Sentir com a Igreja – São Bernardo de Claraval

             Dia 20 de agosto, celebramos São Bernardo de Claraval (1090-1153), importante monge cisterciense do século XII e chamado de Doutor Melífluo. Trata-se de um homem atual a muitos títulos. Faço um recorte dessa sua atualidade em dois desses aspectos apenas: sua vida contemplativa cisterciense e seus escritos que inauguram a escola de espiritualidade cisterciense.

             Ele nasceu, no ano de 1090, no castelo de Fontaine-les-Dijon, França, numa família que, além dele, tinha outros seis filhos: uma menina e cinco meninos. Embora um tanto tímido, era piedoso e estudioso, por isso, foi levado pelos pais até os afamados cônegos de São Vorle, em Châtillon. Com esses sacerdotes, aprendeu a ler e a escrever em latim, aprofundou-se na Sagrada Escritura e em autores clássicos tais como Virgílio, Cícero e Horácio. Já adolescente – após perder sua mãe – retorna à casa paterna com uma dúvida comum a essa idade e ao seu contexto sociocultural: Que rumo seguir? Tornar-se cavaleiro e namorador como vários de seus amigos ou entregar-se totalmente a Deus na vida religiosa?

             É Pierre Riché, professor emérito da Universidade de Paris, medievalista, cuja carreira foi iniciada com uma tese sobre São Bernardo, em 1947, quem registra essa fase da vida do nosso monge: “Quando, aos 16 anos, retorna ao castelo da família, Bernardo é um rapagão robusto e espigado, perfeitamente talhado para exercer o ofício de cavaleiro. Reencontra seus amigos cobertos com longos mantos, facão em punho, prontos para partir para a caça ou envergando a couraça guerreira. Acontece, porém, que Bernardo se sente chamado para outra existência. Sua mãe acaba de morrer. Pois bem, dela recebeu ele o gosto pelo estudo e pela meditação. Durante certo tempo, hesita, sentindo-se sujeito a algumas tentações, pois as jovens buscam a companhia do garboso adolescente” (Vida de São Bernardo. São Paulo: Loyola, 1981, p. 12). Depois de uma experiência de vida em comum com alguns familiares e amigos, Bernardo ingressa no mosteiro de Cister, na França, recém-fundado por três santos monges vindos de Molesmes: São Roberto, Santo Alberico e Santo Estêvão Harding.

             O que teria desviado o nobre Bernardo da vida de sacerdote diocesano ou do monaquismo beneditino de Cluny e o atraído para o, então, chamado “novo mosteiro” da nascente Ordem Cisterciense? – Parece-nos que Dom Luís Alberto Ruas Santos, O. Cist., tem uma resposta precisa: a solidão orante temperada pela comunidade fraterna e a grande pobreza. Sim, “os mosteiros da Ordem Cisterciense ofereciam um alto grau de solidão, seja pelo afastamento da sociedade e da trama de seus relacionamentos, seja pela estrita disciplina de silêncio que neles vigorava, com longas horas dedicadas à lectio – leitura orante e meditada da Palavra de Deus – e à oração privada, e ao mesmo tempo o consolo de uma comunidade fraterna. Por outras palavras, havia na vida cisterciense uma boa dose de eremitismo dentro de um quadro de comunhão fraterna própria ao cenobitismo e ao ideal de vida apostólica. Enfim, os cistercienses quiseram ser pauperes Christi, pobres de Cristo, ou seja, pobres com o Cristo pobre e, com isso, encontraram a terceira tendência do monaquismo reformado do século XI” (São Bernardo de Claraval: vida e obra do último dos Padres da Igreja. Campinas: Ecclesiae, 2021, p. 44). Aqui, está o primeiro aspecto da vida de Bernardo e que lhe oferecerá o norte: a contemplação despojada ou a busca de Deus sem entraves.

             O monge santo dá grande vigor à nova Ordem Cisterciense e, mais do que fundar o célebre mosteiro de Claraval (“Vale Claro”) para onde fora enviado, inaugura uma profunda e marcante escola de espiritualidade, a cisterciense, ainda que destacados autores a insiram entre os beneditinos dada a base comum que é a Regra de São Bento ou a santa Regra. Como quer que seja, os cistercienses tem os pontos que diferem do tronco comum beneditino, de modo que Dom Bernardo Olivera, OCSO, antigo abade geral da Ordem Cisterciense da Estrita Observância ou Trapista, escreve que “existe uma ‘espiritualidade cisterciense’ (fé levada à vida com uma forma determinada), distinguível das outras espiritualidades, inclusive monástica. Alguns dos elementos dessa espiritualidade seriam: a importância da experiência pessoal e comunitária, a afetividade, a Regra de São Bento sem acréscimos, a caridade cenobita e contemplativa, a unanimidade, a amizade, a santa Humanidade de Jesus Cristo, a devoção mariana… Não faltam os que opinam que não se pode falar de uma espiritualidade propriamente cisterciense (J. Lecrercq). Mas, existe sim, graças aos cistercienses, e sobretudo a São Bernardo de Claraval, uma ‘teologia da espiritualidade ou da mística’” (Introducción a los Padres e Madres cistercienses de los siglos XII e XIII. Burgos: Fonte/Monte Carmelo, 2020, p. 45). Daí a pergunta: a quantas pessoas, dentro e fora dos mosteiros, essa profunda espiritualidade já ajudou e ajudará ao longo da história?

             Célebre entre seus escritos é o Comentário ao Cântico dos Cânticos que nosso santo escreveu, fruto de suas meditações aos monges. Pierre Riché, o famoso medievalista já citado, é quem destaca: “Bernardo explica versículo por versículo nos sentidos alegórico e místico. Com admirável domínio, com uma arte raramente alcançada, Bernardo dedica os nove primeiros sermões ao beijo, sem jamais perturbar-se, nem perturbar seus ouvintes. Quando é levado a falar da sexualidade, ele age com calma e sem complexos, pois vive sóbria e castamente, graças à leitura e à oração. Ele passa sem dificuldade do canto nupcial ao da união mística. Conduz seus monges do jardim à adega, da adega ao quarto. O jardim é o da criação, da reconciliação vinda do Salvador, da colheita, do fim do mundo. As adegas guardam os aromas, os unguentos e o vinho, isto é, as três regras de vida segundo a disciplina, a natureza e a graça. Tudo isso requer um longo encaminhamento. O beijo da alma e do Verbo de Deus mal acaba de se realizar, eis que corre o risco de findar bruscamente. Bernardo confidencia aos seus monges que seu diálogo com Cristo é muitas vezes difícil. Desde o começo em que o Verbo se retirou, tudo isso começa imediatamente a enlanguescer no torpor e arrefece” (Vida de São Bernardo, p. 63).

             Cumpre-nos lembrar que São Bernardo foi declarado Doutor da Igreja, o Doutor Melífluo, em 1830, pelo Papa Pio VIII, e o Papa Bento XVI, hoje emérito, o qualificou como o último dos Padres da Igreja. Disso se segue uma questão: Quem são esses Padres da Igreja? – “Padres da Igreja são escritores (não necessariamente presbíteros ou bispos) que, nos primeiros séculos, contribuíram para a exata elaboração e a precisa formulação das verdades da fé em tempos de debates teológicos com escolas heréticas” (Dom Estêvão T. Bettencourt, OSB. História da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2012, p. 16).

    Se os Padres da Igreja são dos primeiros séculos – até o VIII, no Oriente, com São João Damasceno –, como e por que São Bernardo, no século XII, pode ser Padre da Igreja? – O Papa Bento XVI, em sua Audiência Geral de 21/10/2009, nos responde o seguinte: o santo cisterciense foi “chamado ‘o último dos Padres’ da Igreja, porque no século XII, mais uma vez, renovou e tornou presente a grande teologia dos Padres”. Nesta mesma Catequese, o Papa assegurava que “as reflexões, características de um apaixonado por Jesus e Maria como São Bernardo, provocam ainda hoje de modo saudável não só os teólogos, mas todos os crentes. Por vezes, pretende-se resolver as questões fundamentais sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo unicamente com as forças da razão. São Bernardo, ao contrário, solidamente fundamentado na Bíblia e nos Padres da Igreja, recorda-nos que sem uma fé profunda em Deus, alimentada pela oração e pela contemplação, por uma relação íntima com o Senhor, as nossas reflexões sobre os mistérios divinos correm o risco de se tornarem uma vã prática intelectual, e perdem a sua credibilidade. A teologia remete para a ‘ciência dos santos’, para a sua intuição dos mistérios do Deus vivo, para a sua sabedoria, dom do Espírito Santo, que se tornam ponto de referência do pensamento teológico. Juntamente com Bernardo de Claraval, também nós devemos reconhecer que o homem procura melhor e encontra mais facilmente Deus ‘com a oração do que com o debate’. No final, a figura mais verdadeira do teólogo e de cada evangelizador permanece a do Apóstolo João, que apoiou a sua cabeça no coração do Mestre”.

    Voltemo-nos, pois, com São Bernardo de Claraval, para Deus e, com os olhos fixos em Cristo (cf. Hb 12,2), sirvamos aos irmãos e irmãs que cotidianamente recorrem a nós em busca de consolo nas suas não poucas nem pequenas angústias existenciais.

    São Bernardo de Claraval, rogai por nós!

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