O artesanato e a encíclica “Laudato Si’”

Esse trabalho parece indispensável para o desenvolvimento produtivo, criativo, sustentável e respeitoso da dignidade humana

Além dos elementos da ecologia, da tecnologia, do trabalho, da cidade, da beleza, presentes na Laudato Si’, eu creio que ela contém ainda um convite a repensarmos o valor profundo do trabalho manual artesanal.

Embora o artesanato em si não seja um tema da encíclica, esse tipo de trabalho me parece um elemento indispensável para a produção criativa sustentável e respeitosa da dignidade do ser humano. Lemos na Laudato Si’: “um percurso de desenvolvimento produtivo mais criativo e bem orientado poderia corrigir a disparidade entre o excessivo investimento tecnológico para o consumo e o escasso investimento para resolver os problemas urgentes da humanidade; poderia gerar formas inteligentes e rentáveis ​​de reutilização, recuperação funcional e reciclagem; poderia melhorar a eficiência energética das cidades, e assim por diante. A diversificação produtiva oferece à inteligência humana possibilidades muito amplas de criar e inovar, protegendo ao mesmo tempo o meio ambiente e criando mais oportunidades de trabalho. Esta criatividade seria capaz de reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais digno usar a inteligência, com coragem e responsabilidade, para encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, dentro de um conceito mais amplo da qualidade de vida. Por outro lado, é menos digno e criativo e mais superficial insistir na criação de formas de pilhagem da natureza só para oferecer novas possibilidades de consumo e renda imediata” (nº 192).

O artesanato está enraizado nas culturas e no respeito dos recursos ambientais; é um trabalho que respeita a qualidade da vida, permitindo que se viva onde se trabalha, ou não muito longe; é um trabalho intrinsecamente portador de virtudes, visando à produção, através das mãos e do engenho, de objetos duradouros, úteis e belos: é, assim, o trabalho produtivo ecológico por excelência e também o trabalho que não desumaniza, mas permite a realização da própria dignidade.

A questão do artesanato é intimamente ligada à questão da arte, embora as suas estradas tenham sido, muitas vezes, separadas à força.

De acordo com a reconstituição de Shiner [3], o ponto-chave para o estabelecimento do conceito de arte aconteceria na modernidade e consistiria justamente na distinção entre arte e artesanato: o artista se diferencia claramente daquele que tem competências e habilidades manuais, como se fosse a sua superação. Enquanto “antes” o artista era também artesão e no campo das artes entravam todos os ofícios, “depois” a arte constituiu um conjunto separado, perdendo o atributo da artesanalidade. Shiner tenta reconstituir o momento da separação inicial entre arte e artesanato na era dos “philosophes”, o século XVIII. De acordo com ele, arte e artesanato ainda convivem no Renascimento: “Eu considero que o Renascimento não estabeleceu os ideais modernos de arte, artista e estética; pretendo demonstrar que, apesar dos importantes passos nesta direção, o sistema antigo que unia arte e artesanato ainda vigia tanto na Itália de Michelangelo quanto na Inglaterra de Shakespeare”.

Shiner enfatiza que, para um artista pré-romântico ou romântico, diferentemente do artista renascentista, tudo reside exclusivamente num âmbito ideal: “Depois da ruptura do século XVIII, todos os aspectos nobres da figura do artesão-artista, como graça, invenção e imaginação, foram associadas apenas ao artista, enquanto o artesão tinha apenas, dizia-se, a habilidade: ele trabalhava seguindo o costume e mirava só o ganho”. Esta ruptura entre a arte e o artesanato merece reflexão. Separar a invenção da habilidade teve consequências profundas para a arte, que se viu aparentemente livre de regras e, ao mesmo tempo, privada de um “ofício”.

Se este procedimento pode parecer positivo e libertador, ele também coloca alguns problemas. Se reconhecermos a capacidade criativa do artista independentemente da habilidade técnica; se artista é aquele capaz de expressar-se de toda forma e por qualquer meio, então a definição da própria arte se torna problemática, a ponto de o mesmo Shiner observar que “só após a criação do sistema moderno da arte é que se pode perguntar: ‘Isso é realmente arte?’ ou ‘Qual é a relação entre arte e sociedade?’”. Como é sabido, o sistema de arte que faz a arte e o artesanato conviverem tem como fim uma beleza que coincide com a bondade do objeto, dentro de um horizonte de prática do ofício e de cultivo das virtudes morais. O diretor sueco de cinema Ingmar Bergman repetidamente manifestou o desejo de ser como um dos artistas-artesãos da Catedral de Chartres, sublinhando que, “em outros tempos, o artista permanecia desconhecido e seu trabalho era dedicado à glória de Deus. Ele vivia e morria sem ser nem mais nem menos importante que outros artesãos. A capacidade de criar era um dom. Num mundo como aquele, florescia uma segurança invulnerável e uma humildade natural”.

O artesanato tem relação intrínseca com a beleza; a produção industrial aboliu a “decoração”, tanto por motivações ideológicas estéticas quanto pela impossibilidade de produzir belas decorações com baixo custo. Os objetos industriais são todos iguais, enquanto os artesanais são portadores de um simbolismo, repletos de significados ligados a culturas e tradições específicas. Talvez o relançamento do artesanato faça parte do “voltemos” que, na última encíclica, o papa Francisco propõe às sociedades industrializadas e desumanizadas: “O desenvolvimento sustentável comporta, em alguns casos, novas formas de crescer, mas, em outros casos, em face do crescimento ganancioso e irresponsável produzido durante muitas décadas, também é preciso pensar em desacelerar um pouco, em colocar alguns limites razoáveis ​​e até a voltar atrás antes que seja tarde demais” (nº 193). Não se trata, obviamente, de retornar ao passado, numa espécie de tradicionalismo, e sim de resgatar o valor autenticamente criativo e inovador do trabalho artesanal.

Podemos imaginar um renascimento do artesanato não só no nível político das economias, mas também no nível pastoral, nas igrejas locais: paróquias e dioceses poderiam valorizar o artesanato local através de academias e escolas, capazes de promover um trabalho profundamente humano, marcado pela beleza e pela sustentabilidade.

Fonte: Zenit

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