Nostra Aetate: jubileu de ouro

    Os historiadores costumam registrar, sem fazer julgamentos precipitados ou análises complexas de contextos históricos muito diferentes, que a Igreja viveu, especialmente nos séculos XVIII e XIX, uma fase de maior reflexão sobre si mesma (ad intra) – fazia parte das necessidades históricas da época. No século XX, a partir dos primeiros passos do Papa Pio XII e depois com São João XXIII e o Beato Paulo VI, viveu uma intensa fase de abertura e diálogo com o mundo externo (ad extra). Essa procura de viver a própria identidade e o diálogo com a sociedade continuou a ser mantida com os Papas seguintes até hoje.
    Nesse contexto, é que ocorre, por iniciativa do Papa João XXIII, o Concílio Vaticano II (1962-1965), terminado com Paulo VI, dentro do qual foi redigida a importante Declaração Nostra Aetate, assinada em 20 de outubro de 1965, cujo jubileu de ouro comemoramos e que ficou conhecida pela iniciativa global da Igreja de dialogar com as religiões não cristãs, ou seja, o diálogo interreligioso, embora se fale, pelas ligações histórico-teológicas, que ela trate do contato com os judeus, a quem o Papa São João Paulo II chamou de “nossos irmãos mais velhos”. Aliás, hoje, quem tem a missão desse diálogo é um departamento especial do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos devido à especificidade própria do encontro do judaísmo com o cristianismo. Diferentemente das outras religiões não cristãs que são trabalhados no diálogo com o Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso.
    Importa, pois, conhecer melhor o que essa Declaração, merecedora de leitura integral a quem ainda não o fez, tem a nos apresentar de atual, cinquenta anos depois. Façamos, por assim dizer, uma síntese, à luz do Catecismo da Igreja Católica n. 839-845, ao dizer que todos aqueles que ainda não receberam o Evangelho estão também, de uma ou de outra forma, ordenados ao povo de Deus.
    Em primeiro lugar aparece A relação da Igreja com o Povo Judaico nas seguintes palavras: “A Igreja, povo de Deus na Nova Aliança, ao perscrutar o seu próprio mistério, descobre o laço que a une ao povo judaico, ‘a quem Deus falou primeiro’. Diferentemente das outras religiões não cristãs, a fé judaica é já uma resposta à revelação de Deus na Antiga Aliança. É ao povo judaico que ‘pertencem a adoção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto, as promessas […] e os patriarcas; desse povo Cristo nasceu segundo a carne’ (Rm 9,4-5); porque ‘os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis’ (Rm 11,29).
    Depois de assim dizer, vemos um ponto de ligação entre os judeus e cristãos em relação a Cristo: “quando se considera o futuro, o povo de Deus da Antiga Aliança e o novo povo de Deus tendem para fins análogos: a esperança da vinda (ou do regresso) do Messias. Mas a esperança é, dum lado, a do regresso do Messias, morto e ressuscitado, reconhecido como Senhor e Filho de Deus: do outro, a da vinda no fim dos tempos do Messias, cujos traços permanecem velados – expectativa acompanhada pelo drama da ignorância ou do falso conhecimento de Cristo Jesus”.
    É certo que entre ambas as formas de esperar o Senhor Jesus há diferenças de grande magnitude, porém isso não impede o diálogo a partir daquilo que há, é comum na busca do bem da humanidade a partir dos pontos que nos unem e não daqueles que desunem, como já se falava nos tempos do Concílio e sempre tem sido relembrado, na teoria ou na prática. O Papa Francisco se encontrou, conjuntamente, ainda há pouco, no Vaticano, com líderes de Israel e da Palestina para tratar da paz. Neste ano, durante os encontros formativos aqui em nossa Arquidiocese, o Cardeal Kurt Kock, no Pontifício Conselho para o a Promoção da Unidade dos Cristãos, teve um importante encontro com a comunidade judaica do Rio de Janeiro, comemorando os 50 anos de o documento conciliar.
    Um segundo ponto da Nostra Aetate surge: as Relações da Igreja com os muçulmanos afirmando que “o desígnio de salvação envolve igualmente os que reconhecem o Criador, entre os quais, em primeiro lugar, os muçulmanos que declarando guardar a fé de Abraão, conosco adoram o Deus único e misericordioso que há de julgar os homens no último dia”. Notemos que se para com os judeus se realça a esperança da vinda de Cristo – para eles a primeira, para nós a segunda – com os islâmicos se comunga da fé no Deus único – o monoteísmo – que é misericordioso e virá pela segunda vez para julgar a humanidade.
    Chama a atenção o termo “misericordioso” como qualidade atribuída a Deus por católicos e muçulmanos. Isso bem demonstra que muitos dos casos de violências absurdas também contra cristãos ou contra os próprios muçulmanos atribuídos a esses irmãos não vêm da orientação religiosa originária deles, mas, sim, de grupos radicais que desvirtuaram a mensagem central de uma das grandes religiões do mundo, que deve ser respeitada como tal. Sem esse respeito é impossível pôr em prática a Nostra Aetate nos dias de hoje.
    Por fim, a Declaração realça um dos pontos mais básicos que pode haver para a sadia convivência humana: “a ligação da Igreja com as religiões não cristãs é, antes de mais, a da origem e do fim comuns do gênero humano: ‘De fato, todos os povos formam uma única comunidade; têm uma origem única, pois Deus fez que toda a raça humana habitasse a superfície da Terra; têm também um único fim último, Deus, cuja providência, testemunhos de bondade e desígnio de salvação se estendem a todos, até que os eleitos sejam reunidos na cidade santa’”. Nesse ponto, em várias ocasiões temos tido oportunidade de ter em nossa cidade os encontros com as diversas religiões não cristãs e um diálogo sincero e claro, que nos ajuda a trabalhar pela paz e fraternidade nesse nosso tempo.
    Mas aprofundemos um pouco esse documento e suas consequências! Voltando, porém, um pouco nos antecedentes da Declaração Nostra Aetate, podemos reconhecer ou perscrutar, com o estudioso Helio Albuquerque, doutor em Teologia pela PUC-Rio, em seu livro A relação judaico-cristã nas origens e hoje (Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2004), que esse importante documento conciliar pode ter, no que toca aos judeus, seus antecedentes na história da Igreja dos anos de 1930-1960. Afinal, nada de grande se faz de repente. Ora, na relação judaico-cristã que mais se destaca, inclusive no Brasil, não é diferente.
    Sim, no dia 12 de abril de 1933, ante o perigo nazista que ameaçava judeus e católicos na Alemanha, Edith Stein, judia de nascimento e religiosa carmelita, cujo nome religioso é Teresa Benedita da Cruz, escreveu do Carmelo uma comovente carta ao Papa Pio XI na qual avisava o Sumo Pontífice da catástrofe que o nacional-socialismo ou o nazismo viria trazer para a humanidade. Inclusive, a própria autora da carta, canonizada em 11 de outubro de 1998, foi vítima desse governo perverso.
    Pois bem, Edith Stein questionava, então, ao Papa perguntando se “a idolatria da raça e do poder do Estado, com a qual o rádio martela cotidianamente as massas, não é uma heresia aberta? Esta guerra de extermínio contra o sangue judeu não é um ultraje à muito santa humanidade de Nosso Salvador, da bem-aventurada Virgem e dos Apóstolos? Não está isso em oposição absoluta com o comportamento de Nosso Senhor e Redentor que, mesmo sobre a cruz, orou por seus perseguidores? […]. todos nós que olhamos a situação da Alemanha atual como filhos fiéis da Igreja, receamos o pior para a imagem mundial da própria Igreja se o silêncio se prolongar por mais tempo. Nós estamos também convencidos de que este silêncio não pode por muito tempo obter a paz do atual governo alemão”.
    É quase certo que esse grito de angústia, assomado a tantos outros que devem ter chegado ao Santo Padre, pode tê-lo motivado a escrever a memorável Encíclica Mit Brehender Sorge (Com ardente preocupação), em alemão, de 14 de março de 1937, na qual pede que o governo alemão assegure a paz e a liberdade de crença ao povo e cumpra o que prometeu em concordata com a Igreja no ano de 1933.
    Mantida em sigilo para poder chegar à Alemanha, as autoridades nazistas a descobriram quando ela foi lida em público, em alguns trechos, no Domingo da Paixão do ano de 1937, causando rápida repressão às gráficas que a editaram, ao clero e ao povo católico em geral, inclusive com prisões e mortes dos que ousavam resistir, como o Cardeal von Galen, de Münster, que jamais recuou ante o nazismo, mas teve familiares presos e padres de sua diocese assassinados em represália a seu gesto ousado de enfrentar um regime interessado em dominar o mundo e impor-lhe a “raça pura”.
    Falecido Pio XI, assume a cátedra de Pedro Eugênio Maria Pacelli, que adotou o nome de Pio XII. Fora diplomata na Alemanha e bem conhecia a realidade daquele país, de modo que logo no início de seu pontificado, já no ano de 1939, publicou a Encíclica Summi Pontificatus na qual condenava a onipotência de um Estado sobre seu povo e, mais de uma vez, pediu, “em nome de Deus”, que a guerra fosse rejeitada. Não foi ouvido, como bem o atesta a história. Aliás, esse texto sobre a “onipotência do estado” precisaria ser relido em outro diapasão também hoje…
    Porém, ainda hoje, a ação de Pio XII se mostra controversa a alguns estudiosos. Não porque ele nada fez. Isso seria falso, pois ele muito agiu, mas sim pelo modo como atuou: escolheu a via diplomática do silêncio para salvar os judeus, abrindo conventos, mosteiros, usando de meios capazes de levar outros países a acolher os perseguidos etc., sendo ele mesmo ameaçado de sofrer sequestro por parte das forças de Hitler, que dominavam também a Itália e sitiavam o Vaticano.
    Julgam, no entanto, alguns, que ele deveria bradar ao mundo contra os horrores nazistas, ao passo que sua alegação era sempre a de que se sua voz se erguesse, mais pessoas morreriam. Aliás, nós conhecemos bem esses limites dentro da atual circunstância de alguns países e até mesmo de algumas cidades. A história já está tendo e terá ainda mais, em breve, uma palavra de maior clareza sobre isso, pois só é possível julgar algo se situando bem em seu devido contexto. Como quer que seja, Pio XII foi muito agradecido pelo povo e por autoridades judaicas pelo que fez em favor dos filhos de Israel naqueles anos sombrios, macabros e sanguinolentos.
    Passado tudo isso que aqui vimos muito brevemente, mas que merece ser estudado com atenção, vem o Concílio Vaticano II com a Nostra Aetate e procura apagar, com auxílio, inclusive de judeus, incluindo Jules Isaac, educador, historiador e rabino francês, todo resquício de antissemitismo que ainda pudesse ter restado na cabeça de pessoas mal informadas, ao dizer expressamente que “aquilo que se perpetrou na Paixão de Cristo não pode ser indistintamente imputado a todos os judeus que então viviam, nem aos de hoje” (n. 4). Falar contra isso, em Lógica, seria uma generalização apressada: toma-se um ou alguns pelo todo.
    A Nostra Aetate deu frutos. Eis alguns: em 1974, o Papa Paulo VI instituiu a Comissão para o Diálogo com os Judeus; em 1982, membros do episcopado e estudiosos se reuniram em Roma visando a trabalhar melhor as relações da Igreja Católica com o Judaísmo; em 1985, surgem as notas para a correta apresentação do Judaísmo às crianças e adultos na Catequese. Afinal, Jesus é de estirpe judaica e o povo de Israel permanece como povo escolhido (cf. Rm 11,17-24); em 1986, São João Paulo II visita a grande sinagoga de Roma, o que foi considerado por não poucos peritos um grande passo no diálogo judeu-cristão; em 1990, houve, em Praga, uma amistosa reunião de católicos e judeus; em 1991, o mesmo João Paulo II encontra-se com representantes de comunidades judaicas na Nunciatura Apostólica da Hungria; em 30 de dezembro de 1993, houve, em Israel o acordo bilateral entre a Santa Sé e o Estado de Israel garantindo a presença católica naquele país; em 1994, Santa Sé e Israel anunciam a plena normalização de suas relações em âmbito mundial e, não menos importante é dizer que desde o Papa Paulo VI, em 1964, até hoje todos os Papas têm visitado, cordialmente, Israel.
    Eis como os poucos, mas densos parágrafos da Nostra Aetate, têm dado, a seu tempo, os frutos necessários. Possa também entre nós continuar afervorando a sadia relação judaico-cristã em espírito de fé e de cordialidade, como é tão próprio já da natureza deste País, continente que rejeita o ódio divisor do “nós e eles”, mas a todos acolhe de braços abertos como irmãos e irmãs na graça de Deus.
    Além desse diálogo específico, a Igreja prossegue em seu dialogo interrelegioso tão importante nestes tempos de intolerância e violência. O Concílio Vaticano II, ouvindo a voz do Espírito Santo, abriu novas portas para que a Igreja hoje pudesse ainda mais, sem perder sua identidade, colaborar com a Paz Mundial e com o diálogo com todos.

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