DEUS É FIEL À SUA ALIANÇA – CARTAS DO PADRE JESUS PRIANTE

‘Em Cristo, fomos amados até o extremo.’

“Quando eu for levantado, atrairei todos a mim” (Jo.12,32)

Continuando a perspectiva bíblica da Aliança dos domingos anteriores desta Quaresma, cabe apontar o aspecto singular da fé de Abraão, que culmina em Cristo, diferente das crenças de todas as religiões. Estas, impulsionadas pelo instinto vital, buscam um Deus que nos possa tornar imortais. Pela Fé, entretanto, é o próprio Deus quem vem ao nosso encontro para dar-nos essa imortalidade, de maneira feliz,
além de nossas expectativas.

Racionalmente, não podemos morrer de vez, pois seria impensável a mesma vida. O niilismo carece de todo fundamento. Emblemáticos pensadores, como Voltaire, Schopenhauer, Borges, Unamuno, por citar alguns, confessos ateus, manifestaram ao findar seus dias sua incapacidade de morrer, mesmo querendo. Oscar Niemeyer, também descrente, disse que seu maior sonho teria sido construir uma ponte para atravessar o abismo da morte. Pena que não viu essa ponte já construída, sem nenhum custo, em Cristo. “Somos sonhados para viver”, costuma dizer o papa Francisco. Ninguém, homicida ou suicida, pode matar a vida, pois o próprio Deus morreria. Cada um à sua maneira, curte as palavras do Sl.118,17: “Nao morrerei, ei de viver”. A razão e a crença postulam uma vida imortal e feliz. Mas, a Fé em Cristo ressuscitado nos faz sujeitos portadores da mesma, independentemente de nossos méritos e até da nossa vontade. Santo Agostinho, para ser mais evangélico, teria de corrigir seu consagrado dito: “Quem te fez sem ti, não te salvará sem ti”, excluindo o “não” condicional. Deus nos criou sem nós e nos salvará a pesar de nós, pois o plano e a vontade de Deus são que todos sejamos salvos (Jo.6,39). Com isso, Ele não faz qualquer violência às suas criaturas, pois a vida é tudo quanto queremos e a razão do nosso ser.

Desde seu milagroso amanhecer, faz 4 bilhões de anos neste planeta, precedido por 8 bilhões de anos de um processo molecular galáctico , a vida, na sua incontável multiplicidade de espécies e entes vivos, teve um começo, mas jamais terá fim. Ela, usando um conceito metafísico, é “eviterna” (começou para ser eterna).” Deus é de vivos e não de mortos” , disse Jesus. Ele é Espírito, que significa vida.

Alguns cientistas americanos negam a existência da matéria. Tudo é energia, dinamismo e vida. Por isso, a Criação inteira é chamada a ser eterna, plena de vida. O inerte não pode ser eterno.

Deus é fiel à sua Aliança em favor da vida. Para que serviriam os deuses se deixassem morrer suas criaturas? Hans Kung, teólogo suíço, na sua volumosa obra “Existe Deus” (1978) afirma ser a fidelidade o maior atributo
divino. O Deus amor e misericórdia nos concede confiança e esperança de salvação, mas um Deus fiel à sua Aliança (solidário) nos comunica a absoluta certeza da vida eterna no Reino da sua divindade. Uma maneira de entender o pecado, não como delito moral, mas existencialmente, consiste em viver neste mundo como condenados a morrer, fazendo nossas as palavras ateias de Heidegger: “o homem é ser-para- a morte”, esta é sua última possibilidade, dizia. São Paulo adere a essa tese, identificando a morte com o próprio pecado e vice- versa. “Se não crerem na Ressurreição, continuam a viver no pecado” (1Cor, 15,17).Quem não acredita na vida imortal, vive em pecado. Estamos e vivemos em Deus antes ou a pesar de sermos pecadores. Estar na graça de Deus não consiste em estar sem pecado, meta impossível neste mundo, mas sentir e experimentar a própria existência no ser e na vida de Deus. Sem uma pequena dose de panteísmo (tudo é Deus) não podemos entender o mistério da Criação e Salvação e, menos ainda, o fato de Deus ter-se feito homem em Jesus de Nazaré.

A definição de Deus: “o absolutamente OUTRO”, que a teologia ultimamente tem adotado, empobrece o sentido sublime da Aliança, pela qual Deus une-se a nós, ao ponto de nos fazer concorpóreos e consanguíneos dele em Cristo, como afirma São Gregorio Nacianzeno (sec. IV). K. Rahner, o maior teólogo, do século XX, afirmava que o cristianismo só pode ser místico, uma vivência de comunhão com Deus. Por breve tempo, pois 14 bilhões de anos, desde o suposto Big Bang, até Cristo, representam menos do que um minuto, se comparado com a eternidade, Deus nos criou separados dele, como a criança que precisa sair do seio materno para nascer, e assim sua mãe poder ver e o abraçar com amor eterno. Em Cristo, fomos amados até o extremo. O amor é entrega e a entrega é morte de si para dar a vida à pessoa amada. Se por um impossivel, Deus tivesse de deixar de existir e viver em favor das suas criaturas, Ele o faria. Por isso, disse São Irineu (sec.II): “A maior glória de Deus é nossa própria vida”. O papa João Paulo II na sua maravilhosa encíclica “Rico em Misericórdia”, afirma que Deus não será feliz até nós todos sermos felizes com Ele. “Deus é mais íntimo a nós do que nós mesmos”, diz Santo Agostinho. Até o termo portugues D-EU-S parece sugerir essa nossa divina comunhão. Nosso “eu” mergulha no infinito de Deus.

QUEM DE ENTRE VÓS FAZ PARTE DO SEU POVO, PARTA E QUE DEUS ESTEJA COM ELE” (2Cr.36.14-23)

Assim falou profeticamente o rei Ciro da Pérsia (Iran) ao povo de Israel, aliado de Deus, após 70 anos de exílio na Babilônia (Iraque) no século VI a.C. O texto alude à idolatria e infidelidades do povo, junto com seus chefes e sacerdotes. Afastados do Deus de Abraão, aquele povo teve de experimentar a amargura do exílio na Babilônia, mil quilômetros distantes de Jerusalém, e sentir a nostalgia (dor pelo retorno) do lendário Ulisses, fora da sua pátria, em Troia. É o que nos revela o elegíaco Sl 136: “À beira dos canais de Babilónia, nos sentámos a chorar pensando em Jerusalém”. A vida de todo ser humano é experimentada distante de nós mesmos. Estamos, diz Baudelaire, sempre fora do lugar que almejamos.Mais do que termos a vida, a desejamos e lutamos por ela sem jamais atingir essa meta. Com toda verdade nossos ancestrais na Idade Média cunharam essa nossa condição existencial na bela oração da Salve Rainha: “desterrados neste vale de lágrimas”, onde os cantos e alegrias morrem.

“Como cantar em terra estranha?”, lamentava o povo exilado na Babilônia. Um misto de saudades e ansiedade acompanha o sentir do nosso dia a dia.

Tem de haver um lugar em que a sede e a fonte se beijem para sempre.

Essa é a grande Utopia que nos brinda a Fé em um Deus aliado à nós e à toda Criação, que nos faz possível passar por todas as “topias”, situações de dor, pecado e de morte da vida presente. Só uma leitura teológica ou, melhor, teleológica (relacionada com o fim) torna inteligível a História. Talvez por isso, o povo judeu edite e leia seus livros da página final para o começo.

Na história da Salvação cumpre-se o princípio maquiavélico :”O fim justifica os meios”. No fim da nossa vida pessoal e no fim dos tempos, encontramos sentido para nossas alegrias e tristezas e veremos, como afirma São Paulo, que “tudo coopera para nosso bem” (Rm.8,28). O absurdo do sofrimento será revestido da sabedoria de Deus. “Deus não seria Todo Poderoso , se fosse incapaz de tirar o bem do mal”, nos diz Santo Agostinho. O plano salvífico de Deus seguirá seu curso irreversivelmente pelos meandros da nossa história.

Talvez poucos dos nossos leitores tenham alguma vez reparado no belo capítulo 26 do Levítico, onde descrevem-se as bênçãos e as maldições de Deus, estas em maior número, de acordo com nossa conduta. Mas sua grande mensagem está no versículo 44: “Mesmo estando na terra dos inimigos, longe de mim, não vos rejeitarei nem me enfadarei, para não violar minha Aliança, porque eu sou o Eterno, vosso Deus”. São Paulo confirma essa profecia: “Se nós somos infiéis, Ele permanece fiel, porque não pode desmentir-se a si mesmo” (2Tm.2,3). O episódio do retorno do povo judeu à sua amada Jerusalém por meios humanamente inesperados, através do rei Ciro, faz-nos ler a História de maneira otimista. Todos teremos um final feliz e vitorioso porque é o próprio Deus,
aliado a nós, quem luta conosco e guia nossas vidas.

“MORTOS PELO PECADO, FOMOS SALVOS PELA GRAÇA” (Ef. 2,4-10)

Somos co-vivificados e glorificados em Cristo Jesus. Não pelos nossos méritos e nem sequer por uma dádiva ou prêmio de Deus, mas como resultado da sua Aliança, realizada e consumada em Cristo Ressuscitado. Deus não nos deixa morrer em nossos pecados. Não é fácil passar do regime da lei do dever ao regime da graça. Esse passo só é possível pela Fé, visão culminante do ser humano pela qual percebemos e experimentamos que tudo nasce de Deus, Nele acontece e Nele sobrevive. Uma pessoa deixa de ser apenas religiosa, próprio da natureza humana, para ser uma pessoa de Fé, quando tiver absoluta certeza e segura esperança de portar já neste mundo, neste corpo mortal e doloroso, a vida do próprio Deus, eterna e feliz. Nisso consiste a evangelização, receber a boa e grande notícia da Salvação, que nos vem gratuitamente de Deus em Cristo.

O senso de justiça da nossa razão nos impede de aceder ao regime da graça, assim como nossas crenças religiosas. Por isso, identificamos pecado e morte. Morremos porque pecamos e por sermos pecadores não temos direito à vida…

A maior parte da humanidade, incluídos os cristãos, que em seu maior número nunca foram evangelizados, vive mais temendo o inferno (a morte eterna) do que com a feliz esperança de serem salvos pela graça de Deus. Não damos crédito ao que São Paulo nos revela neste texto: Estávamos mortos em nossos pecados, mas pela graça, fomos vivificados com Cristo”. Dá por certo e fato consumado nossa salvação.

” DEUS ENVIOU SEU FILHO NÃO PARA CONDENAR O MUNDO, MAS PARA QUE O MUNDO SEJA SALVO POR ELE” (Jo. 14,21)

Este trecho evangélico faz parte do colóquio que Jesus teve com Nicodemos, mestre e seguidor da Lei, mas que na sua velhice percebeu seu fracasso existencial . Sonha pela vida, mas a morte cresceu mais forte do que ela. Esperou merecer uma outra vida, mas foi incapaz de equacionar seu senso do dever com o devido. Seu ideal ético era irrealizável. De fato, “só Deus é santo”. Reportando-se ao episódio da serpente de bronze (Num.21,8-9) emblema que Deus mandou erguer no deserto para o povo acreditar que só Deus nos livra da morte, Jesus disse a Nicodemos que essa serpente, paradoxalmente salvadora, seria Ele mesmo. O veneno da morte se tornaria nele a Salvação do mundo. Os mestres judeus interpretam este episódio da serpente de bronze com o mesmo sentido das mãos erguidas em oração de Moisés no monte Sinai enquanto seu povo lutava no
vale contra seus inimigos. Bastava Moisés deixar cair, cansado, seus braços, para os inimigos serem avantajados na luta. Cristo na cruz é nosso estandarte de vitória. Nele morrem as mortes e as tardes deste mundo para nos trazer a vida, imortal e gloriosa… São João faz de Cristo crucificado a força da gravitação para todos os povos: “Quando eu for levantado, atrairei todos a mim” (Jo.12,32).

Simone Weil, judia francesa, brilhante filósofa da primeria metade do século XX, sugere com o titulo da sua primeira obra “A Gravidade e a Graça” (1947) essa ideia da salvação do mundo como fruto da irresistivel força divina que faz gravitar tudo nele. Somos “pondus Dei”, peso de Deus. De fato, onde poderia ficar uma criatura fora do seu criador?… Desde esta ótica, este mundo é o melhor dos mundos, assim como também nossas vidas, não pelo que são em si, mas por que repousarão em Deus. Sempre ficaremos aquém do que gostaríamos, no que se refere ao mistério da nossa Salvação que, como Lutero disse, é nossa única questão. Tudo quanto nós precisamos saber é se viveremos de maneira feliz após esta vida, pois as alegrias e tristezas na vida presente passam velozmente. E a única certeza que temos de esperar uma vida imortal e gloriosa é ter Deus assumido nossa causa, revelando-nos com sua Aliança, ratificada para sempre em Cristo, que todos seremos salvos. Não poderia ter feito uma viagem tão longa, desde os primórdios da Criação, para retornar ao Céu sem nos levar consigo.

Padre Jesus Priante
Espanha

(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.) Copyright 2021 Padre Jesus Priante.
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