O padrinho do povo

    Não sei a razão, mas de repente senti necessidade de restaurar publicamente a figura carinhosa e respeitável dum padrinho, duma madrinha… Quem nos os teve! Quem em sua vida familiar bem brasileira, devota e venerável, um dia em suas vidas não cruzou respeitosamente com seu padrinho de batismo, de crisma, de casamento, de formatura… E lhes tomou a bênção. Eram estes uma figura sagrada, digna de nossos respeitos, que invadiam a estrutura familiar como se consanguínea fosse. Não os vejo como classe em extinção, mas teriam hoje o mesmo respeito, a mesma influência?
    Felizmente, por força desse testemunho e respeito do povo, a Igreja está reabilitando a figura do apadrinhamento nos moldes que aqui descrevemos. Basta constatar a recente reconciliação e reabilitação oferecida pelo Vaticano ao memorável “padim” Cícero em carta datada de 20 de outubro de 2015. O documento não obteve o destaque que merecia em nossa mídia, mas ao povo nordestino foi portador de uma explosão de alegria, há muito esperada, que fazia justiça ao mais ferrenho defensor dos pobres e sofredores, que nele encontravam acolhida em tempos difíceis. Sua reabilitação religiosa se dá oitenta e três anos após sua morte e quase cento e vinte desde sua suposta excomunhão ou – como preferem alguns – suspensão de ordens. Mas seus noventa anos de apostolado e vida de oração não impediram a devoção popular do povo nordestino: era e ainda é ele o padrinho do povo.
    Afastado de suas funções, impedido de oficiar os sacramentos ou administrar a paróquia que fundou, Pe. Cícero aceitou cargos políticos – foi prefeito da cidade por ele construída – notabilizou-se com sua visão de futuro, seu senso de empreendedorismo e sua compreensão das carências básicas do povo sertanejo. Sua Juazeiro nasceu a partir de sua descoberta de água em abundância no subsolo, quando orientou a escavação de muitos poços, donde jorrou água potável de inestimável qualidade. Ao redor desses poços, nasceu a cidade. Ao redor do padre, nasceu e cresceu a fé popular. Naquele agreste do Cariri surgiu um oásis de esperança e vida comunitária jamais imaginadas pelos donos de terra inóspitas e improdutivas. Pe. Cicero ordenava. O povo assentia. A água jorrava. “Há muita água debaixo deste solo, sei disso!”. Como sabia também D. Hélder, outro padrinho da nossa fé, quando dizia: “Há sempre uma fonte de água cristalina sob os pés de quem morre de sede”.
    “É inegável que padre Cícero Romão Batista viveu sua fé simples em unidade com seu povo”, escreveu o secretário do papa Francisco, cardeal Pietro, ao comunicar sua reabilitação e reconciliação eclesiais. E completou: “Não deixa de chamar a atenção o fato de que estes romeiros, desde então, sentindo-se acolhidos e tendo experimentado, através da pessoa do sacerdote, a própria misericórdia de Deus, com ele estabeleceram – e continuam estabelecendo no presente – uma relação de intimidade, chamando-o na carinhosa linguagem popular nordestina de “padim”, ou seja, considerando-o como um verdadeiro padrinho de batismo, revestido da missão de acompanha-los e de ajuda-los na vivência da fé”.  Quem tem um padrinho desse naipe, não morre de sede. Porque pior que a famélica situação de miséria que eventualmente se abate sobre um povo é a sede de Deus e de sua justiça. Esta mata corpo e alma. Esta nos deixa órfãos não só de pais e mães terrenos, como também órfãos de padrinhos e madrinhas que herdamos por força da fé de nossos antepassados. Não seria hora de restaurá-los e reabilitá-los em nossas vidas? Furar novamente as cacimbas da água viva? Sua bênção, meu padrinho, minha madrinha!

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