JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA
Falando de injustiças históricas e crimes de guerra em sua encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco diz que hoje é fácil cair na tentação de virar a página, dizendo que muito tempo passou e que devemos olhar para frente. Não, pelo amor de Deus! Sem memória nunca avançamos, não podemos crescer sem uma memória íntegra e luminosa (Fratelli Tutti, 249)
Na Nota sobre a “Doutrina da Descoberta” (publicada neste dia 30 de março pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral), a Santa Sé examina cuidadosamente a história da Igreja e sua lamentável associação com a doutrina da descoberta, que tem sido invocada por várias potências coloniais contra os povos indígenas, em diferentes partes do mundo, para justificar a expropriação de sua história e a subestimação e eliminação de suas culturas.
A Nota reconhece que as bulas papais nas quais os poderes coloniais apoiaram suas reivindicações não refletiam adequadamente a igual dignidade e direitos dos povos indígenas e que os documentos foram manipulados por esses poderes para justificar atos imorais perpetrados contra eles, às vezes sem oposição da parte das autoridades eclesiásticas. A doutrina da descoberta não fazia parte do ensinamento da Igreja Católica, e é repudiada nesta nota; mas este trágico acontecimento recorda-nos a necessidade de estarmos cada vez mais vigilantes em defesa da dignidade de todos os homens e na necessidade de crescer no conhecimento e na valorização das suas culturas. Concretamente, como nos recordou o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’: é fundamental dar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais… Para elas, de facto, a terra não é um bem econômico, mas um dom de Deus e dos antepassados que nele repousam, espaço sagrado com o qual precisam interagir para alimentar a sua identidade e os seus valores (Laudato Sì, 146).
Esta Nota faz parte do que poderíamos chamar de arquitetura da reconciliação, e é também o produto da arte da reconciliação, o processo pelo qual as pessoas se engajam em ouvir umas às outras, falar umas com as outras e crescer na compreensão mútua. Nesse sentido, as percepções que informam esta Nota são, elas mesmas, fruto de um diálogo renovado entre a Igreja e os povos indígenas. É ouvindo os povos indígenas que a Igreja está aprendendo a compreender seus sofrimentos, passados e presentes, e nossas carências. É no diálogo cultural que nos comprometemos a acompanhá-los em sua busca de reconciliação e cura. Devemos viver a arte do encontro.