Radcliffe: na escuridão da guerra e abusos, a Igreja tece redes de amizade e interculturalidade

As meditações do padre dominicano no segundo dia do retiro espiritual para os participantes da Assembleia Geral do Sínodo: distante de suspeitas e elitismos, a Igreja se tornará uma comunidade confiável apenas se corrermos o risco, como o Senhor, de confiar uns nos outros, mesmo que estejamos feridos.

Isabella Piro – Cidade do Vaticano

De um lado, a escuridão de um mundo “lacerado e dividido”. Do outro, a luz do Senhor. Foi sobre essa dicotomia que o padre dominicano Timothy Radcliffe refletiu na manhã de 1º de outubro. Assim como em 2023, o religioso participa da Segunda Sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos como assistente espiritual. Ele proferiu duas meditações hoje, segundo dia do retiro espiritual para os participantes da Assembleia.

Reconhecer o Senhor no “estrangeiro na praia”

Em sua primeira intervenção, intitulada “Pesca da ressurreição” e inspirada no Evangelho de João (21, 1-14), o padre Radcliffe destacou as dificuldades causadas pela “escuridão da guerra” e pela “crise dos abusos”. Em um contexto “pós-ocidental”, explicou — no qual o hemisfério ocidental do planeta, embora “decadente”, ainda controla “o sistema bancário”, com o colonialismo e o imperialismo ao fundo, buscando “impor seus valores aos outros” — o “estrangeiro na praia” não é reconhecido como o Senhor, mas acaba “crucificado pelos poderes imperiais do nosso tempo”.

A interculturalidade para “criar redes”

Qual é, então, o desafio da Igreja e do Sínodo diante de tudo isso? A resposta do padre Radcliffe destacou a importância da “interculturalidade”, ou seja, de “criar redes”, deixando espaço entre uma cultura e outra, para que não se devorem “como está acontecendo com a globalização do consumismo”. “Devemos respeitar as diferenças culturais”, reiterou o padre dominicano. “A rede está intacta porque cada cultura está aberta, à sua maneira, à verdade”.

Os trabalhos sinodais não são negociações ou compromissos

Essa atitude também se reflete nos trabalhos sinodais: eles não são “uma perda de tempo e dinheiro”, como alguns temem, e não têm o objetivo de “negociar compromissos ou derrotar adversários”, mas — como destacou bem o padre Radcliffe — têm o objetivo de nos fazer entender uns aos outros “o significado da palavra ‘amor’”, pois todos somos “discípulos amados” do Senhor. “Antes de tudo”, concluiu o religioso, “reconhecemos que precisamos uns dos outros se quisermos ser católicos”, porque “para sermos completos, todos precisamos dos outros”. Só assim será possível criar uma “rede” mantida pela amizade e pela alegria compartilhada, uma “rede” que gera esperança.

Confiar uns nos outros, apesar dos fracassos

Na segunda meditação — intitulada “Ressurreição – Café da manhã” e inspirada no versículo do Evangelho de João 21, 15-25 — o dominicano aprofundou o tema da confiança. Partindo da figura de Pedro, a quem Jesus “confiou o rebanho” apesar de ele tê-lo negado três vezes, mostrando-se “não confiável”, o padre Radcliffe extraiu “uma lição de máxima importância” para o Sínodo, ou seja, “confiar uns nos outros, apesar de alguns fracassos”. Como exemplo, o religioso citou a crise dos abusos e as queixas de bispos em relação à Declaração “Fiducia supplicans” do Dicastério para a Doutrina da Fé, sobre o sentido pastoral das bênçãos. “Mas a Igreja”, continuou ele, “se tornará uma comunidade confiável apenas se corrermos o risco, como o Senhor, de confiar uns nos outros, mesmo que estejamos feridos”. “Tudo se baseia na confiança em Deus, que confia em nós”, reiterou ele. “Confiamos que, com a graça de Deus, este Sínodo dará frutos, mesmo que não possamos antecipar o que será e que talvez não seja o que desejamos”.

Um momento do Sínodo
Um momento do Sínodo

Ser verdadeiros pastores do rebanho do Senhor

Uma crise de confiança também é sentida em nível global, ressaltou o religioso: entre políticos de diferentes partidos e entre eles e a cidadania; entre jovens, que começam a não acreditar mais na democracia; e no mundo da comunicação, em que fake news e a manipulação dos meios “nos impedem de confiar na verdade”. No entanto, é justamente neste cenário tão complexo que todos os batizados são chamados a ser “pastores”: pais, professores, líderes leigos têm a responsabilidade de guiar cada um “os pequenos rebanhos” da família, da escola, da vizinhança.

Evitar suspeitas, resistências e elitismo clerical

“Todos nós”, sublinhou Radcliffe, “temos a extraordinária responsabilidade de cuidar das ovelhas do Senhor”, especialmente os pastores ordenados, que têm o dever de conduzir o rebanho “para fora do estreito e introvertido redil eclesiástico em direção aos vastos espaços do mundo”. Fundamental permanece o princípio do sacerdócio entendido como “ministério da amizade divina”, ou seja, amizade com Deus, com os leigos, com os marginalizados, com os confrades — explicou o padre Radcliffe. Um sacerdócio capaz de se manter longe de suspeitas e resistências em relação ao caminho sinodal, livre de “elitismo clerical”, que é “falta de humildade e negação da identidade sacerdotal”.

Não ao pecado da hipocrisia

É por isso, acrescentou ele, que um sacerdote não pode e não deve pecar de hipocrisia: porque “a falta de transparência corrompe o próprio coração da identidade sacerdotal” e “o povo de Deus está pronto para perdoar tudo, menos a hipocrisia”. Daí o convite final do dominicano à Assembleia para que todos, com a autoridade do “pecador arrependido” como Pedro, possam “discernir a autoridade do outro e submeter-se a ela”.

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