Muitos dos contos e lendas orientais nos falavam de cidades especialmente construídas para abrigar príncipes, reis e seus familiares. As descrições pormenorizadas e fantasiosas nos apresentavam palácios ricamente adornados, ruas e avenidas pavimentadas com granitos e mármores, bosques primorosos e bem ajardinados, salões amplos adornados com riquíssimas obras de arte, candelabros preciosos, estátuas e ouro, muito ouro… Fausto e luxo para abrigar nobres e poderosos do reino!
Assim se concebeu Petrópolis, nossa cidade imperial. D. Pedro I a imaginou em sonho, maravilhado que ficou com o clima ameno daquela serra no portal do Caminho de Ouro. Mas sua abdicação ao trono impediu a concretização de um sonho. Anos mais tarde seu sucessor, Pedro II, retomou o projeto e construiu ali o maior dos palácios desse império tupiniquim, local de refúgio pessoal, para receber seus convidados e ou embaixadores doutros reinos… Além da beleza do local, o clima ameno não assustava tanto. A cidade de Pedro tornou-se a pérola preciosa da nossa coroa!
Desde sua fundação (1843) a segunda cidade planejada do Brasil era considerada a mais segura, a Versalles brasileira, que ocupava a serra da Estrela com o brilho de seus palácios, a riqueza de seus moradores ilustres e a ostentação de suas belezas naturais. Chegou o dilúvio… 15 de fevereiro de 2022. Em seis horas, 232 mm de águas caíram sobre a cidade como bomba de efeito devastador. A destruição avassaladora assustou, mas a destruição de vidas pode atingir três centenas de indivíduos (cento e cinquenta já confirmados), além da imensa leva de desabrigados que perambulam pelos escombros de uma terra arrasada. Tudo isso os jornais nos mostram, mexem com nossos sentimentos, provocam verdadeira comoção nacional, despertam no povo a solidariedade adormecida. Mas, e agora?
Uma hecatombe social é sempre oportunidade de confrontar nossa fragilidade neste mundo. Por maiores que sejam nossas conquistas, realizações de sonhos, exibição de poderes, ostentação de riquezas, afirmação das capacidades ou solidificação dos impérios pessoais que pensamos possuir, dominar, adquirir, um dia a vida reclama, o vento assopra, a água leva. O tempo nos cobra. Os palácios que aqui construímos são de vidro. Nosso império é passageiro. Nossos domínios, instáveis. Nosso clima, incerto. Hoje ameno, amanhã chuvoso. Verão. Inverno. Sol e chuva.
Assim a vida, assim nossa história. De toda essa tragédia humana nos sobra a maior das riquezas, o grande sentimento que ora nos afeta, mas nos une como raça, como povo: a solidariedade. Essa, sim, desce a serra da nossa prepotência e lava nossa alma! Essa é a mais bela das lições que uma aparente tragédia hoje nos ministra: “fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca” (Lc 6, 35). O que vemos no sobe e desce daqueles morros sinistrados, no vai e vem de muitos socorristas, no afã radical daqueles que se arriscam ao menor sinal de vida sob escombros, é muito mais do que poderíamos suportar no comodismo diante do sofrimento alheio. A solidariedade não mede consequências. Nem esforços. Nem renúncias e sacrifícios. Não possui rótulos religiosos, políticos ou sociais. É neutra. É espontânea, natural. É humana. Nada espera em troca. Mas há uma palavra que justifica tudo: a misericórdia do Pai. Ele que tudo sabe, observa, avalia e pesa, diz-nos claramente: “Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante, será colocada no vosso colo” (Lc 6, 38). A recompensa virá! Enquanto isso, como diria Santo Agostinho, prefiro a Cidade de Deus à cidade dos homens…