Papa Francisco surpreende mais uma vez com a atualidade de seu pensamento. A encíclica Fratelli Tutti é uma verdadeira fonte de luz e sabedoria para um mundo fechado pelas sombras dum momento crítico e assustador. Então Francisco lança luzes sobre o “anseio mundial de fraternidade” e conclama: “Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos”.
Ouçamo-lo, então. Começa por um desafio, lembrando-nos que há muitos sonhos desfeitos em pedaços clamando por restauração. “Reascendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos (11)”. O fim da consciência histórica (subtítulo inicial) utiliza-se “de jovens que a desprezem, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações” (13) e esse mecanismo político “nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeita sobre eles e reprimi-los (15)”. A manipulação opinativa e sua distorção das reais necessidades comunitárias tornou-se essencial na obra de cerceamento das liberdades humanas. O bem comum tornou-se bem de alguns. O interesse da maioria só com aprovação de uma minoria. “Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos (17)”. A cultura do descarte toma conta, não só no aspecto existencial (crianças, jovens e idosos) como também alimentar e suplementar. “O descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o racismo que se dissimula mas não cessa de reaparecer (20)”.
Papa Francisco não mede suas palavras ao fazer denúncias. “Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiças, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo econômico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem (22)”.
Ou: “Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia (27)”. Sua linguagem diplomática recorre ao obscurantismo passado para nos alertar que a ameaça do “bárbaro”, “a solidão, os medos e a insegurança…fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias (28)” atuais. “Esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade (30)” E consola, esperançoso: “Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor (31)”.
Atualíssimo, ainda comenta: “A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência (33)”. A causa das migrações populacionais também é alvo de suas ponderações. Idem para a “ilusão da comunicação”, com seus “fakes” e disfunções eróticas ou mesmo terroristas. Observa: “Isto permitiu que as ideologias perdessem todo o respeito. Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas e ficar impune (45)”. Estamos então nas mãos de um sistema autodestrutivo, impiedoso? Não, claro que não. Este é apenas um painel dum primeiro capítulo de uma reflexão primorosa. Que nos lembra: “A recente pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem que, no medo, reagiram dando a própria vida (54)”. Temos mais pela frente…