No dia 1º de janeiro de 2023, celebramos, na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, o Dia Mundial da Paz, instituído pelo Papa São Paulo VI em 1967. Este ano, o Papa Francisco traz o desafio de nos vermos todos “juntos” para construirmos um mundo melhor, mais solidário, fraterno, pacificado e pacificador em todos os níveis do nosso viver, ou seja, em nível internacional, nacional e local. O tema é robusto: “ninguém pode salvar-se sozinho. Juntos, recomecemos a partir de covid-19 para traçar sendas de paz”. Reflitamos!
Fundamentado na 1ª Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5,1-2, o Santo Padre recorda ser preciso esperar, sim, o Senhor que vem, mas com os pés e o coração firmes nesta terra. Mesmo nas escuridões da vida como foi, por exemplo, o tempo de pandemia – a Covid 19 tanto mal fez e ainda faz – ou é o de guerra, de fome etc., devemos estar despertos e confiar em Deus. Afinal, a Mãe Igreja acompanha com muita atenção todos os dramas da humanidade e os faz seus. Daí, com suas ações e palavras, tenta minorar as misérias humanas. Eis o que diz, já no início, a Gaudium et Spes, do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965): “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história” (n. 1).
Mais: “O Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus por Cristo congregado, não pode manifestar mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família humana, na qual está inserido, do que estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e pondo à disposição do gênero humano as energias salvadoras que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem na sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade. Eis a razão por que este sagrado Concílio, proclamando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal que a esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objetivo: continuar, sob a direção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido” (n. 3).
Voltando à Mensagem para o 56º Dia Mundial da Paz, o Santo Padre reflete sobre a Covid-19. Importa, pois, reproduzir as palavras do Papa a fim de melhor comentá-las: “A Covid-19 precipitou-nos no coração da noite, desestabilizando a nossa vida quotidiana, transtornando os nossos planos e hábitos, subvertendo a aparente tranquilidade mesmo das sociedades mais privilegiadas, gerando desorientação e sofrimento, causando a morte de tantos irmãos e irmãs nossos. Arrastados na voragem de desafios inesperados e numa situação que não era totalmente clara nem sequer do ponto de vista científico, o mundo da saúde mobilizou-se para aliviar a dor de inúmeras pessoas e procurar remediá-la; e de igual modo fizeram as autoridades políticas, que tiveram de tomar medidas notáveis em termos de organização e gestão da emergência.
A par das manifestações físicas, a Covid-19 provocou – inclusive com efeitos de longa duração – um mal-estar geral, que se concentrou no coração de tantas pessoas e famílias, com implicações não transcuráveis, incrementadas por longos períodos de isolamento e diversas limitações da liberdade”.
Ainda: “Além disso, não podemos esquecer como a pandemia atingiu pontos sensíveis da ordem social e econômica, pondo a descoberto contradições e desigualdades. Ameaçou a segurança laboral de muitos e agravou a solidão sempre mais generalizada nas nossas sociedades, especialmente a solidão dos mais frágeis e pobres. Pensemos, por exemplo, nos milhões de trabalhadores não regularizados em muitas partes do mundo, que ficaram sem trabalho nem qualquer apoio durante todo o período de confinamento. Raramente os indivíduos e a sociedade progridem em situações que geram tamanho sentimento de derrota e amargura: na realidade, o mesmo enfraquece os esforços empreendidos pela paz e provoca conflitos sociais, frustrações e violências de vários gêneros. Neste sentido, a pandemia parece ter transtornado inclusive as áreas mais pacíficas do nosso mundo, fazendo emergir inumeráveis fragilidades”.
Chamaria, aqui, atenção especial para dois pontos, uma vez que de outros tópicos presentes na citação já nos voltamos com mais frequência. O primeiro é o risco da solidão forçada e dos problemas psíquicos que dela podem decorrer. Daí a grande questão: Como estamos, enquanto pessoas e comunidades, olhando para o próximo que sofre? Recebe ele o nosso carinho ainda que via redes sociais ou sequer nos lembramos dele (dela) como nosso irmão ou irmã? Qual tem sido a nossa atitude não só para com as crianças e idosos, mas com os sofredores em geral? Que esta fala do Santo Padre nos ajude num sério exame de consciência. Afinal, tudo o que fazemos ou deixamos de fazer pelos irmãos e irmãs é para Cristo mesmo que fazemos ou deixamos de fazer (cf. Mt 25,31-46). O segundo ponto é o valor da liberdade humana, assaz privado na pandemia, que é uma constantemente violado em não poucos regimes autoritários mundo afora. O Catecismo da Igreja Católica ensina que a autêntica liberdade é “o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, portanto, de praticar atos deliberados. Pelo livre-arbítrio, cada qual dispõe sobre si mesmo. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e amadurecimento na verdade e na bondade. A liberdade alcança sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-aventurança” (n. 1731). Perder a liberdade é perder o maior dom – depois do próprio Deus e da graça divina – que o Senhor nos deu.
Todavia, como Deus não permitiria um mal se não fosse para tirar dele bens ainda maiores (Santo Agostinho. Enchiridion, 38), a pandemia também “permitiu-nos fazer descobertas positivas: um benéfico regresso à humildade; uma redução de certas pretensões consumistas; um renovado sentido de solidariedade que nos encoraja a sair do nosso egoísmo para nos abrirmos ao sofrimento dos outros e às suas necessidades; bem como um empenho, em alguns casos verdadeiramente heroico, de muitas pessoas que se deram para que todos conseguissem superar do melhor modo possível o drama da emergência. E, de tal experiência, brotou mais forte a consciência que convida a todos, povos e nações, a colocar de novo no centro a palavra ‘juntos’. Com efeito, é juntos, na fraternidade e solidariedade, que construímos a paz, garantimos a justiça, superamos os acontecimentos mais dolorosos. De fato, as respostas mais eficazes à pandemia foram aquelas que viram grupos sociais, instituições públicas e privadas, organizações internacionais unidos para responder ao desafio, deixando de lado interesses particulares. Só a paz que nasce do amor fraterno e desinteressado nos pode ajudar a superar as crises pessoais, sociais e mundiais”.
Por fim, o Santo Padre se volta para o doloroso flagelo da guerra entre Rússia e Ucrânia: “A guerra na Ucrânia ceifa vítimas inocentes e espalha a incerteza, não só para quantos são diretamente afetados por ela, mas de forma generalizada e indiscriminada para todos, mesmo para aqueles que, a milhares de quilómetros de distância, sofrem os seus efeitos colaterais: basta pensar nos problemas do trigo e nos preços dos combustíveis. […] E enquanto para a Covid-19 se encontrou uma vacina, para a guerra ainda não se encontraram soluções adequadas. Com certeza, o vírus da guerra é mais difícil de derrotar do que aqueles que atingem o organismo humano, porque o primeiro não provem de fora, mas do íntimo do coração humano, corrompido pelo pecado (cf. Evangelho de Marcos 7, 17-23)”.
Para tentar sanar tudo isso, o Papa nos convida à mudança ou a refazermos o nosso modo de ser e agir a fim de que, a partir da conversão de cada um, convertamos toda a humanidade: “Para fazer isto e viver melhor depois da emergência Covid-19, não se pode ignorar um dado fundamental: as variadas crises morais, sociais, políticas e econômicas que estamos a viver encontram-se todas interligadas, e os problemas que consideramos como singulares, na realidade um é causa ou consequência do outro. E assim somos chamados a enfrentar, com responsabilidade e compaixão, os desafios do nosso mundo. Devemos repassar o tema da garantia da saúde pública para todos; promover ações de paz para acabar com os conflitos e as guerras que continuam a gerar vítimas e pobreza; cuidar de forma concertada da nossa casa comum e implementar medidas claras e eficazes para fazer face às alterações climáticas; combater o vírus das desigualdades e garantir o alimento e um trabalho digno para todos, apoiando quantos não têm sequer um salário mínimo e passam por grandes dificuldades. Fere-nos o escândalo dos povos famintos. Precisamos de desenvolver, com políticas adequadas, o acolhimento e a integração, especialmente em favor dos migrantes e daqueles que vivem como descartados nas nossas sociedades. Somente despendendo-nos nestas situações, com um desejo altruísta inspirado no amor infinito e misericordioso de Deus, é que poderemos construir um mundo novo e contribuir para edificar o Reino de Deus, que é reino de amor, justiça e paz”.
Que Nossa Senhora, a Mãe de Deus e nossa Mãe, interceda junto a seu Filho e nosso irmão Jesus Cristo a fim de que sejamos cada vez mais humanos, solidários, fraternos e pacificadores. Feliz e abençoado 2023!