar os dons espirituais de que precisamos. Peça por mim, para que, em breve, eu me torne uma santa religiosa e Sua esposa verdadeira, não apenas de nome. Eu pedirei pela senhora durante a comunhão que fazemos à meia-noite, e também durante o ofício que será todo cantado. Coube precisamente a mim cantar o Gloria in excelsis Deo. Vai sair um pouco desafinado, mas paciência! O Menino Jesus irá aceitá-lo do mesmo modo. Entreguemos todos os nossos pecados e faltas ao ano velho para que os sepulte e confiemos que o Ano Novo será portador das graças e bênçãos do Senhor” (idem, p. 98-99).

A atenção da monja trapista se volta para o Eterno. Isso não significa egoísmo e menosprezo para com o próximo e suas agruras, mas, sim, fazer uma correta escala de valores na qual Deus seja sempre o centro. Afinal, quem ama a Deus a quem não vê, ama também o próximo a quem vê (cf. 1Jo 4,20-21) com um amor muito maior, pois está repleto da graça divina.

Contemplando Deus-menino no presépio e nos irmãos e irmãs que mais sofrem, abramos-lhes o coração e, na caridade, os acolhamos. Feliz, abençoada e santo Natal!

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