O Tempo em Espiral – Cartas do Padre Jesus Priante

Iniciamos este domingo o Novo Ano Litúrgico do Tempo da Salvação que, como se nos revela Hb.10,10 , “já está realizada de uma vez por todas”, mas, na sua dimensão temporal, torna-se contínua, em constante espera.

“Já estamos salvos, mas ainda não”.

A Liturgia realiza e celebra essa contradição histórica, que São Paulo soube traduzir dizendo:

“Somos salvos na esperança” (Rm. 8). A pessoa de Cristo, “nossa feliz Esperança”, é essa ponte inabalável que nos permite cruzar o rio do pecado, da dor e da morte, de maneira segura e certa, para entrarmos no Reino de Deus. Sem essa divina Esperança seríamos prisioneiros do vazio. “Dum spiro, spero”, enquanto respiro, espero, diziam os primeiros cristãos.

Viver é esperar. Poderíamos esperar algo, mesmo que fosse o Céu, mas essa esperança não nos faria felizes. Seríamos mais budistas do que cristãos, sonhadores de um Nirvana, que nos dilui no nada. Também, não tendo categorias mentais para representar o Céu, por ser eterno e infinito, nossa esperança seria lotérica ou mera utopia ilusória ao carecer de referência histórica. O tempo da espera e a Salvação Eterna só podem convergir no “concreto universal” que é Jesus de Nazaré. Ele é o fundamento de nossa verdadeira Esperança, pela qual não esperamos algo mas Alguém, capaz de divinizar-nos. Nele e com Ele veio e continua a vir o Reino dos Céus, um futuro glorioso e feliz que não podemos imaginar, mas que superará todas as nossas expectativas.

O Advento, com o qual inauguramos o novo ano da Salvação, é definido pelo Concílio Vaticano II como “tempo de devota e alegre Esperança”, e não um tempo penitencial, como ainda o representamos através da cor roxa usada na sua celebração litúrgica, nem tempo de “preparação” para o Natal, como costumamos dizer. Em realidade, o Advento, que entrou penosamente no calendário litúrgico, depois do século IV, teria seu verdadeiro sentido antes da Páscoa, no lugar da Quaresma, que também teve seu sentido desvirtuado, pois esta era dedicada a preparar os catecúmenos para seu batismo na noite da Vigília da Páscoa, “noite das noites” na qual condensa-se toda esperança humana.

O Oitavo Dia

Noite, “mais luminosa que o dia”, na qual esperamos a Vinda gloriosa de Cristo. Ele sempre vem na véspera do dia glorioso da nossa Ressurreição, chamado “oitavo dia”, inexistente no calendário do tempo, porque pertence à Eternidade. Cristo virá nas 365 vésperas que antecedem à Páscoa. Por isso, diz São Paulo que tanto os que já morreram como os que estiverem presentes nesta Vigília Pascal, na qual esperamos a Cristo, não terão qualquer vantagem, pois todos participaremos da Ressurreição no mesmo “oitavo dia” no qual se faz instante eterno, passado, presente e futuro. No dia de nossa morte, entraremos nesse “oitavo dia” esperado na Vigília Pascal. Temos de viver em crescente e contínua esperança, não de algo mas de Alguém, Cristo nosso único Salvador, que veio, vem e está vindo.

O Tempo da Salvação, celebrado na Liturgia, que culmina na Vigília da Páscoa, não é o tempo devorador do deus Cronos da mitologia grega, que tão logo lhe nasciam os filhos os devorava. Desse tempo todos tentamos fugir, escondendo-nos atrás de maquiagens e plásticas ou, ironicamente, falando dos “anos dourados” da velhice. O certo é que o tempo que conta nossos anos aqui na terra leva-nos fatalmente à morte. “Somos velhos demais”, disse Heidegger, “desde o dia em que nascemos”. Precisamos de um outro Tempo, de vida e eterna juventude, que chamamos Tempo da Salvação.

O Primeiro Domingo do Advento

Essa é a razão pela qual iniciamos, um mês antes de finalizar o ano do tempo ordinário, que encurva nosso corpo, o Ano Novo, no primeiro domingo do Advento, termo latino que significa vinda e chegada, expectativa e presença.

De fato, aquele a quem esperamos já veio, está “no meio de nós” e vem vindo. O esperamos de ” Páscoa em Páscoa” como nos diz São Paulo. Por isso, até o século IV, toda celebração litúrgica era Pascal, celebrada aos domingos, como prolongação da Vigília Pascal. Inclusive até o dia de hoje, na Espanha, o povo costuma chamar ao Natal , “Páscoa de Natal”. Existe o perigo
de celebrarmos o tempo de nossa salvação de maneira circular, repetindo os mesmos ritos, textos, costumes e culto; mais um ano do mesmo. Também não seria Pascal e salvífico, se o representássemos de maneira linear, como continuidade orientada a uma meta, insegura e certa. Sua melhor representação é contemplá-lo em espiral, “De Páscoa em Páscoa” em permanente e progressiva passagem da morte à Vida. Cada ano subimos um anel dessa “espiral”, podendo dizer com Sao Paulo: “Nossa Salvação está hoje mais perto do que do dia em que começamos” (Rm,13,11) e faz referência à noite da Vigília Pascal: “A noite vai avançada e se aproxima o dia”. A Eucaristia é a promulgação da Páscoa que nos aproxima do dia glorioso de nossa Salvação. Ela é a condescendência mais profunda de Deus e a condensação da história da Salvação, a ser celebrada, como Jesus nos ordenou: “até que eu venha” (Lc.22).

O Advento, como início do Ano Novo do tempo da Salvação, tem sentido na medida em que fazemos dele um tempo de esperança e desejo de celebrar nossa Páscoa, o dia em que passamos da morte à vida, deste mundo, sujeito à caducidade, para o Reino Eterno de Deus. O povo de Israel, na noite, como nós, em que celebra sua Páscoa, tornando presente sua libertação do Egito, finaliza seus ritos (O Seder) dizendo: “Hoje escravos, amanhã livres” . Nós também temos de concluir nossa celebração na Vigília Pascal, prolongada em cada domingo, hoje escravos, ainda sujeitos ao pecado, dor e morte, amanhã livres no Reino dos Céus. Nenhuma filosofia seria mais sábia e otimista para viver nosso dia a dia, em constante
feliz esperança.

“EIS QUE VIRÃO DIAS EM QUE CUMPRIREI AS PROMESSAS DA MINHA SALVAÇÃO… FAREI NASCER UM REBENTO DE DAVI, QUE SERÁ CHAMADO “JAVE-NOSSA-JUSTIÇA”. (Jer. 33,14-16)

O profeta Jeremias anuncia a salvação do seu povo no meio do seu penoso exílio na Babilônia. A Bíblia, afirma o exímio exegeta alemão von Rad, “é uma narrativa de crescente esperança.”

Nos primórdios, Deus prometeu à humanidade, representada nas figuras bíblicas de Adão e Eva, vítimas do pecado e da morte, sua Salvação. Da descendência de Eva nasceria um filho, que o profeta Daniel chamou “Filho do Homem”, com o poder de nos Salvar. Essa mesma imagem salvífica do Gênesis 3 é recolhida em Ap.12. E Jesus apropriou-se dela. Descendente de Eva, da humanidade, entra na corrente sanguínea do ser humano através do rei Davi, para se tornar ” Filho do Homem” no seio materno de Maria de Nazaré por obra do Espírito Santo. Por isso, o que dela nasceu, é ao mesmo tempo homem e Deus. O eterno se faz “carne”, História de Salvação. O profeta Jeremias, seis séculos antes, anunciou este acontecimento. O rebento de Davi, será chamado “Javé-nossa-Justiça”, isto é, Deus-nossa-Salvação”. Em Ap.22,16,Jesus ratifica esta profecia: “Eu sou o rebento de Davi, a estrela brilhante da manhã”(Ap.22,16). Infelizmente não é essa a tradução que fazemos do nosso Credo:

“Creio em Jesus Cristo, que virá julgar vivos e mortos”, criando em nós mais medo e pavor do que alegria pelo seu almejado e esperado Advento. Cristo é o “going” contínuo da Salvação através da nossa condição criatural ainda não transfigurada.

O momento da morte não pode ficar vazio. Cristo ressuscitado nos plenifica a vida. O que determina o fim de nossa existência não é o morrer, senão a Ressurreição de Cristo, que nos precede, acompanha e transcende. A Salvação é anterior à Criação no devir do tempo. Cristo não veio nem vem ao nosso planeta como visitante ou turista, mas como transfiguração de nós e do universo. Por isso, ele comparou seu Reino ao fermento que transforma a massa por dentro de maneira misteriosa e invisível.

“QUE O SENHOR VOS FAÇA CRESCER EM AMOR E SANTIDADE ENQUANTO ESPERAMOS A VINDA DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO”(1Ts. 3,12-13)

A carta de Sao Paulo à comunidade Tessalônica (atual Salónica grega) escrita no ano 51, é o primeiro livro do NT, assim como a 2Pe., escrita no início do seculo II, é o último. Ambas cartas tratam da expectativa da vinda gloriosa de Cristo. São Paulo a escreveu por ocasião da morte de um membro da comunidade para responder à dúvida que suscitou, pois aqueles cristãos, inclusive o proprio São Paulo, esperavam a vinda de Cristo, estando eles ainda vivos, dizendo que todos, os que já morreram e os que ainda estiverem vivos, participarão simultaneamente da mesma sorte. “Cristo virá e nos confirmará a todos em santidade diante de Deus”. De fato, em Cristo, princípio e fim, tudo se faz instante eterno. Para nós, que só podemos pensar dentro das coordenadas do espaço e do tempo, resulta incompreensível. Por isso vivemos o mistério de nossa Salvação de maneira incerta.

Nao sabemos o que se nos depara a cada momento e em cada lugar.

O tempo da Salvação, entretanto, transcende o espaço e o tempo; o passado e o futuro acontecem no instante eterno, comum a todos. Os que já morreram nos precederam apenas na morte, fato temporal, mas não o na Ressurreição, que por ser meta- histórica, carece de tempo e lugar. Nesse sentido, São Paulo não teria por que se corrigir, como faz na sua segunda carta à mesma comunidade de Tessalônica, a respeito da iminente vinda de Cristo. Ele está sempre à nossa porta, e devemos esperá-lo em todo momento, como Jesus nos ordenou, com a mesma atenção e vigilância permanente que temos em relação a inesperada vinda de um ladrão (Mt.25).Na carta de Pedro se nos exorta a esperar a vinda de Cristo, inclusive, apressando-a.

Após misteriosa conflagração cósmica , aparecerão Novos Céus e Nova Terra. Essa expectativa, sempre Salvífica, diz a carta de Pedro, nos purifica de nossos pecados. No tempo em que se escreve (séc.II), a Fé dos cristãos esmorecia, precisamente porque, adiando Cristo sua vinda, a Fé deles ficava vazia. Sem dimensão escatológica, afirma K. Barth , nossa Fé não é possível. De maneira que teríamos de inverter a definição que dela se faz em Hb.11,1: “A Fé é o fundamento de nossa esperança”. É a Esperança que fundamenta nossa Fé. De que nos adiantaria crer em Deus e na sua Salvação se de fato não a esperamos de maneira segura e certa? A Fé cresce na medida da nossa esperança. Moltmann a qualificou de “douta”, nossa única verdadeira sabedoria, contrariando o que diz a velha canção: “esperar não é saber” (“Pra não dizer que não falei das flores” – Geraldo Vandré). Péguy chama-a ” menina”, a crescer em nós, cuidada por suas duas irmãs maiores, amor e a Fé. O Papa Francisco costuma repetir: “não deixem morrer a esperança”. E essa esperança é o mesmo Jesus Cristo que, ainda que não nos trouxesse nada, sua presença seria o bastante,” pois quem a Deus tem, nada falta, só Deus basta”, dizia Santa Teresa de Ávila.

Certa vez, uma senhora da paróquia Santa Rosa dizia-me: Sinto tristeza toda vez que, retornando do trabalho, meu filhinho, ao chegar em casa, antes de olhar meu rosto, olha na minha bolsa esperando encontrar qualquer coisa. Este fato é mais do que anedótico. Nossa esperança
cristã esmorece porque esperamos mais as coisas que Deus nos possa dar neste mundo ou no Céu do que a Ele mesmo. É entre as “coisas” que morrem nossas vidas.

Não vamos ao Céu para termos coisas, mas para estar e viver com Deus.

Samuel Becker teria sido mais feliz se ao invés de titular sua novela “A Esperar de Godot”, que nunca vem, tivesse dito esperando por Cristo, que sempre vem.

“FICAI ACORDADOS, ORANDO EM TODO MOMENTO PARA TERDES FORÇAS DIANTE DO QUE DEVE ACONTECER, E FICAR DE PÉ DIANTE DO FILHO DO HOMEM” (Lc.21,25-36)

Com a mesma expectativa que celebramos os dois últimos domingos do ano, iniciamos o Novo Ano, Confirmando a tese de K. Barth, a Fé é essencialmente escatológica (refere-se ao fim). Ela pouco ou nada de real nos acrescenta enquanto vivemos neste mundo,sujeitos ao pecado, à dor e à morte, até a vinda gloriosa de Cristo.

No século II, um tal Diogneto, da cidade de Roma, querendo saber o que animava a Fé dos cristãos, lhe disseram: “o que nos faz diferentes daqueles que não são cristãos é nossa esperança de vida em Cristo”. Essa esperança anima e torna feliz nosso dia a dia, ainda que tenhamos de passar como vocês pelas tribulações deste mundo.

O final glorioso que esperamos em Cristo passa necessariamente pelo sofrimento, experimentado de tantas maneiras neste mundo. Para os que não creem e esperam em Cristo, é agônico , mas para os que cremos é parto feliz de novo nascimento. Jesus nos recomenda ficar acordados, orando em todo momento, pois esse final será apocalíptico para todos, pois o velho tem de desmoronar para dar lugar ao novo, seguindo a lógica da semente. A nível pessoal isso é evidente. Corpo, castelos construídos e sonhos acabarão em ruína total para passarmos à Vida Gloriosa e Eterna em Cristo. O mesmo acontecerá no mundo das galáxias e, particularmente, neste planeta que habitamos, escolhido por Deus na imensidão do universo para tornar presente a Vida e sua Salvação. “Haverá sinais no sol ,nas estrelas, e na terra as nações ficarão aterrorizadas pelo bramido do mar”. Estes e outros sinais apocalípticos, como fome, guerras, terremotos, epidemias e catástrofes, mencionados em outro lugar por Cristo, já aconteceram, estão acontecendo e acontecerão em grau extremo no fim dos tempos.

Faz 65 milhões de anos, em Yucatan (México) um asteroide de 11 quilômetros de diâmetro exterminou boa parte da vida na Terra. Durante uma década a poeira provocada pela queda desse asteróide escureceu o sol, tornando impossível a vida. Esse sinal anunciava já o fim dos tempos para dar lugar à nova Criação em Cristo. Hoje até a NASA admite a possibilidade de acontecer de novo e estuda a possibilidade de evitá-lo.

Mas é mais possível que uma guerra nuclear faça parte desse Apocalipse que precederá a nossa Salvação. Em Ap.8,8 tudo isso é previsto. São João viu, por revelação de Deus, uma montanha gigante e ardente no mar, que tornou um terço das águas vermelhas como sangue. Um terço dos entes vivos foram sepultados. “Quando virem estas coisas, levantai vossas cabeças, pois se aproxima a vossa Salvação, nos diz Jesus. Deus age sub-contrário. “Fere para curar” (Jó 5) e morremos para viver. “Ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu” , disse Jesus a Nicodemos, reportando-se ao episódio da escada de Jacó. Em sonho, ele viu que os anjos subiam e desciam por essa escada. Como é possível, perguntam-se os rabinos que os anjos subissem ao céu se já estavam nele ? O Sl.130 responde: “Do abismo clamo por Ti, Senhor”.

A mensagem apocalíptica é a leitura que nos permite ler realmente a História, de nós mesmos. A hecatombe prevista para o fim dos tempos, de cada pessoa e do universo, é sinal e anúncio da Salvação de Cristo. “Os caminhos do Senhor são todos de amor e verdade” (Sl 24). Isso nos leva a perguntar: por que então ainda esse final esperado se alonga? Santo Anselmo (séc. XI), comentando a parábola do Banquete, disse: “porque ainda não se completou o número dos convidados por Deus para participarem da Vida Eterna no seu Reino”.

Teilhard de Chardin diz: porque nosso desejo pela vinda de Cristo não é ainda suficiente. Quando a humanidade toda acumular em densa nuvem esse desejo, como a chuva, Jesus descerá à nossa terra para glorificar a Criação. É a mesma interpretação que os rabinos (mestres judeus) dão à respeito dos longos 400 anos que o povo de Israel permaneceu escravo no Egito, por que seu desejo de liberdade era pequeno.

Desejar mais e mais

O livro do Apocalipse encerra sua mensagem dizendo que o mesmo Espírito Santo junto a nos torce pela vinda gloriosa de Cristo: “Vem Senhor Jesus”. O poeta hindu, nobel de literatura, faz eco desse desejo e esperança dizendo: “Ele vem, vem sempre, em cada instante, em cada idade, todos os dias e todas as noites. De pena em pena minha são seus passos, e o murmúrio dourado dos seus pés faz brilhar minha alegria, porque Ele vem, vem sempre”. Esta grande e única esperança do mundo não nos isenta de fazer “our best” para torná-lo mais humano, mais de Cristo e mais de Deus, para,assim, podermos esperar mais facilmente sua vinda. Pois na dor, o desespero tomaria conta de nós. Eu tive essa experiência no meu contato com pessoas doentes, sofrendo grande dor. Algumas suplicavam-me pedir a Deus para lhes abreviar esse tempo, de dor e morte, e serem levadas ao Céu. Jesus também nos recomendou orar para abreviar esse tempo de dor e angústia apocalípticos, embora não seja de desgraça senão de feliz Salvação.

Nossa mais grandiosa missão Evangélica é nutrir em todos e em cada uma das pessoas a Esperança da Salvação em Cristo. De maneira que, como São João da Cruz (séc. XVI) diz: “Passemos por este mundo sem nos deter nas flores, nem temer as feras”.

Padre Jesus Priante
Espanha

(Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.)
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