Entremos no deserto

    O tempo da Quaresma é a nossa oportunidade de uma caminhada intensa e sincera na vida de conversão. Cada dia é uma luz nova em nosso caminho. A Quaresma é um grande retiro, de quarenta dias, quando nossa vida passa profundamente marcada pelo jejum, pela penitência e pela oração. É o tempo de entrarmos no deserto, com Cristo, e renovarmos a aliança com o Senhor. Isso é o que faremos solenemente na Vigília Pascal, renovando as promessas batismais. Mas para que cheguemos até lá com essa disposição, supõe-se uma caminhada intensa de conversão. A Palavra que o Senhor nos dirige já neste Primeiro Domingo é uma séria advertência neste sentido. A leitura do Gênesis nos mostrou a ação de Deus que faz aliança com seu povo: “Eis que vou estabelecer minha aliança convosco e com todos os seres vivos! Nunca mais criatura alguma será exterminada pelas águas do dilúvio”. E, de modo poético, comovente, o Senhor colocou no céu o seu arco, o arco-íris, como sinal de paz, de ponte que liga a criatura ao Criador: “Ponho meu arco nas nuvens, como sinal de aliança entre mim e a Terra”! Com esta imagem tão sugestiva, a Escritura Sagrada nos diz que os pensamentos do Senhor em relação a nós são de paz e salvação. Podemos rezar como o Salmista: “Mostrai-me, ó Senhor, vossos caminhos; sois o Deus da minha salvação! Recordai, Senhor, meu Deus, vossa ternura e a vossa salvação, que são eternas! O Senhor é piedade e retidão, e reconduz ao bom caminho os pecadores”!
    Caríssimos, se a aliança após o dilúvio já revelava a benignidade do coração de Deus, é em Cristo que tal bondade, tal misericórdia, tal compaixão se nos revelam totalmente: “Cristo morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados, o justo pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus”! Não é este Mistério tão grande que vamos celebrar na Santa Páscoa? Nosso Senhor, morto na sua natureza humana, isto é, morto na carne, foi justificado, ressuscitado pelo Pai no Espírito Santo para nos dar a salvação definitiva, selando conosco a aliança eterna, da qual aquela de Noé era apenas uma prefiguração. Deus nos salvou em Cristo, dando-nos o seu Espírito Santo recebido por nós nas águas do Batismo, que purificam mais que aquelas outras, do dilúvio! Nunca nos esqueçamos: fomos lavados, purificados, gerados de novo, no santo Batismo.  O diluvio lavou a antiga humanidade e começou um novo tempo: assim a vida batismal: somos lavados do velho homem para ressurgirmos como novas criaturas, lavados no sangue de Cristo.
    Somos membros do povo da aliança nova e eterna, somos uma humanidade nova, nascida “não da vontade do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1,12). Somos o povo santo de Deus, povo resgatado pelo sangue de Cristo, povo que vive no Espírito Santo que o Ressuscitado derramou sobre nós.
    Uma grande miséria dos cristãos destes tempos nossos é terem perdido a consciência de que somos um povo sagrado, vivendo entre os outros povos do mundo. Aqueles que creem em Cristo e nele foram batizados são a sua Igreja, são o povo santo de Deus, congregado no Corpo do Senhor Jesus para formar um só templo santo no Espírito de Cristo! Somos um povo que vive espalhado por toda a Terra, Igreja dispersa pelo mundo inteiro, que deve viver no mundo sem ser do mundo! A nossa miséria é querermos ser como todo mundo, viver como todo mundo, pensar e agir como todo mundo. Isso é trair a nossa vocação de povo sagrado, povo sacerdotal, povo que deve, com a vida e a boca, cantar as maravilhas Daquele que nos chamou das trevas para a sua luz admirável!  (2Pd 2,9) Convertamo-nos! Sejamos dignos da nossa vocação! Eis o tempo favorável!
    Na Quaresma somos convidados a retomar a consciência de ser este povo santo. E como fazê-lo? Como Jesus, o Santo de Deus, que passou quarenta dias no deserto em combate espiritual, sendo tentado por Satanás. A Quaresma é um tempo de deserto, de provação, de combate espiritual contra Satanás, o Pai da mentira, o enganador da humanidade. Sem combate não há vitória e não há vida cristã de verdade! A Igreja nos dá as armas para o combate: a oração, a penitência e a esmola. A Igreja nos pede, neste tempo, que combatamos nossos vícios com mais atenção e empenho; a Igreja nos recomenda a leitura da Sagrada Escritura e de livros edificantes, que unjam o nosso coração. Entramos no deserto para o encontro com Deus, para aprendermos a combater o maligno e para aprendermos a depender só de Deus.
    Deixemos a preguiça, cuidemos do combate espiritual! Que cada um programe o que fazer a mais de oração. Há tantas possibilidades: rezar um salmo todos os dias, rezar todo o saltério ao longo da Quaresma, rezar a via-sacra às quartas e sextas-feiras. Quanto à penitência, não enganemos o Senhor! Que cada um tire generosamente algo da comida durante todos os dias da Quaresma (exceto aos domingos); que se abstenha da carne às sextas-feiras, como sempre pediu a tradição ascética da Igreja, que tire também algo das conversas inúteis, dos pensamentos levianos, dos programas de TV tão nocivos à saúde da alma! E a esmola, isto é, a caridade fraterna? Há tanto que se pode fazer: acolher melhor quem bate à nossa porta, aproximar-nos de quem necessita de nossa ajuda, reconciliar-nos com aqueles de quem nos afastamos, visitar os doentes e presos. No Brasil, a Igreja procura também dar um tema e uma direção comunitária à caridade fraterna com a Campanha da Fraternidade, que nos recorda que nossa vida é servir.