Simpósio Teológico

    Mosteiro São Bento, Rio de Janeiro, RJ, 4 a 7 de outubro de 2016
    “A MÍSTICA DO AMOR EM SANTA GERTRUDES”

    ABERTURA
    4 de outubro de 2106, terça-feira

    Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.
    Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

    Prezados(as) irmãos(ãs) presentes neste evento sobre Santa Gertrudes de Helfta, na Faculdade São Bento, do Rio de Janeiro, minhas saudações cordiais e acolhida fraterna em nome da nossa Arquidiocese.

    Acolhi com alegria o convite para fazer a abertura deste Simpósio sobre Santa Gertrudes. Acredito que o aprofundamento a respeito de sua vida e sua obra, como irá acontecer neste evento, possa contribuir efetivamente para a maior divulgação de seu modelo de santidade e do legado que deixou para o nosso tempo.   
    Esta iniciativa, com certeza também poderá abrir caminho para a realização de um anseio das comunidades monásticas, que é a proclamação do doutorado da Santa. Recebi, inclusive, uma solicitação de apoio por parte de uma religiosa da Ordem Cisterciense, que é postuladora dessa causa. Acolhendo o pedido, enviei uma carta ao Papa Francisco, no ano passado, manifestando meu apoio formal à proposta.
    Reconheço que uma decisão favorável a respeito proporcionaria um caminho para mais um doutorado feminino, e desta vez entre os santos monásticos, o que caracterizaria mais uma glória para as nossas Ordens, beneditina e cisterciense. Entretanto, o que me moveu a uma decisão favorável foi verdadeiramente o reconhecimento das virtudes da monja Gertrudes, tanto no que se refere à sua santidade de vida como à doutrina eminente que legou à Igreja.
    Acredito que os conferencistas convidados sejam seguramente capazes de discorrer com sabedoria sobre Santa Gertrudes, segundo os enfoques propostos pelo Simpósio. No entanto, peço que me permitam citar aqui os aspectos relativos à Santa que embasaram minha decisão.
    O debate, com o seu fundo histórico-teológico, se faz muito oportuno neste tempo em que três grandes Ordens – Beneditina, Cisterciense e Trapista (Cistercienses da Estrita Observância) – postulam, na Santa Sé, junto à Congregação para as Causas dos Santos, a elevação de Santa Gertrudes a Doutora da Igreja.
    Não é minha intenção entrar no tema específico do colóquio de nenhum dos que irão aqui contribuir para que mais e melhor conheçamos esta mulher-monja do século XIII. Afinal, cada estudioso dará, certamente, a sua imprescindível contribuição dentro deste evento, cujos textos das falas poderão ser, depois, reunidos a fim de repercutirem para muitas e muitas pessoas, talvez desejosas de estarem aqui, mas que por várias razões não puderam estar.
    Neste sentido, chegar até elas com estudos a respeito da chamada “Santa de Helfta” será de grande importância. É preciso, sem dúvida, fazer com que a figura de nossa monja, tão familiar às três Ordens que bebem na Regra de São Bento, seja também divulgada novamente no meio de nosso povo, como já foi no século XVI nas Américas Central e do Sul, especialmente pelos monges beneditinos, inclusive no Brasil há algumas igrejas (capelas, oratórios, paróquias) a ela dedicadas. Depois, ficou, infelizmente, um tanto esquecida, porém agora volta a ressurgir. Deus tem suas vias!
    Quero aqui, a título de motivação para este grande e oportuno evento, falar um pouco, em linhas bem gerais, sobre alguns traços marcantes do tempo de Santa Gertrudes, já que temos interesses teológicos e históricos a aprender aqui.
    É preciso dizer, ao falar de Santa Gertrudes, que estamos no auge da Idade Média. Ela, afinal, chega ao seu ponto alto no século XIII, com a figura do Papa Inocêncio III (1198-1216), “o Embaixador do Rei dos reis”. Foi ele, Pontífice que, com certo sucesso, a seu modo, conseguiu orientar, segundo a fé cristã, os acontecimentos do seu tempo.
    Estamos falando de um período no qual a Igreja gozou de muito prestígio, que muitos fiéis até se preocuparam com essa imponência; foi o que suscitou as Ordens Mendicantes de São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão; queriam lembrar ao mundo a pobreza de Cristo continuada na Sua Igreja. Algo que, dois séculos antes, no XI, os três fundadores de Cister – São Roberto, Santo Alberico e Santo Estêvão – já tinham, à sua maneira, feito ver a Igreja: é preciso “ser pobre com o Cristo pobre”. Daí a sobriedade no modo de ser cisterciense e trapista.
    Gostaria, ainda, de destacar dois tópicos importantes: as Universidades e a Mulher, pois não é sem razão que estamos falando muito bem de uma dentre as tantas mulheres que se realçaram naquele período, aqui dentro de uma Faculdade.
    O século XIII foi o período das grandes Universidades: Bolonha, Paris, Oxford… e isso é importante a fim de projetar luz sobre a Idade Média, tempo em que viveu Santa Gertrudes, não nas “trevas”, como se passou a dizer a partir da Idade Moderna, mas na “luz” dada pelos ensinamentos de então. Vejamos:
    “As Universidades, que eram obras da Igreja, dependiam diretamente do Papa e não do Bispo do lugar. Cada Universidade formava um corpo livre – o que quer dizer que estava isenta da jurisdição civil ou dos tribunais do rei. Professores, alunos e até os servidores destes estabelecimentos dependiam apenas dos tribunais eclesiásticos – o que era considerado um privilégio; professores e alunos administravam a sua tesouraria sem ingerência do Estado. É esta a característica essencial da Universidade medieval e aquela que mais a distingue da de hoje.”
    É certo, contudo, que o número de analfabetos também era grande, porém a leitura convencional – e isso talvez poucos saibam – não era tão primordial como é hoje. Isso explica a razão de “nos Estatutos municipais da cidade de Marselha, datados do século XIII, sejam enumeradas as qualidades exigidas de um bom advogado – ao que se acrescenta litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não); isto significa que alguém podia ser um bom advogado e não saber ler nem escrever; podia conhecer o Direito Romano, a jurisprudência e o uso da linguagem e, apesar de tudo, ignorar o alfabeto. Tal noção é de difícil compreensão para um cidadão do século XX, mas torna-se de importância capital para se entender a Idade Média”.
    Dito isto, vem a figura da mulher, que “tem sido mal entendida ou cercada de preconceitos, como se tivesse sido relegada para uma posição de desprezo. Eis alguns dados que desmentem tal concepção”:
    “Nos tempos feudais, a rainha era coroada como o rei, geralmente em Rheims ou, por vezes, em outras catedrais. A coroação da rainha era tão prestigiada quanto à do Rei. A última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis em 1610, na cidade de Paris. Algumas rainhas medievais desempenharam amplas funções, dominando a sua época; tais foram Leonor de Aquitânia († 1204) e Branca de Castela († 1252); no caso de ausência, da doença ou da morte do rei, exerciam poder incontestado, tendo a sua chancelaria, as suas armas e o seu campo de atividade pessoal”.
    “Verdade é que a jovem era dada em casamento pelos pais, sem que tivesse livre escolha do seu futuro consorte. Todavia, observe-se que também o rapaz era assim tratado; por conseguinte, homens e mulheres eram sujeitos ao mesmo regime”.
    “A Igreja lutou contra essa imposição de casamentos; exigiu e exige que os nubentes deem livre consentimento à sua união matrimonial, e formulou impedimentos diversos que, opondo-se à grandeza e à santidade do casamento, o tornam nulo”.
    “Precisamente por causa da valorização prestada pela Igreja à mulher, várias figuras femininas desempenharam notável papel na Igreja medieval. Certas abadessas, por exemplo, eram autênticos senhores feudais, cujas funções eram respeitadas como as dos outros senhores; administravam vastos territórios como aldeias, paróquias; algumas usavam báculo, como o bispo… Seja mencionada, entre outras, a abadessa Heloisa, do mosteiro do Paráclito, em meados do século XII: recebia o dízimo de uma vinha, tinha direito a foros sobre feno ou trigo, explorava uma granja…”.
    “É surpreendente ainda notar que a enciclopédia mais conhecida no século XII se deve a uma mulher, ou seja, à abadessa Herrade de Landsberg. Tem o título “Hortus Deliciarum” (Jardim das Delícias) e fornece as informações mais seguras sobre as técnicas do seu tempo. Algo semelhante se encontra nas obras de S. Hildegardis de Bingen”.
    “Notemos ainda a figura de Joana d’Arc (1412-1431): a audiência que conseguiu da parte do rei de França e dos seus cortesãos para desempenhar as suas façanhas heróicas é realmente algo de extraordinário”.
    Neste contexto é que Gertrudes entrou para o Mosteiro de Helfta, que tem uma história interessante e até hoje muito debatida, embora todo debate se resuma na seguinte constatação: era uma comunidade autônoma, sob a jurisdição do Bispo de Halberstadt e as religiosas se consideravam, ao mesmo tempo, incrivelmente beneditinas e cistercienses, ou, ainda, de direito, beneditinas por suas origens sob a Regra de São Bento apenas, mas, de fato, cistercienses, por sua vida cotidiana à luz da espiritualidade de Cister. (Vida e exercícios espirituais, p. 13).
    Essa questão canônica não foi empecilho para que Gertrudes crescesse em sabedoria e graça diante de Deus e dos homens (estes “farejam” os santos e santas, mesmo sem propaganda), de modo a ser considerada “Gertrudes, a Grande”, em seu tempo, na Alemanha, como bem disse o Papa Bento XVI, na Audiência Geral de 6 de outubro de 2010, ao se referir à nossa monja mística.
    A atmosfera de espiritualidade do Mosteiro de Helfta, na segunda metade do século XIII, proporcionou o surgimento de monjas virtuosas e cultas, que, além da busca de santidade pela oração e o compromisso de vida, também se notabilizaram como escritoras, como é o caso de Santa Gertrudes, considerada inclusive teóloga.
    Levando em consideração todos os empecilhos para a educação feminina na época, e o fato de que Gertrudes foi admitida em Helfta ainda criança, e ali passou toda a sua vida sem jamais ter frequentado uma universidade, é de se destacar o conhecimento das Sagradas Escrituras e da Teologia que adquiriu, fruto dos dotes intelectuais com os quais Deus a agraciou, de seu empenho pessoal em fazer multiplicar os talentos, mas, sobretudo, da ação do Espírito Santo. Não fosse assim, suas reflexões não teriam dado origem a uma escola de espiritualidade, que agregou um verdadeiro discipulado em torno de seus livros, várias vezes reeditados.

    Para concluir, quero voltar ao tema da postulação do Doutorado de Santa Gertrudes. São Doutores da Igreja aqueles homens e aquelas mulheres que se destacam ou se tornam ilustres pela santidade, pela ortodoxia (fé reta) e, sobretudo, pelo grande saber teológico, devidamente comprovado na análise dos seus escritos por quem de direito na Igreja, ou seja, pela Congregação para as Causas dos Santos.
    Até o século XVI, a Igreja só atribuía o título de Doutor a um santo antigo, via de regra, um Padre da Igreja, mas o Papa São Pio V, dominicano, mudou isso e elevou, em 11 de março de 1567, São Tomás de Aquino, também dominicano, portanto muito conhecido e estudado pelo Papa, a Doutor da Igreja, abrindo as portas para que outros santos mais recentes, ou seja, não só de grande antiguidade, se tornassem Doutores. E mais recentemente, ainda, a partir de 1970, vieram as doutoras da Igreja por meio de Santa Catarina de Siena e Santa Teresa de Jesus, a primeira terciária dominicana e a segunda monja carmelita.
    Ora, Santa Gertrudes, como se poderá ver ao longo deste rico e oportuno colóquio, é autora de obras de imensa riqueza teológico-espiritual: é uma pena que seus comentários aos textos bíblicos tenham se perdido e, talvez, nunca mais sejam encontrados. Estão publicados, porém, inclusive em português, por duas boas Editoras (Subiaco, de Juiz de Fora – MG, e Artpress, de São Paulo – SP) grande parte do que temos da Santa. São “O Arauto do Divino Amor” ou as “Revelações de Santa Gertrudes”, em cinco livros, sendo o volume II de sua própria pena, ao passo que os outros foram redigidos por pessoas próximas a partir de suas falas ou rascunhos, bem como seus “Exercícios Espirituais”, que vão desde a graça do Batismo até a reflexão sobre a morte. Constituem, como dito, rico manancial de pesquisas e reflexões para o dia a dia.
    O ensinamento de Gertrudes no campo da mística foi marcante (contemporânea de outras duas grandes místicas que viveram no mesmo mosteiro, Gertrudes de Hackeborn, Abadessa na comunidade, e Mectildes, sua mestra no noviciado), como precursora da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, experiência unitiva com o Senhor, que ela viveu de forma toda própria, bebendo desta fonte de graças, sobretudo na vivência de uma espiritualidade alimentada pela liturgia.
    Considero Santa Gertrudes um luminoso exemplo para o nosso tempo. Aqui mesmo na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro temos uma nova comunidade (“Comunidade Coração Novo”) que se inspira na sua espiritualidade. Apresentada nos idos de 2002 ao fundador da comunidade, o Sr. Isaias, animador desse Simpósio. Outras novas comunidades também bebem dessa espiritualidade, como a Aliança de Misericórdia. Uma Santa que parece de tão longe no espaço e no tempo, no entanto, é atualíssima e inspira as novas formas de vida de consagração.
    Para as mulheres, ela testemunha que, embora vivendo em um mosteiro segundo a situação de sua época, seu gênio se expandiu em diversas formas de conhecimento, inclusive profano, como latim, filosofia e cultura clássica, conservando a marca própria de sua feminilidade.
    Ela nos ensina um princípio que a Igreja sempre defendeu e que nos dias de hoje precisa ser cada vez mais anunciado, isto é, que “a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”, conforme definiu São João Paulo II.
    Desejo que estes dias de estudo e convivência fraterna permitam não apenas um melhor conhecimento sobre Santa Gertrudes, mas que o exemplo de sua vida promova também a semeadura de novas e mais profundas atitudes de conversão, das quais todos nós necessitamos a cada passo do caminho.
    Portanto, só tenho a louvar este Colóquio e desejar todo sucesso e bênçãos de Deus a cada participante nesta Casa de São Bento, aos pés do Cristo Redentor, com a intercessão da Virgem Maria, invocada entre nós sob o título de Nossa Senhora Aparecida, a Rainha e Padroeira do Brasil. Obrigado!

    Referências

    BENTO XVI. Santa Gertrudes de Helfta.
    https://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20101006.html, acessado em 02/10/16.

    BETTENCOURT, Dom Estêvão, OSB. Idade Média: sim ou não? Pergunte e Responderemos n. 454, março de 2000, p. 109-124.

    BETTENCOURT, Dom Estêvão, OSB. Os doutores da Igreja. Pergunte e responderemos n. 429, fevereiro de 2008, p. 87-91.

    GERTRUDES DE HELFTA. Vida e exercícios espirituais. 2ª ed. Juiz de Fora: Subiaco, 2013.

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