O Relatório sobre McCarrick, página dolorosa da qual a Igreja aprende

Theodore McCarrick  (2010 Getty Images)

Uma leitura do dossiê publicado pela Secretaria de Estado, com os documentos e os testemunhos que contam o caso do ex-cardeal arcebispo de Washington demitido do estado clerical.

ANDREA TORNIELLI

No momento da nomeação do arcebispo para Washington Theodore McCarrick, no ano 2000, a Santa Sé agiu baseada em informações parciais e incompletas. Verificaram-se, infelizmente, omissões e desconsiderações, foram feitas escolhas que se demonstraram erradas, mesmo porque, durante as verificações na época solicitadas por Roma, nem sempre as pessoas interrogadas contaram tudo o que sabiam. Até 2017 nenhuma acusação fundamentada jamais disse respeito a abusos ou assédios contra menores: assim que chegou a primeira denúncia de uma vítima menor na época dos fatos, o Papa Francisco agiu de modo rápido e decidido em relação ao ancião cardeal já retirado da condução da arquidiocese desde 2006, primeiro, tirando-lhe a púrpura e, depois, demitindo-o do estado clerical. É o que emerge do Relatório sobre o conhecimento institucional e o processo decisório da Santa em relação a Theodore Edgar McCarrick (de 1930 a 2017) publicado pela Secretaria de Estado.

Uma resposta pontual

O Relatório em si, por sua extensão e por seus conteúdos, responde de modo pontual àquele compromisso, assumido na época pelo Papa Francisco, de investigar cabalmente o caso McCarrick, e de publicar os resultados das investigações. O Relatório representa também um ato de solicitude e cuidado pastoral do Papa para com a comunidade católica estadunidense, ferida e desorientada pelo fato de McCarrick ter conseguido alcançar posições tão elevadas na hierarquia. A investigação realizada nestes dois anos, teve início no final do verão de 2018, durante semanas de notável tensão, culminadas no discurso do ex-núncio apostólico em Washington Carlo Maria Viganò, que através de uma operação midiática internacional, chegou a pedir publicamente a renúncia do atual Pontífice.

A ausência de acusações de abusos contra menores até 2017

A força do Relatório está certamente na sua inteireza, mas também na visão de conjunto que oferece. E da visão de conjunto aparecem alguns pontos nodais os quais é importante tomar em consideração. O primeiro diz respeito aos erros cometidos, que já levaram à aprovação de novas normas na Igreja, para evitar que a história se repita. Um segundo elemento diz respeito à ausência, até 2017, de acusações fundamentadas concernentes a abusos contra menores cometidos por McCarrick. É verdade que nos anos Noventa algumas cartas anônimas que tinham chegado a cardeais e à nunciatura de Washington acenaram a isso, mas sem fornecer indícios, nomes, circunstâncias: foram, infelizmente, consideradas não críveis, precisamente porque faltavam elementos concretos. De fato, a primeira acusação fundamentada que envolva menores é de três anos atrás, que levou à imediata abertura de um processo canônico, concluído com as duas sucessivas decisões do Papa Francisco, o qual, primeiro, tirou a púrpura do cardeal emérito e, em seguida, o demitiu do estado clerical. Deve-se reconhecer às pessoas que se apresentaram para denunciar McCarrick, durante toda a realização do processo canônico, o mérito de ter permitido que a verdade viesse à luz e a gratidão por terem feito isso, superando a dor da recordação do que tinham sofrido.

A averiguação antes da viagem do Papa

Resulta do Relatório que tanto no momento da primeira candidatura ao episcopado (1977) quanto no momento das nomeações a Metuchen (1981) e depois a Newask (1986), nenhuma das pessoas consultadas para obter informações forneceu indicações negativas sobre a conduta moral de Theodore McCarrick. Uma primeira “verificação” informal sobre algumas acusações concernentes à conduta do então arcebispo de Newark em relação a seminaristas e sacerdotes da sua arquidiocese, foi feita na metade dos anos Noventa, antes da viagem de João Paulo II à cidade estadunidense. Foi o cardeal-arcebispo de Nova York, John O’Connor, quem a fez: pediu informações a outros bispos estadunidenses e depois concluiu que não havia “impedimentos” à visita papal à cidade da qual McCarrick era, naquele momento, o pastor.

A carta do cardeal O’Connor

Um ponto crucial do caso é certamente representado pela nomeação a arcebispo de Washington. Durante os meses em que se levanta a hipótese de uma transferência de McCarrick a uma das sedes tradicionalmente cardinalícias dos EUA, diante de vários e qualificados pareceres favoráveis, registra-se o parecer negativo da cardeal O’Connor. Embora reconhecendo não ter informações diretas, o purpurado explicava, numa carta de 28 de outubro de 1999 endereçada ao núncio apostólico, considerar um erro a nomeação de McCarrick a um novo encargo: de fato, haveria o risco de um grave escândalo, devido a rumores de que o arcebispo tinha no passado partilhado a cama com jovens adultos na canônica, e com seminaristas numa casa na praia.

A primeira decisão de João Paulo II

É importante ressaltar, a esse propósito, a decisão inicialmente tomada por João Paulo II. Efetivamente, o Pontífice pediu ao núncio que verificasse o fundamento dessas acusações. A investigação escrita, também desta vez, não levou a nenhuma prova concreta: de fato, três dos quatro bispos de New Jersey consultados forneceram informações definidas no Relatório “não precisas e incompletas”. O Papa, que no entanto conhecia McCarrick desde 1976 por tê-lo encontrado durante uma viagem que fez aos EUA acolheu a proposta lançada pelo então núncio apostólico nos EUA Gabriel Montalvo, e do então prefeito da Congregação para os Bispos Giovanni Battista Re, de abandonar a candidatura. Mesmo diante da ausência de fundamentados, não se deveria correr o risco, transferindo o prelado para Washington, de que as acusações, consideradas desprovidas de consistência, pudessem voltar à tona provocando desconcerto e escândalo. McCarrick parecia, portanto, destinado a permanecer em Newark.

A carta de McCarrick ao Papa

Um fato novo veio a mudar radicalmente o curso dos eventos. O próprio McCarrick, após ter evidentemente tomado conhecimento de sua candidatura e das reservas mantidas em relação a ele, em 6 de agosto de 2000 escreveu ao então ao secretário particular do Pontífice polonês, o bispo Stanislaw Dziwisz. Proclamou-se inocente e jurou “jamais ter tido relações sexuais com pessoa alguma, homem ou mulher, jovem ou idoso, clérigo ou leigo”. João Paulo II leu a carta. Convenceu-se de que o arcebispo estadunidense dissesse a verdade, e que os “rumores” negativos fossem, propriamente, apenas rumores, infundados ou, em todo caso, não-provados. Foi o próprio Papa, mediante indicações precisas dadas ao então Secretário de Estado Angelo Sodano, a estabelecer que McCarrick fosse novamente inserido na lista dos candidatos. E foi ele por fim a escolhê-lo para a sede de Washington. Segundo alguns testemunhos citados no Relatório, pode ajudar a compreender o contexto deste período também a experiências pessoal vivida pelo então arcebispo Wojtyla na Polônia: durante anos viu o uso instrumental de falsas acusações por parte do regime para descreditar sacerdotes e prelados.

A decisão de Bento XVI

Até o momento da nomeação para Washington não houve nenhuma vítima – adulta ou menor – que tivesse entrado em contato com a Santa Sé, ou com o núncio nos EUA, para fazer chegar uma denúncia relativa a comportamentos impróprios atribuídos ao arcebispo. E nada de impróprio nas atitudes de McCarrick será assinalado durante seu episcopado em Washington. Quando em 2005 emergiram as acusações de assédios e abusos em relação a adultos, o novo Papa, Bento XVI, pediu rapidamente a renúncia do cardeal estadunidense, ao qual tinha acabado de conceder uma prorrogação de dois anos do mandato. Desde 2006 McCarrick deixou, portanto, a condução da Arquidiocese de Washington tornando-se um arcebispo emérito. O Relatório mostra que neste período Viganò, como delegado para as Representações pontifícias, tinha relatado aos superiores na Secretaria de Estado as informações provenientes da nunciatura, ressaltando a sua gravidade. Mas, enquanto lançava o alarme, ele também compreendia que não estava diante de acusações comprovadas. O cardeal Secretário de Estado Tarcisio Bertone apresentou o assunto diretamente ao Papa Bento XVI. Nesse contexto, na ausência de vítimas menores, e tratando-se de um purpurado que tinha sido demitido do cargo, foi decidido não abrir um formal processo canônico para investigar McCarrick.

Recomendações, não sanções

Nos anos sucessivos, apesar da solicitação que lhe foi feita pela Congregação para os Bispos a levar uma vida mais reservada e a renunciar compromissos públicos frequentes, o cardeal continuou viajando de uma parte à outra do globo, Roma inclusive. Estes movimentos eram geralmente conhecidos e pelo menos tacitamente aprovados pelo núncio. Discutiu-se muito sobre o alcance real desta solicitação a uma vida reservada, feita pela Santa Sé a McCarrick. Dos documentos e dos testemunhos agora publicados no Relatório mostra-se evidente que jamais se tratou de “sanções”. Eram mais propriamente recomendações, dadas oralmente em 2006 e por escrito em 2008, sem que fosse explicitamente mencionado o imprimatur da vontade papal. Tratava-se, portanto, de recomendações que para ser colocadas em prática pressupunham a bom vontade da pessoa em questão. Naquele contexto, na ausência de vítimas menores, e tratando-se de um purpurado que já havia renunciado a seu encargo, foi também decidido não abrir um processo canônico formal para investigar sobre McCarrick, como, ao invés, o então Secretário de Estado Tarcisio Bertone tinha sugerido fazer. De fato, tolerou-se que o cardeal continuasse ativo e continuasse viajando e que fizesse, embora sem nenhum mandato por parte da Santa Sé, várias missões em vários países, das frequentemente se extraia extraídas informações úteis. Diante de uma nova denúncia contra McCarrick comunicada a ele em 2012, Viganò, enquanto isso nomeado núncio nos EUA, recebeu do Prefeito da Congregação dos Bispos instruções para investigar. Daquilo que resulta do Relatório, o núncio , porém, não cumpriu todas as verificações que lhe tinham sido feitas. Ademais, continuando a seguir a mesma abordagem usada até aquele momento, não deu passos significativos para limitar as atividades e as viagens nacionais e internacionais de McCarrick.

O processo aberto por Francisco

No momento da eleição de Francisco, McCarrick já tinha superado os 80 anos e, portanto, estava excluído do conclave. Seus costumes de viagem não sofreram mudanças, e não foram entregues ao novo Papa documentos ou testemunhos que o colocassem a par da gravidade das acusações dirigidas contra o ex-arcebispo de Washington. Foi referido a Francisco que tinham circulado “rumores” e imputações relacionados a “comportamentos imorais com adultos” antes da nomeação de McCarrick para Washington. Considerando, porém, que as acusações tinham sido analisadas e rejeitadas por João Paulo II, e consciente de que McCarrick tinha permanecido ativo durante o pontificado de Bento XVI, o Papa Francisco não sentiu a necessidade de modificar “quanto estabelecido por seus predecessores”, portanto, não corresponde à verdade afirmar que tenha suspenso ou aliviado sanções ou restrições ao arcebispo emérito. Tudo muda, como já recordado, como o aparecimento da primeira acusação de abuso contra um menor. A resposta foi imediata. A determinação gravíssima e sem precedentes da demissão do estado clerical foi tomada na conclusão de um rápido processo canônico.

Aquilo que a Igreja aprendeu

A página fotografada no rol de testemunhos e documentos agora publicados é, sem dúvida, uma página dolorosa da história recente do catolicismo. Um episódio triste do qual toda a Igreja aprendeu. De fato, é possível ler algumas das providências tomadas pelo Papa Francisco após o encontro para a proteção dos menores realizado em fevereiro de 2019 propriamente à luz do caso McCarrick. O motu proprio Vos estis lux mundi, com suas indicações sobre a troca de informações entre os Dicastérios e entre Roma e as Igrejas locais, o envolvimento do metropolita na investigação inicial, a indicação a verificar prontamente as acusações, bem como a suspensão do segredo pontifício: todas elas, decisões que levaram em consideração o quanto ocorrido, para aprender daquilo que não funcionou, dos mecanismos que se bloquearam, das desconsiderações que infelizmente foram feitas em vários níveis. No combate ao fenômeno dos abusos, a Igreja continua aprendendo, inclusive a partir dos resultados deste trabalho de reconstrução como se viu também em julho de 2020, no momento da publicação do Vademecum da Congregação para a Doutrina da Fé, que nos convida a não descartar automaticamente uma denúncia anônima.

Humildade e penitência

Este, portanto, o quadro geral que emerge das páginas documentadas do Relatório, com a reconstrução de uma realidade certamente muito mais articulada e complexa em relação à que se conhecia. Nas últimas duas décadas a Igreja católica tomou sempre mais consciência do drama indizível das vítimas, da necessidade de garantir a proteção dos menores, da importância de normas capazes de combater o fenômeno. E finalmente tomou consciência também dos abusos cometidos contra adultos vulneráveis e de abuso de poder. O caso Theodore McCarrick – prelado de notável inteligência e preparação, capaz de tecer muitas relações tanto no âmbito político como no âmbito religioso – permanece, portanto, para a Igreja católica, nos EUA e em Roma, uma ferida aberta e que ainda sangra, em primeiro lugar e sobretudo pelo sofrimento e dor causados às vítimas. Uma ferida não sanável somente com novas normas ou códigos de comportamentos sempre mais eficazes, porque também o crime tem a ver com o pecado. Uma ferida que para ser curada é preciso de humildade e de penitência, pedindo a Deus o perdão e a força para levantar-se novamente.

 

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