O Dia Mundial da Paz e a cultura do cuidado

             Como já se tornou tradição, no dia 1º de janeiro – solenidade da Mãe de Deus, Maria Santíssima, conclusão da oitava de Natal, dia da circuncisão e do nome de Jesus, junto com a confraternização universal – o Santo Padre dirige ao mundo uma mensagem convidando a todos os homens e mulheres de boa vontade ao cultivo da Paz. Em 2021, reflete sobre a cultura do cuidado como caminho para a paz. Pode ser uma bela inspiração para os novos prefeitos e vereadores que assumem a grave responsabilidade pelo bem comum de suas cidades neste ano, após as eleições e diplomação. Abaixo temos alguns tópicos da mensagem, mas ela mesma deve ser lida e meditada na íntegra.

             O Papa Francisco inicia cumprimentando as legítimas autoridades constituídas, relembrando a grande crise sanitária de 2020 com a pandemia da Covid-19 e seu desdobrar-se positivo (o cuidado com o próximo) e negativo (o ávido jogo de interesses desumanos). Depois, em mais oito tópicos, desenvolve sua mensagem sob a ótica do cuidado. Sigamos, pois, o Santo Padre. Diz ele: “O ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenômeno plurissetorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, econômica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incômodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao setor privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis” (n. 1). Quem de nós, com um mínimo de humanidade que possua, não se sente impelido a agradecer ao Papa Francisco essa lembrança exortatória? Demonstra ele, assim, que o legítimo sucessor de Pedro quer ser o pai comum de todos ou o servo dos servos de Deus que se coloca a serviço dos crentes e não crentes.

             Isso posto, o Santo Padre se volta à cultura do cuidado que está na origem da vocação humana, conforme vemos no início do livro do Gênesis a destacar a relação do homem (‘adam, daí Adão) com a terra (‘adamah) e com o próximo. O homem tem a missão de cultivar e guardar a criação, obra divina a ele confiada (cf. Gn 2,8.15). Mais: “O nascimento de Caim e Abel gera uma história de irmãos, cuja relação em termos de tutela ou custódia será vivida negativamente por Caim. Depois de ter assassinado o seu irmão Abel, a Deus que lhe pergunta por ele, Caim responde: ‘Sou, porventura, guarda do meu irmão?’ (Gn 4,9). Responde o Papa em sua mensagem: “Com certeza!” Caim é o ‘guarda’ de seu irmão. Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual de que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros” (n. 2).

    Nesse contexto, Deus se faz presente como grande guardião da dignidade humana de cada um (a) de seus filhos(as) e não os (as) abandona nem mesmo quando erram, como é o caso de Caim (cf. Gn 4,15). Tem ainda especial predileção pelos pobres, ou seja, pelos mais fragilizados e injustiçados socialmente (cf. Gn 2,1-3; Lv 25,4; Dt 15,4; Am 2,6-8; 8; Is 58; Sl 34,7; 113,7-8). O Novo Testamento manifesta a mesma linha de pensamento na vida e no ministério de Jesus, nosso Senhor, que, na sua Encarnação, revela o auge de seu amor pela humanidade (cf. Jo 3,16) e se anuncia como enviado aos pobres e libertador dos oprimidos (cf. Lc 4,18). Ele se aproxima dos mais necessitados na alma e no corpo, cura-os, perdoa e liberta. É o verdadeiro Bom Pastor (cf. Jo 10,11-18; Ez 34,1-31) ou o Bom Samaritano a inclinar-se ante as feridas do próximo (cf. Lc 10,30-37). Seu grande amor O leva a entregar-se, na cruz por nós, fazendo com que seus discípulos seguissem Seu exemplo, de modo a não haver necessitados entre os primeiros cristãos (cf. At 4,34-35). Missão que a Igreja, a seu modo, continua a manter até hoje em suas obras caritativas e sociais: asilos de idosos, lares de crianças, hospitais, arrecadação e distribuição de alimentos, remédios, roupas etc. (cf. n. 3-5).

             Passa o Papa a demonstrar, então, que a Doutrina Social da Igreja está toda alicerçada na cultura do cuidado. Eis suas palavras: “A diakonia das origens, enriquecida pela reflexão dos Padres e animada, ao longo dos séculos, pela caridade operosa de tantas luminosas testemunhas da fé, tornou-se o coração pulsante da doutrina social da Igreja, proporcionando a todas as pessoas de boa vontade um precioso patrimônio de princípios, critérios e indicações, donde se pode haurir a ‘gramática’ do cuidado: a promoção da dignidade de toda a pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação” (n. 6). Disso decorre a inviolabilidade da pessoa humana a ser defendida, nunca explorada; essa dignidade repercute sobre toda a humanidade que compartilha da nobreza e da fragilidade de criatura humana, como nos demonstrou, de modo especial, a Covid-19: “estamos todos no mesmo barco”; isso inspira à solidariedade que “ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus” (idem). É nesse contexto que entra também a salvaguarda do planeta, nossa casa comum.

             Estes pontos são, de acordo com o Papa, a bússola do rumo comum que “os responsáveis das Organizações internacionais e dos Governos, dos mundos econômico e científico, da comunicação social e das instituições educativas” (n. 7) estão chamados a seguir, pois só ela pode, de fato, irmanar-nos na busca de um mundo mais justo e fraterno no qual a dignidade de todos e cada um seja devidamente valorizada e, por conseguinte, as desigualdades sociais sensivelmente minoradas. Isso que deve ser visto em nível micro ou das pessoas e pequenas organizações vale também no relacionamento das nações entre si em vista da defesa dos direitos humanos fundamentais. “Deve ser recordado também o respeito pelo direito humanitário, sobretudo nesta fase em que se sucedem, sem interrupção, conflitos e guerras. Infelizmente, muitas regiões e comunidades já não se recordam dos tempos em que viviam em paz e segurança. Numerosas cidades tornaram-se um epicentro da insegurança: os seus habitantes fatigam a manter os seus ritmos normais, porque são atacados e bombardeados indiscriminadamente por explosivos, artilharia e armas ligeiras. As crianças não podem estudar. Homens e mulheres não podem trabalhar para sustentar as famílias. A carestia lança raízes em lugares onde antes era desconhecida. As pessoas são obrigadas a fugir, deixando para trás não só as suas casas, mas também a sua história familiar e as raízes culturais. As causas de conflitos são muitas, mas o resultado é sempre o mesmo: destruição e crise humanitária. Temos de parar e interrogar-nos: O que foi que levou a sentir o conflito como algo normal no mundo? E, sobretudo, como converter o nosso coração e mudar a nossa mentalidade para procurar verdadeiramente a paz na solidariedade e na fraternidade?” (idem). Propõe o Papa que o dinheiro gasto com armas nucleares e outras despesas militares não essenciais sejam destinados a um Fundo Mundial e aplicado na aquisição e distribuição de remédios, eliminação da fome, de outros problemas humanitários urgentes, da crise climática etc. (ibidem).

             Convida, então, Francisco a uma educação na cultura do cuidado. Esta há de ter seu início na família, “núcleo natural e fundamental da sociedade, onde se aprende a viver em relação e no respeito mútuo” (n. 8) em relação com outras forças vivas da sociedade tais como como “a escola e a universidade e analogamente, em certos aspetos, os sujeitos da comunicação social” (idem) dentro do respeito a cada pessoa, em seu contexto cultural, linguístico e religioso, de forma aberta e inclusiva. Afinal, “as religiões em geral, e os líderes religiosos em particular, podem desempenhar um papel insubstituível na transmissão aos fiéis e à sociedade dos valores da solidariedade, do respeito pelas diferenças, do acolhimento e do cuidado dos irmãos mais frágeis. Recordo, a propósito, as palavras que o Papa Paulo VI proferiu no Parlamento do Uganda em 1969: ‘Não temais a Igreja; esta honra-vos, educa-vos cidadãos honestos e leais, não fomenta rivalidades nem divisões, procura promover a liberdade sadia, a justiça social, a paz; se tem alguma preferência é pelos pobres, a educação dos pequeninos e do povo, o cuidado dos atribulados e desvalidos” (Discurso aos Deputados e Senadores do Uganda. Kampala 1º de agosto de 1969, apud n. 8).

             A título de conclusão, o Santo Padre, no número 9, como que sintetiza a sua longa Mensagem com as seguintes palavras: “A cultura do cuidado, enquanto compromisso comum, solidário e participativo para proteger e promover a dignidade e o bem de todos, enquanto disposição a interessar-se, a prestar atenção, disposição à compaixão, à reconciliação e à cura, ao respeito mútuo e ao acolhimento recíproco, constitui uma via privilegiada para a construção da paz. ‘Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a gerar, com criatividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro’ (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (3 de outubro de 2020), 225). Neste tempo, em que a barca da humanidade, sacudida pela tempestade da crise, avança com dificuldade à procura de um horizonte mais calmo e sereno, o leme da dignidade da pessoa humana e a ‘bússola’ dos princípios sociais fundamentais podem consentir-nos de navegar com um rumo seguro e comum. Como cristãos, mantemos o olhar fixo na Virgem Maria, Estrela do Mar e Mãe da Esperança. Colaboremos, todos juntos, a fim de avançar para um novo horizonte de amor e paz, de fraternidade e solidariedade, de apoio mútuo e acolhimento recíproco. Não cedamos à tentação de nos desinteressarmos dos outros, especialmente dos mais frágeis, não nos habituemos a desviar o olhar, mas empenhemo-nos cada dia concretamente por ‘formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros’ (idem, n. 1).

             Que esta Mensagem penetre o mais íntimo do nosso ser e nos faça, na prática, semeadores da paz e da cultura do cuidado a começar pelos que estão à nossa volta. Inspire-nos o exemplo do Bom Samaritano, que é, em última análise, o próprio Cristo a se abaixar sobre as nossas feridas da alma e do corpo e curá-las. Sigamos este exemplo com a graça de Deus e a intercessão da Virgem Maria e de São José, cujo ano estamos vivendo, e colheremos muitos frutos para a maior glória de Deus e o bem da humanidade.

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