Esporte e Paz

    Dentro das comemorações de Nossa Senhora de Fátima, tive oportunidade de celebrar o aniversário de um estádio de futebol aqui em nossa grande cidade do Rio de Janeiro. Foi uma bela ocasião de demonstrar a proximidade da Igreja, assim como de chamar a paz nos esportes e o esporte promovendo a paz. Em tempos de tanta violência, um momento de lazer e disputa, que é o futebol, deve nos ajudar a fazer experiência de paz e entendimento, mesmo em meio à disputa por um campeonato. Todos somos chamados a construir a paz!
    No dia 16 de maio último, o Papa Francisco pronunciou algumas palavras muito importantes para o contexto do futebol, intra campo, e também aplicável aos torcedores, ou seja, extra campo, onde ocorrem vergonhosas cenas de violência e morte. É um tema que tecnicamente não diz respeito à Igreja, mas humanamente sim, por isso vale a pena refletir, como já o fizemos em alguns artigos publicados por ocasião da Copa do Mundo de 2014.
    Afirmou o Papa que o futebol é importante para o “nosso tempo” e, por isso, os jogadores dos times italianos que estavam visitando-o foram convidados a ser exemplo de lealdade, honestidade e concórdia. “Aqueles que são considerados ‘campeões’ passam facilmente a ser pontos de referência. Por isso, cada partida é um teste de equilíbrio, de controle de si e respeito às regras”, afirmou o pontífice.
    O Papa Francisco convidou os atletas a serem “testemunhas de lealdade, de honestidade, de concórdia e de humanidade”. “Às vezes – explicou –, nos estádios ocorrem, infelizmente, episódios de violência, que turbam o sereno desenrolar das partidas e o divertimento sadio das pessoas”. Daí expor seu pensamento: “Desejo que, dentro do que é possível, vocês possam ajudar [para] que a atividade esportiva permaneça como tal e, graças ao empenho pessoal de todos, seja motivo de coesão entre os desportistas e em toda sociedade”.
    A fala do Santo Padre ajuda a levar a uma reflexão que trate da paz no futebol e em suas torcidas. Aqui, no entanto, é preciso recorrer a estudiosos do assunto, como é o caso do Dr. Maurício Murad, sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e com largos anos de experiência nas pesquisas sobre o futebol e seus entornos.
    Esse autor distingue uma coisa que a nós, leigos no assunto, pode passar despercebido: há uma violência do futebol e uma violência no futebol. Eis como Murad as distingue: “Não há dúvida de que existe também a violência do futebol, própria dessa modalidade esportiva. Afinal, trata-se de um esporte coletivo, de alta competitividade, de contato físico, o mais apaixonante e massivo de todos, e jogado com os pés, bem mais instintivos e ‘brutais’ do que as mãos”.
    “A violência em campo reduz a beleza do espetáculo e o tempo de jogo corrido, devido ao aumento do número de faltas e de cartões (amarelo e vermelho), à interrupção constante da partida, às lesões (muitas delas graves), ao rodízio de faltas para fugir de punições severas (orientação de treinadores e dirigentes), à permissividade dos árbitros (esporadicamente) e, às vezes, à impunidade da Justiça Desportiva”.
    Dito isso, o autor citado passa ao segundo ponto, ou seja, a violência no futebol, com as seguintes colocações: “Então, quando se diz que existe uma violência própria desse microcosmo social, o futebol, trata-se de uma afirmação verdadeira. Porém, as práticas de violência mais sérias e que agridem a consciência são de caráter mais geral, são as que ocorrem entre torcidas organizadas, dentro de estádios e mais ainda fora deles” (…)
    Poderia se perguntar, então, se todas essas cenas de selvageria que estão no futebol, mas não são do futebol nascem no calor da disputa pela bola ou não, quer dizer: é apenas o jogo que motiva as confusões ou existem outros fatores? – Murad responde que há outros fatores. Com efeito, diz ele: “A violência que se manifesta no futebol tem sua origem em questões mais profundas de ordem social. Não é apenas o resultado daquilo que acontece nos estádios, embora também isso contribua”.
    Mais: “os principais exemplos dessas questões sociais são o desemprego e o subemprego, a falta de consciência social, de educação e cidadania, o tráfico de drogas e o crime organizado, o descaso das autoridades, a desagregação dos valores familiares e escolares, a falta de policiamento ostensivo e preventivo (mesmo com todo o esforço das forças de segurança), a impunidade, a corrupção, e tantos outros fatores. São as chamadas macroviolências, que aparecem no microcosmo do futebol assim como em outros, por exemplo, no trânsito, na escola, na família”. (A violência no futebol. São Paulo: Benvirá, 2012, p. 9-11).
    Logo depois, já no quarto capítulo da mesma obra, vem o título alarmante, mas verdadeiro: “Mortes de torcedores: nesse quesito somos campeões” (p. 37-38). Mesmo vendo tanta violência nos estádios pelo mundo afora, as nossas estatísticas são alarmantes. Aí se lê que entre os anos de 1999 e 2008, o Brasil foi campeão mundial de mortes de torcedores: 42 mortes em dez anos, ou seja, uma média de 4,2 por ano. Com esse registro, nosso país ultrapassa a Itália e a Argentina, que sempre estiveram à frente do Brasil no período investigado.
    O problema, contudo, não para aí. Chama nossa atenção também o crescimento das mortes: nos últimos dez anos (1999-2008) “a média anual foi de 4,2, mas nos últimos cinco anos o número aumentou para 5,6 e, nos dois últimos, para 7 óbitos ao ano” (p. 38). O sociólogo carioca continua dizendo que, em 2009 e 2010, chegamos a 9 e 12 mortos por ano, respectivamente.
    Eis porque neste setor, em especial, deve haver maior investimento não apenas (embora, quase sempre, importante) no setor repressivo, mas, sim, de inteligência das forças de ordem, a fim de detectarem e prevenirem a violência que grassa esse esporte tão popular no mundo e, por essa razão, deveria estar aberto a todos, como, aliás, garante a Lei. (Cf. Constituição Federal art. 217). O que se vê, no entanto, é um medo generalizado de ir aos estádios ou mesmo de ficar em determinados lugares públicos em dias de grandes disputas de futebol.
    É certo que a Igreja se interessa pelos esportes e vê neles um meio de congraçamento e fraternidade, de modo que deve ser sempre estimulado, assim como as festas das torcidas, com seus mosaicos, coreografias, cantos incentivadores ao time nas arquibancadas, bem como os trabalhos sociais de doações de alimentos, roupas, sangue etc. que, especialmente, as torcidas organizadas realizam no seu dia a dia. Esses setores não podem ser marginalizados, mas, ao contrário, acolhidos e chamados ao diálogo, ao respeito mútuo e à paz. Todos somos irmãos.
    Estas iniciativas não precisam, nem devem se dar só sob a batuta do Estado, mas das próprias partes interessadas, no caso as torcidas, com ou sem um mediador externo. Nesta mediação há grupos e entidades atuando, nos últimos anos, que buscam promover reuniões, palestras, artigos elucidativos, acordos entre as torcidas organizadas interessadas em manter a paz e apoiar o seu clube, dando também direito ao torcedor rival de torcer, sem constrangimentos, pelo clube dele.
    A Igreja, embora louve todas as boas iniciativas, não entra, evidentemente, no campo específico e técnico de como se fará esse processo de paz, mas defende o princípio da subsidiariedade, que é assim definido pelo Papa Pio XI: “Aquele importante princípio, que não pode ser desprezado ou mudado, permanece fixo e inabalável na filosofia social: Como não se pode subtrair do indivíduo e transferir para a sociedade aquilo que ele é capaz de produzir por iniciativa própria e com suas forças, assim seria injusto passar para a comunidade maior e superior o que grupos menores e inferiores são capazes de empreender e realizar. Isso é nocivo e perturbador também para toda a ordem social. Qualquer atuação social é subsidiária, de acordo com a sua natureza e seu conceito. Cabe-lhe dar apoio aos membros do corpo social, sem os destruir ou exaurir. […] Quanto mais fiel for o respeito dos diversos graus sociais através da observância do princípio de subsidiariedade, tanto mais firmes se tornam a autoridade social e o dinamismo social e tanto melhor e mais feliz será o Estado”. (Quadragesimo Anno, n. 79; cf. também São João Paulo II na Centesimus Annus n. 48).
    Aproveito para desejar que aonde chegar esta minha reflexão, chegue também o amor e a concórdia, tão necessárias aos seres humanos sedentos de paz e sadia diversão. Daí pedir, com todo empenho, diante do Cristo Redentor do Corcovado, por meio de Sua Mãe Santíssima: Nossa Senhora, Rainha da Paz, rogai a Seu Filho Jesus por todos nós e de um modo muito especial por jogadores e torcedores deste nosso Estado e Nação, tida, aliás, como a “Pátria de chuteira” ou o “País do Futebol”, a fim de que a paz impere dentro e fora dos gramados, hoje e sempre.
    A Igreja, que no dizer do Beato Papa Paulo VI, é “perita em humanidade”, quer de modo reflexivo e prático, desde que tenha espaço para tal, contribuir com a harmonia e a unidade na diversidade do mundo desportivo, especialmente no que toca aos torcedores, pois é o povo em busca de diversão, mas que pode, por culpa de alguns poucos – a quem a Mãe Igreja também muito ama –, encontrar aí a morte, levando dor e desventura às suas respectivas famílias.
    Quero crer, todavia, que todos os envolvidos no futebol – atletas, dirigentes, patrocinadores, torcedores, população em geral, torcedores etc. – estão interessados na amenização ou erradicação da violência que ronda o desporto e, longe de estimulá-lo, muito o atrapalha. O breve momento de lazer pode tornar-se um tempo contínuo de dor e luto para não poucas pessoas. Isso precisa ser repensado urgentemente, dentro e fora de campo, repito.
    A oportuna fala do Papa Francisco, na linha do que já pediam seus predecessores, João Paulo II e Bento XVI, nos convida a gestos práticos, com uma pergunta crucial: Que posso eu, em meu ambiente de vida e de trabalho, fazer pela paz no esporte em geral, de um modo muito especial no futebol, muito comum entre nós? – É com a ajuda de todos e de cada um que teremos, irmão e irmã, dias de verdadeira festa nos estádios e nas ruas, com sadia – e não agressiva ou até mortal – rivalidade.
    Aqui em terras cariocas, como também em todo o nosso país, a paixão pelo esporte é enorme. Abraço todo povo desta muito querida e acolhedora Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, e dou uma bênção especial a cada atleta e torcedor que aqui vive. Lembre-se de que, acima das cores e símbolos do seu time e da sua torcida, há um Pai cheio de amor a convidá-lo (la) a vida de filho (a) d’Ele e irmão (ã) de seu Filho Jesus Cristo a nos prometer uma coroa imperecível (1Cor 9,24-25).
    Quem compreende isso, põe-se a trabalhar pela paz, de modo incansável não só no esporte, mas na cidade e no mundo. Amém!

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