O naufrágio da humanidade

    O cenário era belo, paradisíaco como em qualquer praia. Mas uma mancha incomum bailava ao sabor das ondas, como que embalada carinhosamente num berço de ninar. Seria o que imaginavam os guardiões daquela fronteira? Para espanto, indignação e triste constatação dos fatos, era mesmo o que seus olhos teimavam denunciar e seus corações relutavam: o corpo de uma criança que o mar devolvia ao seu legítimo habitat. Hoje o mundo todo contempla essa cena com indignação e assombro: o corpo do menino Aylan Shenu , três anos, “vomitado” pelas ondas de um mar já enojado de tanto sangue que suas águas sepultam.

    Lembrei-me de outro menino. Diferentemente deste, cujos pais sonhavam vencer o mar e encontrar um mundo diferente, uma terra bendita, o outro queria apenas transportar aquele mar para um buraco que seu dedinho fizera na areia. Coincidência ou não, por ali passava um homem santo, preocupado em entender os mistérios de Deus e decifrá-los a seus ouvintes. “Que fazes, menino?” – interrogou Agostinho. “Estou a colocar o mar dentro desse buraco”, respondeu a criança. “Mas não vês que isso é impossível”. Ao que o menino retorquiu: “Mais impossível é explicar os mistérios de Deus apenas por palavras”. Dessa lição Santo Agostinho concluiu: “Assim são os mistérios da religião: quem pretenda compreendê-los, deslumbra-se; quem se obstina em explica-los, perde totalmente a fé”. Ou, no dizer do apóstolo: fé sem obras é morta; no mínimo, também causa vômitos.

    Esse é o paradoxo que estamos vivendo. O embate entre as grandes religiões do mundo deixou de lado a prática de seus ensinamentos. Por um lado aterrorizam, matam, estupram, chicoteiam, espoliam povos inteiros, independentemente de seus credos ou raças, para impor suas leis ditas religiosas. Por outro, nações de identidade cristã fecham suas portas, torcem o nariz para seus “invasores” e exigem de seus governantes a defesa de seus patrimônios, territórios, empregos, etc. Seu maior argumento, no entanto, foge da preocupação material: “A maioria deles não é cristã, mas muçulmana”, deixou escapar o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, “cujo governo está terminando uma cerca de arame farpado na fronteira de seu país com a Sérvia para impedir a entrada de novos clandestinos” (Veja). Tentam colocar o mar num pequeno buraco ou, como dizemos por aqui, tapam o Sol com peneira.

    A questão maior é esta. Quem vê o sol se deixa ofuscar. A grandeza de Deus na história humana é maior que nossas picuinhas terrenas. Ele está acima das nossas contradições e radicalismos religiosos. Ele não criou os males que afligem, mas sempre nos apontou outros caminhos. Basta fazermos uso das âncoras que seus ensinamentos nos deixaram, seja qual for a religião que professamos. Todas nos ensinam a ter fé, esperança, amor e caridade. Qualquer embarcação sob ameaça de naufrágio usa quatro âncoras para se estabilizar, aguardar o fim da tempestade e ancorar vitoriosa num porto seguro. O mundo se esquece desse princípio básico de sobrevivência; usar as quatro âncoras: fé, esperança, amor e caridade. A continuar nesse ritmo, radicalismo de um lado e egoísmo do outro, a morte de inocentes não mais será manchete globalizada, pois nem ela estampará nossos jornais e revistas para recordar nossos cenários outrora paradisíacos. A manchete que nunca leremos pode ser esta: O naufrágio da humanidade!  Porque, se acontecer, o mundo terá chegado ao seu fim.

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