Dogma da Assunção de Nossa Senhora: 70 anos!

             No dia 1º de novembro de 1950, o Papa Pio XII, pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus (Deus munificentíssimo), proclamou o dogma da assunção de Nossa Senhora ao céu em corpo e alma. Eis a razão de refletirmos, de modo um tanto teológico-catequético, sobre tão importante acontecimento.

             Faz-se oportuno, antes do mais, esclarecer o que é um dogma de fé e como se chega à sua elaboração final. Pois bem: é dogma de fé – a título genérico – tudo aquilo que o Magistério da Igreja, de modo ordinário e costumeiro, proclama como verdade revelada por Deus e que, enquanto católicos, aceitamos na Profissão de Fé ou no Credo. Ao lado desse magistério ordinário, há o magistério extraordinário, que é exercido por um Concílio Ecumênico (universal) ou pelo Papa, doutor supremo da Igreja, com uma declaração ex cathedra (a partir da cadeira) ao definir uma verdade de fé e proclamá-la solenemente. Um exemplo desse tipo de proclamação, que obriga a todos os fiéis, se deu com Pio XII, em 1950, ao definir solenemente, a pedido do Povo de Deus, o dogma da Assunção de Maria ao céu em corpo e alma (cf. Dicionário de Teologia: conceitos fundamentais da Teologia atual, vol. I, São Paulo: Loyola, 1970, p. 439-440).

             No entanto, importa dizer – em contrário do que, às vezes, se fala, de modo infundado – que a Igreja não cria ou inventa novos dogmas, pois ela não está acima, mas a serviço da Palavra de Deus (cf. Dei Verbum, 10; Catecismo da Igreja Católica n. 85-87). Daí, para proclamar solenemente um dogma, faz-se necessário que 1) exista fundamento bíblico, explícito ou implícito, para a crença em questão e 2) tal crença seja difundida em âmbito geral e universal, ou seja, que a ampla maioria dos católicos em todo o mundo a professe como sendo uma verdade certa de fé.

    Sobre o item 1, temos os textos bíblicos que tratam da glória de Maria. Ei-los: o Sl 44,10.14-16 que diz: “Entre as tuas amadas estão as filhas do rei; à tua direita uma dama, ornada com ouro de Ofir. Com muitas jóias cravejadas de ouro. Vestida com brocados, a filha do rei é levada para dentro, até o rei, com séquito de virgens. Introduzem as companheiras a ela destinadas, e com júbilo e alegria elas entram no palácio do rei”. Também Ct 3,6 no qual se lê: “Que é aquilo que sobe do deserto como colunas de fumaça perfumada como incense e mirra, e perfumes dos mercadores?” ou Ap 12,1 que narra: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida de sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. Com relação a este último texto, a nota b da Bíblia de Jerusalém comenta que essa “Mulher” relembra aquela de Gn 3,15-16; no entanto, lembra ainda a Igreja, povo santo dos tempos messiânicos em luta contra o mal. “É possível que João pense também em Maria, a nova Eva, a filha de Sião, que deu nascimento ao Messias (cf. Jo 19,25)”. Há também textos que falam da assunção de Nossa Senhora ao céu por ser isenta do pecado original: assim, Gn 3,15, ao prever a vitória da Mulher e sua descendência (o Protoevangelho); e – como comentam os estudiosos – aplicam-se também à Virgem Maria todos os textos de São Paulo a demonstrarem a ressurreição corporal dos seres humanos, tendo o Senhor Jesus por modelo primeiro (cf. Rm 5-6; 1Tm 1,1 e, sobretudo, 1Cor 15,21-26;54-57). A diferença, no entanto, da Virgem Maria para conosco é que nós esperamos essa ressurreição em corpo glorioso no último dia (cf. Jo 6,44; 1Cor 15,22s; 1Ts 4,16s), ao passo que Nossa Senhora já foi, de modo singular, assunta ao céu em corpo e alma (cf. Munificentissimus Deus n. 4-6).

             Sobre o item 2 vale a pena ler com vagar o que o Papa Pio XII apresenta na Constituição Apostólica Munificentissimus Deus n. 12-37, pois sustentam a fé da Igreja inteira, desde antiquíssima data, na assunção de Nossa Senhora ao céu em corpo e alma. Eis a regra do sensus fidei (senso da fé) conforme ensina São Vicente de Lerins († 450) ao escrever: “É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir católico. Na Igreja Católica, deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é o verdadeiro e propriamente católico, segundo a ideia de universalidade que se encerra na própria etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos a universalidade, a antiguidade e o consenso geral. Seguiremos a universalidade se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais; o consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres” (Commonitorium, 2).

    Ora, Pio XII seguiu essa sábia norma ao considerar os pedidos de definição dogmática que chegavam à Santa Sé (cf. Munificentissimus Deus n. 7-10) e ao consultar o episcopado do mundo todo por meio encíclica Deiparae Virginis Mariae, de 1º de maio de 1946, na qual colocava aos bispos a seguinte consulta: “[…] Vós, veneráveis irmãos, na vossa exímia sabedoria e prudência, julgais que a assunção corpórea da santíssima Virgem pode ser proposta e definida como dogma de fé, e se desejais que o seja, tanto vós como o vosso clero e fiéis” (idem n. 11 e 41). Das 1181 respostas recebidas, 1169 – a esmagadora maioria, portanto –, era totalmente favorável à definição do dogma da assunção da Virgem Maria ao céu em corpo e alma (cf. Justo Collantes. La fe de la Iglesia Católica: las ideas y los hombres en los documentos doctrinales del Magisterio. 3ª ed. Madri: BAC, 1986, p. 302). Para Dom Pedro Carlos Cipollini, meu irmão no episcopado, bispo de Santo André, SP, esse tipo de consulta aos bispos – como também Pio IX fizera antes de proclamar o dogma da Imaculada Conceição de Maria, em 1854 –, é “uma espécie de Concílio por escrito” (O dogma da Imaculada Conceição: Ela apareceu cheia de graça. Brasília: CNBB, 2017, p. 23). Serve para medir o sensus fidei sobre o assunto na Igreja: “A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cf. Jo 2,20.27) não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, ‘desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis’ (cf. S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980), manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes” (Lumen Gentium, 12). Esse sensus fidei é “uma ‘peculiaridade’ de ‘todo’ o povo de Deus. No contexto, mencionam-se ‘a totalidade dos fiéis’, ‘povo todo’, ‘bispos e fiéis leigos’. Portanto, não é algo setorial, ou de uma categoria de fiéis” (Dom Pedro Carlos Cipollini. Os fiéis também sabem: o sentido da fé (sensus fidei) na Igreja. Brasília: CNBB, 2018, p. 19).

    Uma vez bem confirmada a fé de toda a Igreja, Pio XII proclamou, então, solenemente o dogma da Assunção de Nossa Senhora ao céu em corpo e alma: “Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus onipotente que à virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos S. Pedro e S. Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial” (Munificentissimus Deus n. 44).

    Notemos que a expressão “foi assunta” é muito precisa no âmbito lógico e teológico, uma vez que só Cristo, nosso Senhor, ascendeu ao céu, ao passo que a Virgem Santíssima foi assunta ou elevada por Deus. Daí celebrarmos a Ascensão (elevar-se por si mesmo) do Senhor e a Assunção (ser elevada por outro) de Nossa Senhora. Tal elevação é muito coerente, pois se a Mãe de Deus e nossa não esteve, por especial predileção divina, sujeita ao pecado, também não poderia ficar sob o poder da morte, consequência do pecado (cf. Rm 5,12). Vê-se, com isso, que o dogma da assunção corporal de Nossa Senhora está estritamente ligado à sua Imaculada Conceição, conforme dissemos e bem frisa Pio XII ao escrever que “a Igreja sempre reconheceu esta grande liberalidade e a perfeita harmonia de graças, e durante o decurso dos séculos sempre procurou estudá-la melhor. Nestes nossos tempos refulgiu com luz mais clara o privilégio da assunção corpórea da Mãe de Deus. Esse privilégio brilhou com novo fulgor quando o nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição. De fato, esses dois dogmas estão estreitamente conexos entre si. Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, e todo aquele que pelo batismo de novo é gerado, sobrenaturalmente, pela graça, vence também o pecado e a morte. Porém Deus, por lei ordinária, só concederá aos justos o pleno efeito desta vitória sobre a morte, quando chegar o fim dos tempos. Por esse motivo, os corpos dos justos corrompem-se depois da morte, e só no último dia se juntarão com a própria alma gloriosa. Mas Deus quis excetuar dessa lei geral a bem-aventurada virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o pecado com a sua concepção imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos. Quando se definiu solenemente que a virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da virgem Maria ao céu” (Munificentissimus Deus n. 3-6).

    A título pastoral, a definição do dogma da assunção de Nossa Senhora ao céu em corpo e alma, tem muito a nos dizer. Lembremo-nos de dois aspectos apontados pelo Papa São João Paulo II, na Audiência geral de 09/07/1997: 1) a correta exaltação da mulher: “Na Assunção da Virgem, podemos ver também a vontade divina de promover a mulher. Em analogia a quanto se verificara na origem do gênero humano e da história da salvação, no projeto de Deus o ideal escatológico devia revelar-se não em um indivíduo, mas num casal. Por isso, na glória celeste, ao lado de Cristo ressuscitado há uma mulher ressuscitada, Maria: o novo Adão e a nova Eva, primícias da ressurreição geral dos corpos da humanidade inteira. Sem dúvida, a condição escatológica de Cristo e a de Maria não devem ser postas no mesmo plano. Maria, nova Eva, recebeu de Cristo, novo Adão, a plenitude de graça e de glória celeste, tendo sido ressuscitada pelo poder soberano do Filho mediante o Espírito Santo”; 2) há um apelo à valorização da dignidade do corpo humano: “a Assunção de Maria revela a nobreza e a dignidade do corpo humano. Diante das profanações e do aviltamento a que a sociedade moderna não raro submete em particular o corpo feminino, o mistério da Assunção proclama o destino sobrenatural e a dignidade de cada corpo humano, chamado pelo Senhor a tornar-se instrumento de santidade e a participar na Sua glória. Maria entrou na glória porque escutou no seu seio virginal e no seu coração o Filho de Deus. Olhando para ela, o cristão aprende a descobrir o valor do próprio corpo e a preservá-lo como templo de Deus, na expectativa da ressurreição”.

    Que estes ensinamentos, nesta data tão especial, calem fundo nos nossos corações!

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