“Cartas da Trapa”, um verdadeiro itinerário de santidade

             Maria Gabriela Sagheddu é uma monja trapista italiana da primeira metade do século XX. Nasceu, no dia 17 de março de 1914, em Dorgali, na Itália, e faleceu, em 23 de abril de 1939, no mosteiro trapista de Grottaferrata, na própria Itália. Tinha apenas 25 anos, mas – como Santa Teresinha do Menino Jesus, a carmelita de Lisieux, na França do século XIX –, galgou a perfeição para a qual Cristo nos convida (cf. Mt 5,48). Eis que, agora, o público de língua portuguesa tem a oportunidade de conhecer melhor essa monja, por meio de seus próprios escritos que formam um verdadeiro itinerário de santidade, com a publicação do livro “Cartas da Trapa: vida e correspondências de Maria Gabriela Sagheddu, monja trapista do século XX”. Obra da Cultor de Livros, traduzida pelo Ir. Vanderlei de Lima, eremita de Charles de Foucauld na Diocese de Limeira (SP), que lhe acrescentou a introdução e elucidativas notas de rodapé.

             Maria Sagheddu, este é seu nome de Batismo, foi uma menina um tanto incomum à sua época e ao seu povoado, pois, naquela ardorosa população católica, era bastante arredia às práticas religiosas, não obstante a insistência de sua mãe para que ela fosse à Missa e se envolvesse num dos apostolados de então. As orações de sua mãe, assim como todas as nossas preces, não foram, todavia, em vão. Aos 17 anos, preparou-se para receber o sacramento da Crisma e, aos 18, ingressou na Ação Católica atraída por seus grandes ideais, ou seja, a Eucaristia, o apostolado e o heroísmo cristão. Era bonita e, por isso, atraía os rapazes da vila em que morava; recebeu muitas propostas de namoro e casamento, mas as recusou, pois sentia-se chamada por Deus a doar-lhe a vida. Contudo, não sabia como fazer isso por desconhecer, em seus detalhes, as formas de vida consagrada, mas Dom Basílio Meloni, piedoso pároco de Dorgali, a orientou e enviou, por fim, com o pleno consentimento da jovem, ao mosteiro trapista de Grottaferrata ou de Grota, como era conhecido.

             Maria estava plenamente convicta de sua vocação. A própria mãe é quem nos conta sobre o último encontro entre elas antes da partida para a Trapa: “Recordo que no dia em que ela partiu, eu chorava enquanto me despedia. Maria me perguntou a razão do meu pranto e me disse: ‘Porque choras, não és nem digna de ter uma filha monja’. Então, eu lhe disse: “Fica com Deus e que Ele te ajude”. Conformei-me e dizia: ‘Prefiro que Deus a leve para o céu do que ela volte para a casa’. Só uma prima a acompanhou até o trem para levar-lhe uma pequena mala, pois o padre Meloni não queria que fosse muita gente se despedir dela” (Cartas da Trapa, p. 28). Chegou a Grottaferrata em 30 de setembro de 1935. Tinha apenas 21 anos, mas era interiormente madura para saber que quem coloca a mão no arado com Cristo não deve olhar para trás (cf. Lc 9,62).

             Em poucos dias, apaixonou-se pela vida trapista. E, aqui, para que os leitores não se percam, desejo expor, de acordo com o próprio livro recém-lançado, o que é, afinal, a Ordem Cisterciense da Estrita Observância ou Trapista. “Trata-se de uma Ordem Contemplativa que segue a Regra de São Bento escrita, no século VI, na Itália. Traz ela uma forma de viver o Evangelho à luz da sabedoria monástica antiga e é caracterizada pela oração comum e individual, bem como pelo trabalho manual e a leitura orante da Palavra de Deus (a Lectio Divina)”.

    “No entanto, essa Regra é seguida de acordo com a interpretação dela feita, no século XII, pelos santos Roberto, Alberico e Estêvão, fundadores de um novo mosteiro em um local isolado chamado de Cister. A intenção desses santos era voltar à pureza e à simplicidade da Santa Regra, aspectos que eles julgavam ter sido deixados de lado no decorrer dos tempos. No século XVII, Armand Jean le Bouthillier de Rancé, abade do mosteiro cisterciense de Nôtre-Dame de la Trappe (daí o nome trapista), foi responsável por uma nova reforma que visava voltar à origem austera das raízes de Cister. Teve sucesso, de modo que, no século XIX, o Papa Leão XIII aprovou a reforma, então solidificada, como uma nova Ordem religiosa na Igreja: Cistercienses da Estrita Observância ou, de modo popular, trapistas”.

    “A vida na Trapa é dirigida totalmente à experiência do Deus vivo. É, portanto, contemplativa. Chamado(a) por Deus, o (a) trapista se consagra a buscá-Lo, de modo integral, seguindo a Cristo, sob a Regra de São Bento, e a um Abade (ou Abadessa) em uma comunidade estável, na caridade fraterna na qual todos os bens são compartilhados. Afastado(a) do mundo, o (a) trapista purifica seu coração mediante a Palavra de Deus, a oração e uma ascese (do grego áskesis: exercício) libertadora que o (a) faz humilde e obediente à semelhança de Cristo. Fiel ao capítulo 4 da Regra de São Bento, a recomendar que nada anteponha ao amor de Cristo, o dia a dia da Trapa se desenvolve no equilíbrio entre o Oficio Divino, a vida de oração pessoal e a fraterna, o trabalho manual e o estudo. O estilo de vida é sóbrio e simples, como se nota, por exemplo, na Carta 8 em que Gabriela descreve à mãe como é um dia no seu mosteiro de Grottaferrata. Ao lado desse clima penitente, reina uma existência fraterna, trabalhadora e escondida do mundo, mas aberta ao amor de Cristo e à alegre ação transformadora do seu Espírito”.

    “O clima de solidão e silêncio permite que floresça, junto com a lembrança de Deus, a oração pura e contínua. Pela hospitalidade, aberta a todos sem distinção, a Trapa reparte o fruto de sua contemplação e de seu trabalho. Sua missão no Corpo místico de Cristo, que é a Igreja (cf. 1Cor 12,12-21; Cl 1,24), se dá pela entrega do monge (da monja) a Deus na fidelidade à vida monástica. Seu apostolado consiste em manter um coração orante e purificado, pois nele se encontram todas as alegrias e tristezas da humanidade. Não realiza trabalhos pastorais externos com o povo, mas o acolhe na hospedaria do mosteiro. Este é sinal da transcendência de Deus entre os homens. É uma antevisão da comunhão com Deus, em Cristo, na eternidade” (Cartas da Trapa, p. 14-15).

    Na Trapa, Maria Sagheddu teve como mestra a Madre Pia Gullini, monja com mente aberta aos problemas de seu tempo e de profunda vivência da vida monástica nos moldes cistercienses. De mestra e discípula, tornar-se-ão grandes amigas unidas por dois pontos comuns especiais: o desejo da vida santa no mosteiro em demanda das coisas do alto (cf. Cl 3,1-2) e o anseio pela unidade dos cristãos, tão desejada por Cristo (cf. Jo 17,20-23). Sim, logo depois do noviciado, no qual recebe o nome de Gabriela, a jovem monja vinda de Dorgali se oferece, com autorização da madre, como vítima expiatória pela unidade, conforme, décadas depois, o Concílio Vaticano II (1962-1965) deixará muito claro no seu Decreto Unitatis Redintegratio (A Reintegração da Unidade).

    Contudo, ser vítima expiatória é sofrer com Nosso Senhor por uma causa nobre na sua Igreja. É a própria Irmã Maria Gabriela quem nos assegura: “Agora, entendi, verdadeiramente, que o ser vítima não consiste em fazer grandes coisas, mas, sim, no sacrifício total do próprio eu” (Cartas da Trapa, p. 52). De modo mais explícito, lemos na introdução do livro o seguinte: “Ser vítima é se oferecer como reparação dos pecados dos outros, seguindo o exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi a Vítima Expiatória por excelência (cf. Rm 3,25; Hb 2,17; 1Jo 2,2). A alma pede com admirável coragem sobrenatural aridez espiritual e desolação, nas quais parece afundar nas mais horríveis trevas, sem qualquer consolo sensível relacionado a Deus, especialmente na oração; pede doenças ou mesmo a morte, por meio da aceitação de contratempos. E contrariedades, mal-entendidos, acidentes, humilhações e abusos são permitidos por Deus para reparar e evitar a punição aos pecadores que devem pagar e responder por suas injustas queixas. No caso de nossa monja, o oferecimento da vida foi pela Unidade dos Cristãos” (Cartas da Trapa, p. 17).

    Uma missão sublime a das vítimas expiatórias na Igreja. Só por uma especial graça divina podem se oferecer e levar avante, com verdadeira alegria, tal oferecimento, como fez Gabriela. Aliás, sua vida ofertada a Deus em favor da humanidade é expressa em diversas correspondências que dirige à sua querida mãe. Eis dois belos exemplos: “Se o Senhor nos oferece a oportunidade de sofrer por amor a Ele, devemos ser felizes e aceitá-la com gratidão. Se pensarmos nos sofrimentos de Jesus desde o seu nascimento em um presépio deitado sobre palhas grosseiras, como o contemplamos nestes dias, na sua fuga para o Egito, nas humilhações sofridas em sua pregação e em todos os sofrimentos de sua paixão até derramar seu sangue por nós o que nos parecerão os nossos sofrimentos? Vamos, portanto, nos animar a sofrer, se quisermos desfrutar da pátria celestial. Eu não peço ao Senhor que me liberte do sofrimento, mas que me dê força a fim de sofrer por amor a Ele tudo o que Ele deseja enviar-me; espero que a senhora faça o mesmo” (Cartas da Trapa, p. 96-97). Depois: Estou feliz ao poder sofrer algo por amor de Jesus. Minha alegria aumenta quando penso que se aproxima o momento das verdadeiras bodas. Como a senhora sabe, o Senhor sempre me favoreceu com graças especiais, mas agora, com esta doença, me deu a maior graça de todas. Abandonei-me totalmente nas mãos do Senhor e ganhei muito. Sinto que amo meu Esposo de todo o coração, mas gostaria de amá-lo ainda mais. Queria amá-lo por aqueles que não o amam, por aqueles que o desprezam, por aqueles que o ofendem; em suma, meu desejo não é outro senão amar. As pessoas do mundo dizem que nós somos egoístas porque nos isolamos em um mosteiro e pensamos apenas em nós mesmas. É falso. Nós vivemos uma vida de contínuo sacrifício até a imolação pela salvação das almas. […] Não há felicidade maior do que poder sofrer algo por amor de Jesus e pela salvação das almas. A senhora também seja feliz, minha mãe, e agradeça ao Senhor esta grande graça que nos deu: à senhora e a mim (Cartas da Trapa, p. 149-150).

    Recomendo que “Cartas da Trapa” seja lido por todas as pessoas que buscam ou já vivem a sua vocação, uma vez que a Beata Maria Gabriela Sagheddu percorre, em suas correspondências cotidianas, simples e despretensiosas, como é próprio das almas santas, as três grandes etapas da vida mística: a purgativa, a iluminativa e a unitiva. Nesta última, como descrevem os grandes místicos, à moda do amor humano, a alma se faz uma só com o divino Esposo e anseia pelas núpcias. Nossa monja, por exemplo, escreve: “O rei do céu e da terra, o Deus do universo quer tomar como esposa uma miserável e indigna criatura como sou eu. Sim, eu pobre criatura me tornarei rainha porque Ele assim o quer. Não poderia desejar uma festa mais bela para minha consagração ao Senhor. A senhora, minha mãe, deve se sentir muito afortunada porque o Senhor se dignou escolher uma esposa em sua família. Agradeça muito ao Senhor por essa predileção pela senhora e por este grande dom que deu a mim” (Cartas da Trapa, p. 114).

    Registro, pois, meus votos de grande difusão a essa obra, que é o primeiro volume da coleção “Grandes Místicas Cistercienses” da Cultor de Livros. Cumprimento também os revisores de “Cartas da Trapa”: Madre Liliana Schiano Moriello, O.C.S.O. Ir. Vinicius Hernandes Barbosa, O. Cist. e Vitor Roberto Pugliesi Marques, OSB obl. Deus os cumule de bênçãos e graças para continuarem o seu importante trabalho pela difusão dessas mulheres que muito honram a nossa Ordem Cisterciense, da comum ou da estrita observância.

    Que Maria Gabriela Sagheddu, beatificada pelo Papa São João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, rogue a Deus por nós. Amém!

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