CARTAS DO PADRE JESUS PRIANTE
As leituras deste domingo mostram-nos o grande problema existencial do sofrimento. Por que sofremos?
Em filosofia qualificamos esse problema de “limite”, isto é, a razão é incapaz de entender. É uma questão que carece de resposta humana, mas força-nos a pensar, buscando alguma justificação ou explicação. Poderíamos elencar, entre as múltiplas explicações dadas ao longo da História, as seguintes:
CASTIGO DE DEUS
por causa de nossos pecados… É a explicação de todas as religiões, que fazem depender a vida de Deus e responde ao nosso senso racional de justiça: dar a cada um o seu merecido.
PROVAÇÃO DE DEUS
Deus nos testa ou nos obriga a ganhar a Salvação através de nosso esforço pessoal. Todo trabalho exige sacrifício e sofrimento.
PURIFICAÇÃO OU SANTIFICAÇÃO
Deus é santo. Não podemos ir a Ele a não ser santificados. A crença da reencarnação, presente em boa parte das culturas, teria fundamento nesta explicação do sofrimento. Na Idade Média, a Igreja Católica filiou-se a esta teoria com a doutrina do Purgatório.
CONDIÇÃO EXISTENCIAL
A vida é dor, afirma o Budismo, resta-nos deixar de existir neste mundo para passar ao Nirvana, despojados de nós mesmos, e sermos “nada”, ou um “tudo”, que não pode ser algo, pois careceria de plenitude.
CORPOREIDADE
Sofremos necessariamente por estarmos num corpo, afirma Platão. Temos de desencarnar para sermos apenas alma ou espírito. A morte é a benção desta vida.
FATALIDADE OU SINA
Cada um sofre aleatoriamente sua sorte ou desgraça. Resta-nos aceitar, cada um sua própria sorte com resignação, afirmava a filosofia estóica, professada por muitos na antiga Grécia e, de alguma maneira, também por muitos de nós. Paciência, que significa capacidade de sofrer é sua resposta. Há quem apele ao deus Fortuna ou à esporádica “graça” dos milagres de Deus. Mas essa loteria só nos pode deixar mais infelizes e decepcionados.
CARÊNCIA DE BEM
É esta resposta que Santo Agostinho dá a todo tipo de mal, incluído o sofrimento. Em si mesmo não existe. É um vazio que precisa ser preenchido pela Salvação de Deus ou plenitude em Cristo. O ser e a vida deste mundo não estão acabados. Essa deficiência existencial é o que nos faz sofrer.
Scoto, no século XIII, contestando a São Tomás de Aquino, que interpretava a Salvação como ato de redenção, considerava a Graça
Salvadora de Cristo como fermento transformador da Criação. São Paulo participa desta visão dizendo que somos salvos (livres do mal) na Esperança (Rm.8), que culmina na Ressurreição, pela qual seremos livres de todo sofrimento, pecado e morte.
Não somos ainda o que Deus nos chamou a ser. O Reino de Deus, nossa vida feliz, não é deste mundo. Não por isso, somos indiferentes ao mal e ao sofrimento. Tudo quanto façamos, para não sofrer ou evitar o mal próprio e dos outros, é a maneira de participar na Esperança do Reino de Deus.
CAMINHO DA VIDA
O sofrimento tem nos Evangelhos um nome singular no conjunto de todas as culturas e religiões: CRUZ. Ela é loucura para a razão e escândalo para todo sentimento religioso. No entanto, é a sabedoria de Deus, revelada em Cristo. Para aceder a essa sabedoria precisamos da Fé. O sofrimento é o Mistério de Deus feito homem, para o homem poder ser em Deus. O filósofo francês Léon Bloy afirma que os espaços vazios e o sofrimento nos fazem existir neste mundo, a caminho da vida. Uma vida preenchida neste mundo nos faria infelizes eternamente, como não seria feliz um vaso cheio de água olhando a imensidão do mar. Cristo é a única resposta positiva ao sofrimento, pois o transformou em caminho glorioso da Salvação. Não castigo, prova, purificação, condição, fatalidade ou sorte, mas promessa de Vida Eterna.
O sofrimento necessariamente nos une a Deus: De outra maneira, como Albert Camus reconheceu, nos levaria fatalmente ao desespero. Não é uma resposta racional, pois o sofrimento continuará a ser, até o fim dos tempos, um mistério, objeto não da razão nem das religiões, mas da Fé, fundamentada na Ressurreição.
Jó 7,1-7: “HERDEI NOITES DE SOFRIMENTO”.
O livro de Jó revela-nos o problema do sofrimento em grau sobre-humano. Foi espoliado de todos os seus bens materiais. Seus sete filhos foram mortos e, para culminar sua desgraça, ficou leproso, o que lhe tornava não só doente, como também culpado e pecador diante de Deus e do povo, como então se acreditava. Três dos seus grandes amigos, escandalizados pela sua desgraça, lhe visitam para lhe convencer kafkianamente da sua culpa e do seu pecado, causa do seu sofrimento… Jó não encontra explicação racional nem religiosa para seu mal, pois em tudo tratou de agradar e fazer a vontade de Deus com sua conduta. É obrigado a confessar: “Como escravo que anseia pela sombra, herdei anos de decepção e noites de sofrimento… Ao deitar, almejo pelo amanhecer e, estando de pé, digo: quando chegará a noite? Meus dias correm velozes como lançadeiras de tecelão, sem esperanças… Meus olhos jamais verão a felicidade”. Possivelmente o grau de sofrimento que a figura de Jó nos mostra não seja tão grande em cada um de nós, mas, em alguns momentos, sim temos tido essa sensação trágica de dor e desespero ao ponto de dizer com Jó: “Maldito o dia em que vim a este mundo”.
Hoje temos paliativos para o sofrimento físico mas não para esse outro sofrimento da própria vida, em si mesma infeliz, como afirma Freud: “nossa natureza não foi programada para ser feliz”. E Homero, no século IX a.C diz: “O homem é um ser infeliz”. Sartre chega à conclusão que a vida não pode ser pensada sem angústia. Sem consciência desse abismo, paradoxalmente, Deus não existe. A Salvação nasce em nós como uma necessidade existencial.
Porque existe o mal e o sofrimento é que Deus existe, afirma São Tomás de Aquino, o Único que me pode livrar dele. Heidegger, foi incapaz de ser ateu: “Quem sabe se ainda Deus nos pode salvar…?” Cristo dirime essa dúvida e vacilante esperança assegurando-nos ser Ele a vida feliz que buscamos e desejamos.
1Cor. 9,16-23. AI DE MIM, SE EU EU NÃO ANUNCIAR O EVANGELHO!
Se Jó experimentou sua desgraça no sofrimento físico, São Paulo a experimentou no seu espírito, inclusive de maneira mais dramática. O que lhe atormentava era a impossibilidade de se salvar pelos seus próprios méritos. “Quem poderá me salvar deste corpo (situação existencial de pecado)?”, se questionava. Mas, logo que encontrou de maneira gratuita a Salvação em Cristo, fez da sua existência uma constante ação de graças e tornou-se arauto da própria Salvação para o mundo. Não cumprir essa missão lhe condenava e lhe privava dessa graça.
De fato, não nos podemos salvar sem os outros. Ao ponto de dizer ter-se feito fraco com os fracos, pecador com os pecadores, para poder mostrar a Graça Salvadora de Cristo… “Ai de mim, se eu não anunciar a boa notícia da Salvação!” E afirma que não o faz por iniciativa própria, nem por qualquer recompensa, mas por mandato do próprio Cristo. Na medida que anuncio sua Salvação, “Ele me faz participante dela”. Cristo é a razão da sua vida. Com Ele se identifica no sofrimento e na morte, para com Ele também ressuscitar. Só este otimismo evangélico pode fazer maravilhosa nossa vida. Somos um sonho cujo despertar é nossa Ressurreição.
Mc. 1,29-35. “JESUS CUROU MUITOS DOENTES DE DIVERSAS ENFERMIDADES”.
Após ter anunciado a boa notícia da Salvação na sinagoga de Cafarnaum (que significa terra da consolação), foi à casa de Pedro, onde encontrou sua sogra acamada com febre muito alta. “Tomando-a da mão, a levantou”. A notícia logo correu pela cidade e “todos vinham para serem curados das suas doenças”… Nada mais natural. Tudo quanto nós desejamos neste mundo é termos saúde. A procuramos nos hospitais e nas Igrejas, nos médicos e nos curandeiros. Mas Cristo disse aos seus discípulos: “vamos para outras aldeias e povoados, a fim de pregar também ali, pois para isso é que eu vim”. A Salvação, cura de todos nossos males, nos é dada como promessa a ser realizada plenamente no dia da nossa Ressurreição. Os milagres apenas são “sinais” da Mesma. Cristo veio para nos anunciar a boa notícia de que seremos salvos do sofrimento, do pecado e da morte, promessa já realizada em favor de toda a criação, sendo o ser humano o primeiro a participar dela no dia da morte pessoal de cada um. A seguir, virão todas as gerações futuras e, finalmente, todo universo, sujeito à caducidade e ao mal.
“O Senhor cuida de nossos sofrimentos e conta o número das estrelas” (Sl.146). A Salvação é humana e cósmica. Jesus de Nazaré tem de ser confessado como nosso verdadeiro Deus para depositar nele nossa única esperança de vida e de Salvação.
Nossa esperança é feliz, segura e certa.
Um monge o explicava assim: Certo homem tinha caído num poço do qual não podia sair. Passou um budista e lhe disse para se esforçar para subir. Um discípulo de Confúcio, limitou-se a deixá-lo pois era o seu merecido. Mas Cristo o viu caído e sem nada dizer, pegou sua mão e o tirou daquele poço. “Eu virei, nos disse, e os levarei comigo ao meu Reino”.
Finalmente sairemos deste poço de dor, do pecado e da morte para termos a Vida Eterna e feliz em Deus.”Felizes os que sofrem, porque serão consolados”.
Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição e título por Malcolm Forest. São Paulo.)