Em mais uma viagem apostólica, desta feita pelo continente africano, na República Democrática do Congo e em peregrinação ecumênica pelo Sudão do Sul, Papa Francisco exorta a sofrida população africana a não perder as esperanças diante dos flagelos mais gritantes que atingem e sempre atingiram aquele continente. Numa de suas primeiras declarações públicas, retomou um tema bem conhecido de todos nós, mas nem sempre valorizado, qual seja a identidade eclesial dos cristãos batizados. “Nós somos a Igreja”, bradou o Papa!
Ouvir isso dentro dum ambiente tradicionalmente cristão soa como uma afirmativa lógica e banal, cujo sentido recorrente já não toca o coração de muitos. Somos Igreja e ponto final. Mas essa mesma afirmativa num contexto de guerra e perseguição religiosa, onde muitas vezes se teme proclamar publicamente a fé cristã, onde o paganismo e o antagonismo religioso é motivo de terror e morte, onde a fé cristã é tida como usurpadora de muitas tradições afro-nacionalistas ou culturais, dizer-se Igreja é quase que confessar um crime. Mas em alto e bom som, com alegria no olhar e paz no coração, Francisco proclama com orgulho a identidade cristã, como a repetir palavras de ordem do próprio Cristo diante das borrascas e tempestades contra sua barca: “Coragem, não tenhais medo!”.
Sua segunda grande palavra de ânimo também se insere nesse contexto de contradições e perseguições contra a Igreja no mundo de hoje. Ou seja: “Não percam a esperança”. Proferida em território outrora massacrado pela escravidão, a advertência profética e apostólica de Francisco ganha um peso novo, posto ser esta a circunstância dos maiores abalos contra a fé cristã nos dias atuais. Muitos estão cercados pelo desânimo e prostração de fé diante da crescente onda agnóstica que se levanta em todos os quadrantes da terra. Aqui se constata a pior das escravidões, o servilismo humano aos poderes das trevas, a perda da liberdade religiosa e suas consequentes tribulações, posto que ser Igreja hoje requer muito mais que uma pertença a um grupo marcado por um sinal de fé; requer coragem, determinação, coerência
Ora, o apelo do Papa é o mesmo dos tempos de Cristo, quando nos exortava a ser sal e luz do mundo, dar sabor e tempero à insalubridade do meio em que fomos postos, ao mesmo tempo que ser sinal de contradição e luz para os que conosco caminham. Tudo continua igual. Tudo contribui para que a barca de Cristo, a Igreja que somos, prossiga sua missão transformadora neste mundo de conturbações constantes. A presença cristã é que dá sentido e sabor à vida, posto ser essa uma fé reveladora, transformadora, emissária de uma esperança maior que a realidade do mundo. Essa é a função do sal, realçar o sabor da vida, na medida exata das receitas divinas.
Mas a medida certa não podemos esconder, nem nunca considerar segredo pessoal, só revelado aos que comungam conosco na mesa da nossa fé. Por isso, a luz não se esconde. Por isso as revelações que adquirimos ao redor da mesa eucarística devem ser alardeadas, proclamadas, mostradas ao mundo como sinais visíveis da fé que nos congrega como povo de Deus. Eis, pois, nossa fé, nossa razão única de existir e testemunhar, seja onde for, esteja onde estiver, pertença a que continente pertencer, somos filhos de Deus, somos Igreja , sal e luz… O cristão pode até rasgar sua identidade como cidadão do mundo, perder seu registro pátrio, buscar dupla cidadania, rejeitar sua origem terrena, contestar sua filiação humana, mas nunca, nem por vontade pessoal, renegar seu batismo de fé. Esse selo ninguém apaga, não tem volta.