Santos mártires de Cunhaú e Uruaçú

    No próximo dia 20 de abril, às 10 horas locais, o Papa Francisco presidirá, na Sala do Consistório do Palácio Apostólico, no Vaticano, a celebração da Hora Média e o Consistório Ordinário Público para a Canonização dos Bem-aventurados André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro, sacerdotes diocesanos; Mateus Moreira, leigo, e 27 companheiros, mártires, entre outros. Ele já tinha anunciado no dia 23 de março último, quinta-feira, essa possibilidade de canonização dos “mártires de Cunhaú e Uruaçú”.
    Estes nossos antepassados preferiram morrer, em condições brutais, a trair a sua fé católica. Deixaram-nos, assim, um grande legado espiritual e histórico que nos chama à alegria por termos tão grandes testemunhas, mas também à responsabilidade, a fim de não trairmos essa nobre linhagem da qual devemos ser – com a graça de Deus que a ninguém falta – fiéis continuadores em pleno século XXI.
    Beatificar é celebrar – em Roma ou, de preferência na Diocese que promoveu o novo Beato –, um ato solene no qual o Papa, pessoalmente ou através de um legado seu, via de regra o Cardeal Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, torna público que o Servo de Deus pode ser venerado como Bem-Aventurado ou Beato por meio de uma festa em lugares delimitados como, por exemplo, as cidades em que viveu, atuou, morreu ou nas casas de sua Congregação Religiosa.
    Canonizar é a ação pela qual o Papa – e só ele – declara que o Bem-Aventurado é Santo ao inscrevê-lo no cânon (catálogo) dos santos; por isso se fala em canonização, termo utilizado pela primeira vez no século XII, em uma carta de Udalrico, Bispo de Constança, ao Papa Calixto II (1119-1124).
    A palavra mártir vem do grego mártys, mártyros e significa testemunha. Daí ter sido reservada, já na linguagem dos primeiros cristãos, para designar especificamente os homens e mulheres que deram testemunho (martyrion) de sua fé no Senhor Jesus por meio do derramamento do próprio sangue.
    No Apocalipse 6,9, vemos a descrição do conceito de mártir nestes termos: “Vi sob o altar as vidas dos que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela tinham prestado”. Ver também Ap 1,13; 17,16 e At 22,20.
    O professor Antônio Carlos Santini, em recensão de importante artigo da revista La Civiltá Catolica (15/07/00), afirma que para existir o verdadeiro martírio na Igreja, “além da passagem pela morte, o motivo deve ser o ódio à fé cristã ou às verdades e virtudes do cristianismo. Mais: a morte deve ser sofrida como testemunho de fé com um ato exterior de aceitação livre e consciente, recusando toda oportunidade oferecida para evitá-la, abandonando a fé. E a mesma morte deveria ser aceita em espírito de fé e de amor a Jesus Cristo”.
    “Para Santo Agostinho, ‘martyres non facit poena, sed causa’. O que conta é a motivação da morte, não o sofrimento em si mesmo… A essência do martírio está no motivo pelo qual ocorreu a morte do fiel”.
    “Como se tudo isso fosse ainda pouco, espera-se do mártir a disposição de perdoar os agressores e a capacidade de amar ao extremo. ‘Sine charitate non valet’ (S. Tomás. Suma Theol. II-II, q. 124, a2. ad 2). O martírio não tem valor sem a caridade. Sem o amor extremado de Estêvão que perdoa seus lapidadores, a exemplo de Cristo no Calvário”. (Atualização, n. 290, março/abril de 2000, p. 143)
    Sobre os nossos mártires do Rio Grande do Norte, eis abaixo um breve resumo da história deles na revista Pergunte e Responderemos n. 451, dezembro de 1999, p. 530-534.
    Os holandeses invadiram o Nordeste do Brasil e dominaram a região desde o Ceará até Sergipe, de 1630 a 1654. Eram protestantes calvinistas e vieram com seus líderes religiosos para doutrinar os índios. Isso gerou uma situação difícil para os católicos da região, porque foi proibida a celebração da Santa Missa. Em Cunhaú (RN) um ministro protestante prometeu poupar a vida a todos, caso negassem a fé católica, o que a população não aceitou. Então, no domingo, 16 de julho de 1645, festa de Nossa Senhora do Carmo, na capela da Vila de Cunhaú concentravam-se aproximadamente setenta pessoas para participar da Santa Missa.
    Padre André de Soveral, com seus 90 anos de idade, iniciou a Eucaristia, mas os soldados holandeses, armados de baionetas, chefiando um grupo de índios canibais, invadiram a capela em grande algazarra, logo após a consagração do pão e do vinho. Fecharam-se as portas da capela e começaram a – covardemente – massacrar os fiéis, impossibilitados de fugir. O sacerdote foi morto a golpes de sabre. O chefe da carnificina foi Jacob Rabbi, um alemão a serviço dos holandeses.
    Terminado o massacre, os executores se retiraram, deixando os cadáveres estendidos no chão da capela. Um relato da época diz que os índios canibais devoraram as carnes das vítimas. No entanto, depois do triste episódio, pouco se falava sobre o fato devido ao medo que imperava no povo do lugar, que desejava manter – como, de fato, manteve – a sua fé, mas temia pela própria vida e a de seus familiares. Afinal, os invasores já haviam demonstrado do que eram capazes para com quem não renunciasse à fé Católica Apostólica Romana.
    Uma versão difundida há muito tempo narra o seguinte: um grupo, mais numeroso, cerca de setenta pessoas, sem contar os escravos e as crianças, foi para um local às margens do Rio Grande (Rio Uruaçú), onde construíram um abrigo fortificado e tomaram o nome de Comunidade Potengi. Essa comunidade foi atacada por índios armados, comandados por Jacob Rabbi, por um famoso chefe indígena e por soldados holandeses. Mataram todos os habitantes da fortaleza, inclusive padre Ambrósio Ferro e muitas pessoas de Natal (RN).
    Relatam ainda os cronistas que a uns cortaram os braços e as pernas, a outros degolaram, a outros arrancaram as orelhas ou a língua antes de os matarem. Alguns cadáveres foram esquartejados: a Mateus Moreira arrancaram o coração pelas costas, mas, antes de morrer, ele ainda pôde gritar em alta voz: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”! Corpos ficaram expostos ao léu por 15 dias, tempo em que os holandeses autorizaram o sepultamento.
    Esta é a versão dos fatos como se encontra no livro “O Valoroso Lucideno” de autoria de Frei Manuel Calado, publicado em Lisboa, já no ano de 1648. Frei Manuel escreveu na mesma época em que tudo ocorreu. Existe outra versão do episódio, idêntica à anterior e com mais detalhes, que encontra-se no livro “Os Holandeses no Brasil”, de monsenhor Paulo Herôncio.
    Que os “mártires de Cunhaú e Uruaçú”, como ficaram conhecidos, intercedam a Deus por nós a fim de que, em toda e qualquer circunstância da vida, nos lembremos de nossa nobre missão: ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-14).
    Com a canonização dos mártires do Rio Grande do Norte, a Igreja os coloca como testemunhas atuais e importantes da vivência católica, e nos impele ainda mais a termos coragem, nestes tempos difíceis, de viver com generosidade e alegria nossa vida cristã e católica. Se os tempos de hoje são difíceis, muito foram também os tempos dos nossos mártires. Que eles intercedam por nós, brasileiros, chamados a viver a nossa identidade com generosidade e coerência.

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