Estamos, com este artigo, já na leitura do capítulo 3 da Encíclica Dilexit nos, do Papa Francisco, sobre o Sagrado Coração de Jesus. Tem por título Este é o coração que tanto amou, conforme o próprio Senhor disse a Santa Margarida Maria Alacoque, em revelações particulares que a santa teve do Sagrado Coração, no século XVII. Eis, em suma o conteúdo desta rica parte do documento pontifício.
O Papa Francisco inicia o capítulo lembrando que não se trata do culto dirigido ao coração enquanto órgão separado do corpo, mas ao coração do Filho de Deus feito homem, sem deixar de ser Deus, por amor de nós: “Não o adoramos isoladamente, mas na medida em que com esse Coração é o próprio Filho encarnado que vive, ama e recebe o nosso amor” (n. 50; cf. n. 51). É o mistério da Encarnação (cf. Catecismo da Igreja Católica n. 456-483). Logo, o culto devotado ao Sagrado Coração de Jesus é de latria (= adoração), pois refere-se à segunda pessoa da Santíssima Trindade. Daí também decorre que “a imagem do coração deve remeter-nos para a totalidade de Jesus Cristo no seu centro unificador e, a partir desse, simultaneamente deve levar-nos a contemplar Cristo em toda a beleza e riqueza da sua humanidade e da sua divindade” (n. 55). Portanto, dentre as tantas imagens visíveis que nos levam a recordar o invisível, a do Coração de Jesus merece especial destaque. Não pela imagem em si – o que seria paganismo (cf. n. 56) – mas pelo que ela representa: Cristo (cf. n. 52-58; cf. Catecismo da Igreja Católica n. 2131-2132; 2141).
E mais um detalhe: “Na realidade, há um tríplice amor que está contido e nos deslumbra na imagem do Coração do Senhor. Primeiramente, o amor divino infinito que encontramos em Cristo. Mas, pensamos também na dimensão espiritual da humanidade do Senhor. Desde esse ponto de vista, ‘o coração de Cristo é símbolo de enérgica caridade, que, infundida em sua alma, constitui o precioso dote da sua vontade humana […]. Finalmente […] é símbolo do seu amor sensível’ [Pio XII, Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 27: AAS 48 (1956), 327-328]” (n. 65).
E mais adiante demonstra que a devoção ao Sagrado Coração se volta à pessoa toda de Cristo: “É ensinamento constante e definitivo da Igreja que a nossa adoração da sua Pessoa é única, e abrange inseparavelmente tanto a sua natureza divina como a sua natureza humana. Desde os tempos antigos, a Igreja ensinou que devemos ‘adorar um único e mesmo Cristo, Filho de Deus e do homem, de duas e em duas naturezas inseparáveis e indivisas’ [Vigílio, Constituição Inter innumeras sollicitudines (14 de maio de 553): DH 420]. E isto ‘com uma única adoração […], visto que o Verbo veio a ser carne’ [Conc. Ecum. de Éfeso, Anatematismos de Cirilo de Alexandria, 8: DH 259]. De modo algum Cristo é ‘adorado em duas naturezas, introduzindo com isto duas adorações’, mas deve-se ‘venerar com única adoração o Deus Verbo encarnado junto com a sua carne’ [Conc. Ecum. II de Constantinopla, Sess. VIII (2 de junho de 533), Cân. 9: DH 431] (n. 68).
Segue o Santo Padre lembrando que, embora o coração humano possa guardar ódio, é chamado a ser, em Deus, o centro de onde se irradia o amor (cf. n. 59). Ora, assim, Cristo nos ama como Deus, mas também como homem, uma vez que assumiu a nossa natureza humana em tudo, menos no pecado (cf. Hb 4,15). “Contrariamente a alguns que negavam ou relativizavam a verdadeira humanidade de Cristo, nos Padres da Igreja encontramos uma forte afirmação da realidade concreta e tangível do afeto humano do Senhor. Assim, São Basílio sublinhava que a Encarnação do Senhor não era algo de fantasioso, mas que ‘o Senhor possuía os afetos naturais’ [Epístola 261, 3: PG 32, 972]. São João Crisóstomo propunha um exemplo: ‘Se não tivesse possuído a nossa natureza, não teria experimentado a tristeza uma e outra vez’ [In Ioh. homil. 63, 2: PG 59, 350]. Santo Ambrósio afirmava: ‘Como tomou a alma, tomou também as paixões da alma’ [De fide ad Gratianum, II, cap. 7, 56: PL 16, 594 (edição de 1880)]. E Santo Agostinho apresentava os afetos humanos como uma realidade que, uma vez assumida por Cristo, já não é alheia à vida da graça: ‘O Senhor Jesus, não obrigado por necessidade, mas por voluntária compaixão assumiu este sentimento de fraqueza humana, como aceitara a própria carne na condição da humana fraqueza, para […] se a algum deles [os membros da Igreja] acontecer contristar-se e condoer-se no meio das tentações humanas, não julgue-se por isso alheio à graça de Deus’ [Enarrationes in Psalmos 87, 3: PL 37, 1111]. Finalmente, São João Damasceno considera esta real experiência afetiva de Cristo na sua humanidade como um sinal de que Ele assumiu integralmente a nossa natureza – e não parcialmente – para a redimir e transformar por inteiro. Assim, Cristo assumiu todos os elementos que compõem a natureza humana, a fim de que todos eles fossem santificados [cf. De fide orthodoxa, III, 6.20: PG 94, 1006.1081]” (n. 62). Se a Teologia, alguma vez, deixou de lado esses aspectos psicossomáticos de Jesus, a piedade popular os manteve por meio da Via-Sacra, da devoção às santas Chagas, ao seu Coração etc. (cf. n. 63).
Dito isto, o Santo Padre relembra, que, embora cristológica (cf. Hb 12,2), há expressões trinitárias na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Para comprovar o que diz, recorre a diversas passagens bíblicas que apenas indicaremos sem descer a pormenores, pois as supomos que sejam conhecidas dos leitores. Assim: Jo 14,6; Ef 3,14; 4,6; 5,20; 1Cor 8,6; cf. Ef 1,3.17; cf. Jo 5,18; 17,24; Mc 1,11; 14,36; (cf. n. 70-73). Seguem-se ainda outras passagens que falam do Pai – cf. Jo 1,18; Lc 6,12; 2,49; 10,21; 23,46 – e, depois, as que dizem respeito ao Espírito Santo: cf. Lc 4,18 (Is 61,1); Gl 4,6; Rm 8,15-16. Deste modo, “o seu desejo é que, impelidos pelo Espírito que brota do seu Coração, ‘com Ele e n’Ele’ nos dirijamos ao Pai […] Por isso, a Liturgia, sob a ação vivificante do Espírito, dirige-se sempre ao Pai a partir do Coração ressuscitado de Cristo” (n. 77; cf. n. 70-76).
Perpassadas as várias citações bíblicas, o Papa se volta para o Magistério recente da Igreja no que toca à devoção ao Sagrado Coração de Jesus: Leão XIII, na encíclica Annum Sacrum (25 de maio de 1899) ASS 31 (1898-99), 649, 651; Pio XI na encíclica Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928), 3: AAS 20 (1928), 167; Pio XII na encíclica Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 4, 43, 52: AAS 48 (1956), 311, 336, 340; São João Paulo II na Catequese (8 de junho de 1994): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 11 de junho de 1994), 8, e Bento XVI na Alocução do Angelus (1º de junho de 2008): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 7 de julho de 2008), 7. Queira, pois, consultar estas ricas fontes.
A partir deste fundo bíblico, histórico e magisterial, Francisco chega a algumas considerações deveras importantes. Merecem transcrição: “A devoção ao Coração de Cristo é essencial para a nossa vida cristã, na medida em que significa a nossa abertura, cheia de fé e de adoração, ao mistério do amor divino e humano do Senhor, até ao ponto de podermos voltar a afirmar que o Sagrado Coração é um compêndio do Evangelho [Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 43: AAS 48 (1956), 336]. É preciso lembrar que as visões ou manifestações místicas narradas por alguns dos santos que propuseram apaixonadamente a devoção ao Coração de Cristo não são algo em que os crentes sejam obrigados a acreditar como se fossem a Palavra de Deus [Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini (30 de setembro de 2010), 14: AAS 102 (2010), 696]. São belos estímulos que podem motivar e fazer muito bem, embora ninguém se deva sentir obrigado a segui-los se não achar de proveito no seu caminho espiritual. Do mesmo modo, é necessário recordar sempre, como afirmou Pio XII, que não se pode dizer que este culto ‘deve a sua origem a revelações privadas’ [Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 52: AAS 48 (1956), 340]” (n. 83). Repassando a história, recorda o pleno valor da Comunhão eucarística às primeiras sextas-feiras e da adoração à Jesus na Eucaristia às quintas-feiras (cf. n. 84-85).
Se a devoção ao Sagrado Coração de Jesus fez tanto bem no contexto do jansenismo do século XVII, também hoje o faz: “Poder-se-ia afirmar que hoje, mais do que o jansenismo, enfrentamos um forte avanço da secularização que visa um mundo livre de Deus. Acrescenta-se a isso, a multiplicação na sociedade de várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor, que são novas manifestações de uma “espiritualidade sem carne”. Isto é real. No entanto, devo advertir que, no seio da própria Igreja, o nefasto dualismo jansenista renasceu com novos rostos. Ganhou força renovada nas últimas décadas, mas é uma manifestação daquele gnosticismo que já nos primeiros séculos da fé cristã causava dano à espiritualidade e ignorava a verdade da ‘salvação da carne’. Por isso, dirijo o meu olhar para o Coração de Cristo e convido a renovar esta devoção. Espero que possa ser atrativa também à sensibilidade atual e que nos ajude assim a enfrentar estes velhos e novos dualismos, aos quais oferece uma resposta adequada” (n. 87).
E continua: “Gostaria de acrescentar que o Coração de Cristo nos liberta, ao mesmo tempo, de um outro dualismo: o de comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos. O resultado é, muitas vezes, um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida. Em suma, outra forma de transcendentalismo enganador, igualmente desencarnado. Estas doenças tão atuais, das quais – se nos deixamos aprisionar – nem sequer sentimos o desejo de ser curados, levam-me a propor a toda a Igreja um novo aprofundamento sobre o amor de Cristo representado no seu santo Coração. Aí encontramos todo o Evangelho, aí está sintetizada a verdade em que acreditamos, aí está tudo o que adoramos e procuramos na fé, aí está o que mais precisamos” (n. 88-89).
É o Coração de Jesus a síntese encarnada do Evangelho. E com Santa Terezinha do Menino Jesus aprendemos a bem vivê-la. “Ela viveu-a intensamente porque descobriu no coração de Cristo que Deus é amor: ‘A mim deu-me a sua Misericórdia infinita, e é através dela que contemplo e adoro as demais perfeições divinas’ [Ms A, 83 vº: S. Teresa do Menino Jesus, Obras completas (Avessadas, 1996), 214]. É por isso que a oração mais popular, dirigida como um dardo ao Coração de Cristo, diz simplesmente: ‘Eu confio em Vós’ [S. Maria Faustina Kowalska, Diário, 22 de fevereiro de 1931, I Caderno, 47, (Curitiba, 2019), 34]. Não são necessárias mais palavras” (n. 90).
Para concluir, quero trazer um dado que julgo relevante: O jansenismo é uma doutrina desenvolvida na França, nos séculos XVI e XVII, devida ao bispo holandês Cornélio Jansênio († 1638). Negava o livre-arbítrio, afirmava ser a graça de Deus um privilégio inato concedido a poucos e exigia rigor moral de seus seguidores. A Igreja opôs-se a tal doutrina (cf. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, 3ª ed. revista e ampliada. Verbete: jansenismo).
Eis o terceiro capítulo que, junto ao quarto, constituem o âmago da encíclica Dilexit nos, do Papa Francisco.