Carta aos sacerdotes por ocasião da Quinta-Feira Santa 29 de março de 2018

«Pai Santo, guarda em teu nome os que me destes, para que sejam um como nós».

(Jo 17, 11)

Caríssimos e amados padres,

É com grande alegria no coração que mais uma vez me dirijo a todos vocês nesta ocasião tão importante em que toda Igreja reunida eleva a Deus louvores e súplicas pela Salvação realizada por meio do Sacrifício Redentor de Jesus Cristo, o Filho do Deus Vivo. Nestes abençoados dias, em que celebramos o grande anúncio do mistério pascal, elevamos nossas preces na intenção daqueles que receberão a iniciação cristã e pela conversão de todos à misericórdia de Deus em Jesus Cristo. Contemplando os frutos da Cruz, pedimos também pela santificação do clero.

Aproveito esta oportunidade para partilhar com todos os sacerdotes de nossa Arquidiocese uma breve meditação sobre a sua união à Paixão redentora de Nosso Senhor. Percorrendo os dias do Tríduo Pascal, realçamos neles os momentos de configuração ao Cristo que estão presentes na vida do sacerdote, para que cada um, em sua consagração e ministério, renove sua entrega juntamente com seu Senhor.

A segunda parte deste texto é dedicada a alguns temas que fazem parte do “ato de ser sacerdote” e merecem uma contínua atenção e reflexão. Juntamente com uma palavra de conforto e de orientação diante dos dramas e sofrimentos mais comuns na vida cotidiana de um sacerdote, exorto-os à irrenunciável confirmação da identidade do sacerdote católico como vítima imolada com Cristo. Por fim, convido-os a uma contínua renovação qualitativa em nossa fraternidade sacerdotal, que ilumine e aqueça em fé, esperança e caridade o nosso presbitério, para que consigamos viver tão grande missão na ação redentora de Cristo Jesus.

Quero estar próximo de cada um de vocês que caminha junto com o povo de Deus nesta Igreja particular da grande, bela e complexa cidade de São Sebastião.

Pela intercessão da Santa Mãe de Deus, Rainha dos Apóstolos, confio-os ao Divino Espírito Santo para que a leitura destas páginas possa unir ainda mais os nossos corações ao Sacratíssimo Coração de Jesus. Deus os abençoe.   

I

A união do sacerdote à Paixão do Senhor

Amados irmãos no sacerdócio, na Missa da Ceia do Senhor, que celebramos na noite de Quinta-feira Santa, ouvimos Jesus que antecipa a Ceia Pascal com seus discípulos. Antecipa porque precisará se separar deles no dia seguinte… Que grande tensão não deveria estar presente no Coração de Jesus durante aquela Ceia! Separa-se daqueles que tanto ama para testemunhar-lhes um amor ainda mais profundo, pois sabia que seria ferido como vítima de imolação, e seu rebanho disperso por um tempo. Mas este Senhor que, obedecendo ao Pai desejou aquele momento, e amando suportou tamanha dor, também sente dentro de si grande alegria em entregar-se pelos seus.

Ele não se poupou de nada: confidencia-se com aqueles que escolheu, mesmo sabendo que eles, por medo, irão deixá-lo sozinho. Confia tudo que do Pai recebeu nas mãos daqueles que, na hora da provação, fugirão salvando a própria pele sem entregar nada de si por esse Senhor que tanto os amou. Mesmo assim, Jesus, que conhece os corações, amou-os naquele momento, durante todas as provações que viriam depois… e até o fim.

Na Ceia Pascal, antes de seguir para o Calvário, entregou aos seus discípulos o seu próprio Corpo e Sangue, oferecendo o sacrifício incruento e instituindo o sacrifício da Santíssima Eucaristia. Já realizava, assim, a sua doação cruenta na Cruz em uma inequívoca prova de amor absoluto jamais vista sobre a face da Terra. Em seguida, incompreendido, caminhará carregando sua Cruz abandonado por quase todos os seus. Abateu-se sobre Ele o flagelo por causa dos nossos pecados, mas de Seu peito aberto jorrou o Preciosíssimo Sangue pela nossa salvação e uma fonte de perene misericórdia por todos os pecadores.  

Meus irmãos, esta também é a nossa história. Apesar de, na maioria das vezes, considerarmo-nos apenas na condição de resgatados pelo Sangue Redentor, muitas vezes estaremos unidos àquele que é O flagelado, em outra escala, de outro modo, talvez sem sangue, mas sempre com Calvário, sempre com Cruz, interior ou exterior que seja; afinal, não existe discípulo superior ao mestre; todo o discípulo perfeito deverá ser como o mestre (Lc 6, 40). Quem quer seguir Jesus é chamado a renunciar a si mesmo e tomar a própria cruz (cf. Lc 9, 23), não apenas até as portas de Jerusalém, mas, continuando junto com Ele até o Gólgota, a porta para a Jerusalém celeste (cf. Lc 23, 40-43), que nos preparamos para atravessar com Ele. Fomos configurados e unidos a Cristo em tudo, ou seja, em sua missão apostólica, em seu Calvário e sua Cruz, e, por meio de sua misericórdia seremos unidos à sua Glória.

Nosso sacerdócio passa pela Ceia do Senhor, pela participação na grande alegria de saber-se amado pelo Mestre que se entrega inteiramente por nós e em nossas mãos. Entretanto, não nos esqueçamos de que Ele será crucificado também por nossas mãos; cada falta de amor nossa, ligeira ou grave, cada pecado nosso prega-o na Cruz. Ainda assim, pelo Sangue derramado de suas mãos cravejadas, ao nosso grito contrito por misericórdia, Ele nos perdoará uma e outra vez.

Como se não bastasse, Ele ainda permite que as mesmas mãos que o imolaram e foram redimidas por seu Preciosíssimo Sangue sejam impostas sobre o pão e o vinho para que, em Seu nome, pelas palavras proferidas por instrumentos humanos, Ele se faça real e substancialmente presente no meio do seu Povo com seu Corpo, Sangue, Humanidade e Divindade. São instrumentos indignos, que o condenam à morte com suas mazelas, mas que Ele quis, em sua infinita misericórdia, que atuassem na Sua diviníssima Pessoa, para o bem de todas as almas e a salvação dos homens.

No culto que prestamos em nome do Povo de Deus, encontramos o nosso meio de santificação, e dos demais. E tudo começou ali, naquela Ceia que deu lugar depois à Paixão e Morte deste Nosso Senhor e Mestre… e Ele tudo sabia e desejou, desde sempre. Diante de tamanho testemunho de amor, como não almejarmos a perfeição, apesar de homens pecadores que somos, por amor d’Ele e das almas? Como não querermos, também nós, dar testemunho d’Ele? Sobretudo quando, recebendo a graça e o chamado para tal vocação, como furtar-nos na hora de derramar o próprio sangue por amor a Ele e por todos nossos irmãos pecadores a quem Ele tanto ama?

Sabemos que nosso sacerdócio passa também pela Cruz do Senhor, através da imolação com Ele, muitas vezes silenciosa e escondida aos olhos das multidões, por amor ao Pai e pela salvação das almas. Entretanto, este “escondimento”, que nos educa na via da humildade e do silêncio, pode por vezes passar por um tempo de aridez e desânimo, com o risco de ser substituído por uma busca de glorificações pastorais que terminam por supervalorizar ou destacar a figura do padre e menos a figura do Cristo.

Muitas são as ações prodigiosas de santificação operadas por Cristo através de seus sacerdotes que trilham a via do “escondimento humilde”: nos sacramentos celebrados com piedade e profundo zelo pastoral; no cuidado amoroso e gentil com o povo de Deus; na catequese dos gestos de Cristo e no contato humano, imitando Jesus com um olhar e um coração sensíveis ao outro e à sua salvação eterna; nos confessionários, tido como antiquados, tão descuidados e esquecidos como o próprio sacramento da Penitência, mas que, na verdade, deveriam ser lugares prioritários na vida de um padre, porque ali se ressuscitam almas; nas homilias que brotam da intimidade com a Palavra de Deus em nossa vida e, por isso, fazem renascer os que nos escutam, movendo-os à conversão. Ao contrário, quando as homilias se reduzem a um conjunto de notícias de atualidades, ou informações generalizantes, ou a uma espécie de exposição de pensamentos positivos e ideologias, ou mera exibição de pensamentos e ideias pessoais, tornam-se um lamentável espetáculo de vaidade, sem submissão estrita às verdades salutares anunciadas por Jesus…

Aquele que é manso e humilde, silencioso e discreto até o último suspiro, morre outra vez pela conversão de cada um de seus sacerdotes para que, superada a vaidade e a vanglória, busquem a via do “escondimento humilde” e os lugares onde Ele é verdadeiramente glorificado por nosso ministério.

Ao sermos ordenados sacerdotes, abraçamos a missão de pastores do povo de Deus com um coração de pai que se inspire no de nosso Pai do Céu: … como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também vós santos em todo o vosso comportamento … (1Pd 1, 15).  Que santo propósito meus irmãos, que santa escolha é esta de ouvir o chamado de Deus e aceitarmos ser pais para um povo inteiro! Entretanto, é preciso ter cuidado para não nutrir expectativas exageradamente otimistas, sobretudo nos primeiros anos de ministério sacerdotal, esquecendo-se de que nem todos que nos foram confiados querem ser filhos, e nem todos os filhos nos querem como pai, ou não se importam com o Pai do Céu. Assim como nem todos que estão à nossa volta nos ajudarão nessa missão, ou sequer se interessarão por ela, e poderão até buscar benefícios para si próprios, sem o mínimo escrúpulo com os demais.

Mesmo diante de todas estas possibilidades, somos chamados a continuar amando, perdoando, educando e cuidando de cada filho como o Pai do Céu faz conosco, o que só acontecerá por obra do Espírito Santo transformando os nossos corações dia após dia. Para isto, será necessária muita paciência, humildade, coragem, tenacidade de espírito e a ajuda de um sacerdote amigo e bom diretor espiritual.  

É claro que esta paternidade espiritual do ministério do sacerdote, sobretudo quando se treina o olhar sobrenatural e uma atenção espiritual redobrada, resistindo a vãs dispersões, terá também muitas realizações e acertos, conquistas e felicidades, vitórias e consolações. Nos momentos de felicidade e grande êxito de nossa paternidade espiritual precisamos dividir entre nós o entusiasmo por sermos “pais em Cristo”.

Aceitar viver esta paternidade sacerdotal intimamente unido a Cristo significa n’Ele tudo esperar, o que muitas vezes nos levará a estar sozinhos e sem apoio, como São Padre Pio; ou ser humilhados e desacreditados como São João Maria Vianney; esquecidos até por nossos superiores, como São Filipe Neri; incompreendidos pelo povo de Deus, como São Francisco de Assis; abandonados por todos, como São Pedro Julião Eymard; e depois, podemos ainda assim ser expostos em nossos erros e faltas, porque além de tudo, hoje mais do que antes, somos pessoas públicas. Indiscutivelmente, todos eles foram grandes pais espirituais, homens que santificaram multidões por seu testemunho e pela cruz que levaram em sua paternidade espiritual. Isso faz parte do ser padre. São esses também os momentos em que somos pregados na cruz com Nosso Senhor.

Estar pregado na cruz também é o lugar do sacerdote chamado a amar mais a Cristo do que a si mesmo, e que deseja seguir vivendo unido a Ele por toda a vida. Muitas são as consolações de Deus que, em sua infinita misericórdia, permite que as desolações deste tempo venham acompanhadas das graças atuais necessárias para superá-las, e também por momentos de grande consolação para a alma. Mas estes, não devemos considerar como coisas que nos sejam devidas por direito e pelos sacrifícios que passamos. Afinal, Jesus que é Deus, de quem mais recebeu consolação além do anjo de seu Pai no Horto das Oliveiras? Entretanto, se não houver no coração fé e esperança ardentes, como conseguiremos perseverar como Jesus perseverou em suas desolações? Não há altruísmo pastoral, não há boa vontade, nem otimismo ou pensamento positivo que suporte tudo isso por muito tempo. Sem a graça de Deus, a única que é duradoura e faz salutarmente perdurar uma vontade resignada e viril, própria de um pai que não falhe aos seus deveres, todo o voluntarismo inicialmente promissor e bem disposto se revelará vazio na hora da desolação nas provações.

Quando não preparamos cotidianamente a alma para momentos de provação, para as contrariedades, canseiras e desolações, não saberemos nos agarrar em Deus e confiarmos somente n’Ele. Desse modo, nas horas mais difíceis da vida não será estranho que apareça em nosso coração a vontade de desistir de tudo e de voltar atrás na entrega que fizemos no dia de nossa ordenação sacerdotal, ou até mesmo de tomar a decisão de mudar de direção na vida, acreditando, ou forçando uma convicção de auto justificação, a respeito de tudo o que se viveu até agora como tendo sido um grande equívoco ou apenas uma passagem para um “momento novo e diferente”. É possível pensar então que, de agora em diante, “devo definir eu mesmo o modo de viver o sacerdócio como eu quero que seja”… como se o tempo anterior tivesse sido um momento de “deslumbramento infantil”, mas que só abandonando o ministério ou então fazendo como “eu quero que seja” é que amadurecerei verdadeiramente… Na hora das dificuldades e provações, somos chamados a repetir o mesmo “sim” generoso que foi pronunciado na festa e na alegria ao assumirmos o sacerdócio ministerial.

Foi a Voz de Deus que nos chamou, e o seu chamado é irrevogável. Amando-nos e assistindo-nos até ao extremo, nos deu o Seu Filho… e nos deu com Ele também Maria, Mãe de Deus, nossa Mãe. Como então deixaria de nos socorrer nos momentos de fraqueza e de angústia, nos momentos em que a cruz da vida se torna mais dura e sentida? Vinde ó Deus em meu auxílio, socorrei-me sem demora (Sl 69 [70]) é a oração que a Igreja coloca em nossos lábios ao longo das horas do dia por conhecer tamanha exigência, e esta oração a repetimos desde os primeiros anos de seminário e a repetiremos até o último suspiro nesta vida.

Por isso, a Quinta-feira Santa é um dia que nos deixa um testemunho muito importante para ser lembrado, especialmente nas horas das dores desta vida: existem milhares de pessoas que estão conosco, do nosso lado, sem que possamos fisicamente tê-las ali, mas rezam por nós na Comunhão dos Santos, pela nossa perseverança na fé. Entre elas muitos de nossos irmãos no sacerdócio que vivem estas mesmas dores, e que, conduzidos pela ação do Espírito Santo e inspirados pelo materno amparo da Virgem Santíssima em suas sensibilidades pessoais, também rezam por nós e se unem conosco nesta grande estrada de amor pela salvação das almas.

Quantos homens e mulheres batizados passarão em nossas vidas como Simão de Cirene para ajudar-nos a levar a cruz, ou serão como Verônica, aliviando por um breve instante a agrura de nossas aflições para não desistirmos de caminhar até o Calvário, ou serão ainda como o anjo de Deus que confortou Jesus no Horto das Oliveiras na hora de sua entrega total à vontade do Pai! Assim também os Anjos da Guarda que, por amoroso mandato divino, jamais nos abandonam e que, em sua eficácia real, mas invisível, nos confortam e protegem.

Estou convencido de que as nossas orações por nossos irmãos no sacerdócio, que vivem o mesmo que vivemos, ajudam a alcançar-lhes as graças adequadas e mesmo a perseverança na fé que lhes possa vir a faltar, a fim de suportarem as dores da cruz por amor a Cristo. É também nosso oferecimento poder completar na nossa carne e espírito o que a eles faltar, a exemplo daquilo que diz São Paulo na carta aos Colossenses 1,24. Nossas orações de intercessão por nossos irmãos sacerdotes comovem o Coração do próprio Senhor Jesus que rezou intensamente pela perseverança de Pedro na provação (cf. Lc 22, 31-32) e pela perseverança na fé de seus Apóstolos (cf. Jo 17).

Neste Tríduo Pascal, façamos o bom propósito de sermos nas mãos do Pai, por obra do Espírito Santo, promotores da unidade fraterna (cf. Jo 17, 22-26) e anunciadores da ressurreição em nosso presbitério, como resposta viva àquela súplica feita por Jesus por cada um de nós antes de subir ao Horto das Oliveiras. Ele espera de nós a unidade numa fé firme e verdadeiramente católica, não formada por convicções meramente pessoais que construímos à nossa medida e segundo esquemas pessoais. Mas que, por nossos gestos e ações, ajudemos nossos irmãos sacerdotes a estar mais unidos a Deus e entre si pela oração, pela mútua ajuda e socorro material e espiritual e pela extrema delicadeza de jamais banalizar ou expor o sofrimento do outro publicamente, para não virmos a ser causa de escândalo para os demais.

E tantos são os gestos simples que ajudam e confortam com humanidade e espírito sobrenatural um irmão sacerdote, por exemplo: dando do nosso tempo ao fazer uma visita informal, convidando para rezar o santo Terço juntos, celebrando a Santa Missa em um dia de semana para depois partilhar um momento de lazer e entretenimento saudável juntos, preparando em comum com seus amigos sacerdotes um ou mais dias de adoração eucarística com as comunidades paroquiais em reparação pelos pecados contra a vida ou na intenção da santificação do clero ou pelas vocações sacerdotais, ou ajudando-se para as confissões mensalmente, ou, quem sabe ainda, organizando uma peregrinação.

Animemo-nos mutuamente na fé, sejamos uns para os outros bálsamo de conforto e amparo nas horas difíceis. Cuidemos para que as nossas casas paroquiais sejam o lugar onde se encontre o Ressuscitado que anuncia a paz, onde se cultive o carinho e o respeito pela fragilidade humana dos sacerdotes e, ao mesmo tempo, o lugar seguro onde seja possível encontrar uma convivência sadia e cristã, com uma vida ritmada por muito sentido sobrenatural para o ministério, e onde seja renovada a fé e a esperança para uma frutuosa caridade pastoral.

Sob a proteção daquela que é a Mãe dos sacerdotes e Senhora do Imaculado Coração, no qual os nossos nomes também estão inscritos junto ao de seu Filho Diletíssimo, quero desejar-lhes um santo Tríduo Pascal e uma santa Páscoa neste ano de 2018 e que esse clima nos sustente cada dia destes tempos complexos e difíceis que vivemos. Nossa Senhora, que aceitou ser nossa Mãe, sempre estará conosco em nossas alegrias e lutas, como esteve ao lado de seu Filho. Por isso, pelos méritos do Sangue redentor de Cristo Jesus e sob o manto materno de Maria, sejamos santos como o Pai do Céu é Santo.

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II

Ser Sacerdote Hoje

 «Vigiai, permanecei firmes na fé, sede corajosos, sede fortes!» (1Cor 16, 13)

Caríssimos padres, destaco agora aquilo que testemunhamos na manhã da Quinta-feira Santa em nossa Igreja catedral, isto é, as preces do Povo de Deus reunido pela nossa santificação. Encorajados por este testemunho, enquanto recordamos tudo o que Deus tem feito em nossas vidas e o quanto sofreu por nós em sua própria santíssima Carne, fomos convidados a renovar nossas promessas de seguir em nossa vocação sacerdotal guardando a nossa fé (cf. 2Tim 4, 7), purificando as nossas intenções, reparando os nossos pecados pelo sacramento da Confissão e sendo instrumentos de conversão e de santificação para os demais irmãos que nos esperam em nossas paróquias (cf. Ef 3, 16-18).

Juntos e unidos em Cristo trazemos ao altar do Senhor cada momento da nossa vida, cada fôlego da nossa energia no caminhar ministerial e, cheios de esperança no auxílio do Pai celestial, avançaremos até aquele último suspiro que precede o supremo juízo que a todos aguarda. Então, prestaremos contas de tudo que nos foi dado e pedido, das graças que o Pai amoroso nos reservou para que lhe conduzíssemos as almas dos outros homens, oferecendo por estes um amor paterno à imitação daquele que o Pai nutre por seu Divino Filho.

“Todos estes unânimes, perseveravam na oração …” (At 1, 4)

A oração, a presença e a proximidade de cada irmão no sacerdócio, além de animar-nos na perseverança, também é um alento em nossas dores pessoais, pois a perseverança no sacerdócio ministerial torna-se mais penosa quando vivemos longe uns dos outros ou isolados em nós mesmos.  Precisamos do acompanhamento, amparo, instrução e orientação da Santa Mãe Igreja, bem como da proximidade amiga, misericordiosa e leal de nossos irmãos sacerdotes, manifestada em exemplos de fraternidade sacerdotal na caridade, na solicitude, no socorro material e espiritual, que é também eclesial, em virtude da Ordem que nos une e da qual comungamos pelo caráter sacerdotal.

É pelas mãos de nossos irmãos de presbitério que chega até nós a graça do perdão de Deus por nossos pecados, é pela escuta atenta de um irmão de presbitério que tantas vezes encontramos o conforto na hora de maior angústia; por vezes com uma simples palavra dita com amor verdadeiro pode se acalmar a alma agitada, e uma presença amiga sem pressa na hora da dor e da solidão pode confirmar o amparo de Deus para libertar um coração do desânimo e da tristeza. Ver a nossa Igreja particular reunida em oração pela nossa santificação, e poder encontrar um irmão sacerdote que também reza nesta intenção, que comigo eleva sua voz em prece, ao mesmo tempo que, recebendo os efeitos da graça de Deus como fruto destas preces, se dispõe a ser presença e instrumento santificante para cada um de seus irmãos no presbitério, é um grande conforto para minha alma e um sinal de forte esperança para toda a Igreja.

“Depois disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe!’ E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa.” (Jo 19, 27)

Como indigno servo desta Igreja particular, devo zelar por todos e por cada sacerdote, o que tenho procurado fazer, apesar das dificuldades que existem de tempo e espaço, em virtude da grande extensão de nossa Arquidiocese. Porém, peço a Deus que diante disto me enriqueça sempre em força e diligência. Grande parte deste cuidado, creiam, realizo-o no silêncio das minhas orações cotidianas, quando entrego e confio a vida e o ministério de cada um de vocês, meus filhos no sacerdócio, ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria. Também confio todos os dias à Virgem Santíssima os meus limites pessoais como Pastor deste grande rebanho, pedindo a graça de suplantá-los, ainda que a custo, a fim de que isso se reverta em frutos para todos vocês.

Como mencionei ao final da primeira parte desta carta, não há momento em nosso caminho de vida sacerdotal que Maria Santíssima não nos acompanhe. Em todos os momentos de alegria, de tentação, de ação pastoral, de oração, ela está sempre ao nosso lado. A Virgem Imaculada nos ama como filhos, com um amor mais forte porque é movido pelo amor que sente pelo seu Filho Jesus, a cuja vontade sempre perfeitamente se conformou. Ela sabe que o nosso coração está especialmente configurado ao Coração de Jesus, por isso, mais do que qualquer outra criatura, Maria Santíssima nos socorre e ajuda para que possamos perseverar, suportar os problemas, não nos esquecer de nossa consagração a Deus, encontrar a ajuda certa nas horas difíceis, discernir com sabedoria, redescobrir o entusiasmo pela missão e reconhecer os dons naturais e sobrenaturais que recebemos para a nossa comunhão com Jesus Cristo.

Nossa Senhora não se cansa de pedir por nós a seu Filho o dom do arrependimento e da verdadeira contrição do coração para que sejamos mais santos, o dom da humildade e da pureza de intenções para que possamos contemplar a face de seu Filho, o dom da obediência e da sabedoria para que nosso apostolado transmita a vida que vem do Ressuscitado. Quantas vezes nós não iremos ainda chorar nos braços desta Mãe? Em quantos momentos ainda não seremos crucificados com seu Filho e ela estará aos pés da cruz ao nosso lado para nos confortar?  

Caríssimos presbíteros, vocês são os filhos prediletos da Virgem Santíssima, por quem Ela dedica uma súplica especial ao seu Diletíssimo Filho. Por isso, peço perdão a Deus e a intercessão de nossa Mãe do Céu se fui menos presente para alguns ou menos atento às necessidades de escuta e de atenção para outros. Entretanto, por melhor que eu possa vir a ser, por mais próximo que eu possa estar de cada um de vocês, ainda assim, aqueles que estarão, na prática, mais perto nos momentos difíceis de cada dia serão os irmãos no sacerdócio que residem na proximidade ou desfrutam da amizade vinda do seminário ou ainda da espiritualidade que os une. Por isso, a celebração desta Quinta-feira Santa tem um significado especial para todos nós. Estamos todos unidos! A presença de cada sacerdote no dia de hoje aviva a esperança de que não estamos sozinhos nos momentos difíceis e de que podemos encontrar socorro e ajuda na fraternidade de nossos irmãos sacerdotes, ainda mais se esta fraternidade for marcada por um vivo amor e devoção à Santa Mãe de Deus.  

“Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós”. (Jo 14, 18)

A comunhão com o Filho de Deus, ao mesmo tempo que move a comunhão entre nós, também se renova e cresce na medida em que reforçamos os laços de fraternidade sacerdotal em nosso presbitério. Por isso, é muito importante que saibamos zelar uns pelos outros com três atitudes frequentes, inspiradas nos gestos de Nossa Senhora por nós: rezar por nossos irmãos sacerdotes para que sejam fortes na fé, ardorosamente dispostos a combater os próprios pecados e solícitos na missão que lhes foi confiada pela Igreja; procurar sempre estar próximos uns dos outros para nos animarmos no desejo pela santidade e na consolidação de hábitos de vida que sejam adequados para a vivência e a perseverança no ministério sacerdotal; e, por fim, procurar concretizar uma verdadeira fraternidade sacerdotal marcada por atitudes de evidente caridade presbiteral através de gestos e testemunhos que encorajem a confiança e a ajuda mútua nas necessidades espirituais, como também naquelas materiais.

As mãos de nossos irmãos de presbitério, que foram ungidas na ordenação, serão em muitos momentos o instrumento das mãos do Pai celeste para nos defender do mal, corrigir e orientar em nossos erros, nutrir nossa fé, curar as feridas de nossos pecados e nos sustentar na missão. A estas mãos recorreremos muitas vezes ao longo de nossas vidas, porque através delas será outra vez renovada a oferta de salvação por nossas almas. Assim, também será, por estas mãos, que não nos sentiremos órfãos de Deus.

“… mas tende coragem, Eu venci o mundo!” (Jo 16, 33)

Nos últimos anos têm aumentado os casos de sacerdotes desgastados ora por conta das exigências pastorais, ora por seus vícios pessoais, ora por um ritmo de vida quase desumano que aos poucos transformou a prática da oração em algo secundário e adaptável às demais exigências. Estes acabaram por ter de enfrentar seus limites humanos, os desafios externos e os efeitos dos seus pecados desprovidos da armadura de Deus (cf. Ef 6, 13-17), que requer ser temperada no tempo com constância e bravura, sempre robustecendo-se pelas práticas espirituais habituais como a Adoração Eucarística, a meditação da Palavra de Deus, a oração do Santo Terço, o exame de consciência diário, etc. Não há prioridade que anteceda o cuidado com a vida espiritual, porque se esta não for bem cuidada, até mesmo o melhor equilíbrio humano na busca do bem-estar pode vir a se desorientar do zelo por um estilo de vida sacerdotal e, por fim, perturbar a perseverança no exercício do ministério.

Quando ao ritmo de vida pesado e extenuante se somam algumas desilusões em relação aos ideais pessoais ainda não submetidos integralmente ao querer de Deus, ou frustrações diante das expectativas a respeito da própria Igreja e do Povo de Deus, bem como outras dores vindas das feridas da vida, pode acontecer de um sacerdote hesitar ou mesmo voltar atrás naquilo que prometeu e lhe pede o seu Deus e Senhor. Nem sempre é fácil retomar o “sim” generoso em meio a tantas dificuldades e prosseguir reafirmando a sua escolha definitiva de viver totalmente doado a Deus e ao serviço das almas por toda a sua vida.

A sociedade hodierna quase diviniza o “bem-estar”, insiste em afirmar que não há nada de definitivo na escolha de vida de um homem, declara que tudo pode ser modificado pela própria pessoa sem quaisquer escrúpulos ou parâmetros, inclusive morais, classifica o sofrimento pessoal e as dificuldades inerentes às escolhas da vida como sinais de uma opção inadequada e/ou equivocada. Diante disso, se um sacerdote não tiver uma fé robusta poderá não suportar a perseverança no ministério sacerdotal, porque, caso assuma algumas destas afirmações como verdade para si, ao mesmo tempo em que esmorece na fé, mais cedo ou mais tarde se sentirá desorientado ou até “fora de lugar” em sua vida sacerdotal. Gostaria de poder partilhar com cada um concretamente essas reflexões olhando a bela história de amor de Deus na vida vocacional de cada sacerdote.

Estar em sociedade, e resistir às ideias e mentalidades que tentam indiretamente reduzir o sentido da entrega de vida de um sacerdote a um “ato humanitário” supõe um exercício árduo de valentia, coragem e grande ousadia. Somos confrontados diariamente com todo tipo de discursos que procuram apresentar sedutoramente uma certa moderação e/ou diluição da radicalidade evangélica do sacerdócio, ou que tentam definir, até mesmo em boa fé, uma certa gradualidade progressiva na entrega de amor a Deus, mas, na prática, com o tempo, acabam se revelando como contrários ao que o Senhor nos pede de fato. Isto favorece uma certa acomodação a um discernimento errôneo daquilo que é o “melhor possível para mim agora” e, com o passar do tempo se torna sempre mais estagnante e restringente, apagando aquela centelha de amor do Espírito Santo que movimenta o coração do sacerdote a dar-se sempre um pouco mais, até consumir-se por inteiro em Deus.

“Ele disse: ‘Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco’”. (Mc 6, 31)

É certo que, diante de tão grande missão/entrega de amor, é preciso que haja momentos de descanso, quando o sacerdote se recomponha humanamente. Entretanto, um sacerdote não se recomporá humanamente em um descanso se esse recompor-se não for em Deus, até mesmo nas coisas mais simples e triviais.

Depois de um extenuante dia de pastoral em uma paróquia, é sensível o cansaço físico que se abate sobre o nosso corpo, mas juntamente com o cansaço físico, também pode existir um outro cansaço, aquele emocional ou espiritual.

Em um dia de pastoral, um sacerdote pode vir a experimentar variadíssimas situações emotivas causando certo cansaço normal do afã de quem tem zelo por aqueles que lhe foram confiados. Por exemplo, após ouvir no confessionário histórias de grande dor e sofrimento de seus paroquianos, além de sentir compaixão por eles também sentiu uma grande impotência por não poder ajudar de maneira prática e direta suas necessidades; após ter enfrentado a dureza de confortar seus paroquianos feridos e humilhados pelos mais variados tipos de violência em sua comunidade paroquial, sendo também ele vítima da violência, precisou ser forte mesmo sentindo um medo aterrador de ver vitimado um de seus filhos na fé ou a si mesmo; após ter sido mal julgado e perseguido por causa de suas decisões e posicionamento como padre na defesa da verdade, justamente no mesmo dia em que se sentiu mais abandonado e sozinho por ter recebido a triste notícia de uma perda em família, sem poder falar ou desabafar com ninguém o seu sofrimento pessoal; após ter passado o dia com certa tristeza no coração por não ver as coisas mudarem depois de anos de trabalho ou por saber que um seu colega em pouco tempo desgastou a comunidade que por tantos anos ele cuidou com carinho. Por certo, ao final do dia o corpo estará cansado, mas não só o corpo. E esses são apenas alguns exemplos dos cansaços e dificuldades que vive um padre em nossa cidade…

Creio que os tempos dessa “mudança de época” com seus problemas sociais, humanos, religiosos, éticos, políticos, ideológicos, com toda a espiral de violência e da divisão interna entre nós e os mais variados ataques externos que sobressaltam a cada momento, fazem com que nossos dias sejam tensos e cansativos. Quantas histórias de situações difíceis diante da violência física, das armas ou digitais!

Quantos sentimentos misturados, quantas emoções ainda não digeridas, quantos momentos sobrepostos não meditados e ainda não oferecidos a Deus! Uma boa noite de sono, assistir um pouco de TV, estar por algum tempo nas redes sociais, na internet, ou praticando esporte pode ajudar o repouso, mas não será suficiente. Aliás, estejam atentos para não incorrerem em atos de ingenuidade ou imprudência, pois cuidar dos nossos sentimentos requer disciplina e seriedade, porque, quando se vivem certas agitações afetivas, com mais facilidade nas horas de repouso pode-se começar uma certa “procura” por relacionamentos ou meios materiais com uma oferta mais rápida de prazer e segurança que satisfaça, aplaque ou evite a tensão oriunda daquela agitação, na tentativa de assim substituir ou compensar a real necessidade por uma presença, que de fato, ajude a reorganizar os próprios sentimentos e afetos sem criar agitações ainda maiores e mais duradouras.

De fato, para descansar da faina cotidiana da vida sacerdotal precisamos de algo mais, ou seja, algo que, até por prioridade própria, vem antes do ato de descanso em si e que supõe a presença irrenunciável de Alguém: Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos que Eu vos aliviarei (Mt 11, 28). Eis aqui o início do repouso, o verdadeiro alívio e o início de uma ordenada e autêntica reorganização. Tudo começa com esta palavra do Senhor Jesus, com este convite, com o ato de ir até Ele como estivermos. Este “repousar orante” na presença de Cristo Jesus é indispensável na vida de um sacerdote, tudo o mais vem depois disso e como continuidade deste momento na companhia do Senhor: seja o esporte, o sono da noite, a companhia de um amigo, um passeio, etc. Nenhum repouso será idôneo ou bastante para a alma de um sacerdote, se acaba por substituir ou se antecipar a esta atitude primeira de querer estar com Ele na hora do repouso.

“Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso”. (Mt 11, 28)

Por que insisto tanto no tema da oração e da espiritualidade? Porque já se fala com muita frequência sobre a importância dos sacerdotes descansarem e de terem um tempo de lazer e de cuidado pessoal mais elaborado envolvendo as demais áreas de sua vida, como por exemplo, se disciplinando em um repouso mais regular, uma alimentação mais saudável, retomando os estudos, iniciando uma formação intelectual específica e enriquecedora, buscando entretenimento cultural de qualidade, diminuindo o ritmo de atividades em alguns momentos da vida, praticando atividades esportivas regularmente, etc. Tudo isso merece atenção e vejo com bons olhos que se tornou objeto de interesse na vida de muitos sacerdotes, porém não basta apenas colocar em prática estas iniciativas, se o sentido e significado que for dado a estes momentos não conduzir o sacerdote, uma vez mais, ao significado e à alegria de ser aquele que é chamado a ser em sua vocação.

Nos textos evangélicos, esta é uma preocupação constante para Nosso Senhor: quando adverte os discípulos sobre a sua missão (cf. Lc 4, 43), quando responde a Pedro que vem informá-lo que todos o procuram (cf. Mc 1, 32-39), quando retarda seu recolhimento por compaixão da multidão que sofre, mas logo em seguida despede a todos e também seus discípulos para se recolher em oração (cf. Mt. 14, 13-23). Este texto em especial traz algo muito interessante. Jesus deveria estar exausto de uma inteira “jornada pastoral” muito intensa e marcada por fortes emoções, depois de ouvir e atender a muitos. Entretanto, após despedir a multidão, ele se recolhe em oração sozinho no monte por um longo período: Anoiteceu, e Jesus continuava lá, sozinho (Mt 14, 23). Jesus não abre mão de estar consigo mesmo, sozinho, para estar em diálogo de intimidade com o Pai sobre tudo aquilo que se passou naquele dia. Este gesto de Jesus se repete em todos os momentos críticos de seu ministério, e muito especialmente nos momentos de aparente “sucesso pastoral” com as massas. Nosso Senhor também descansa, mas seu descanso é uma ocasião para a intimidade com o Pai e a oração.

Parece claro na narrativa dos Evangelhos o quanto o repouso e a oração vão juntos na vida de Nosso Senhor. Estou convencido de que também assim deve ser realmente no coração do padre. Quando o repouso na vida de um sacerdote não traz em si esta qualidade a mais, pode acabar levando a certas dispersões no cuidado com sua própria vocação e seu estado de vida.

Seja a prática esportiva, ou um simples dia livre de lazer e descanso, o início de um tempo de estudos ou uma viagem de férias, tudo isso deve servir para favorecer e aumentar o tempo consigo mesmo e com Deus, e assim estar mais inteiro e sereno diante d’Ele na vivência da própria vocação e na oração.

Sobre este tema do permanecer mais tempo consigo mesmo, permito-me um parêntese. Com muita facilidade, por conta das redes sociais, também nós passamos pouco tempo conosco mesmos, ou seja, refletindo e retomando sempre de menos os sentimentos e afetos que povoam nossa alma e colorem o nosso dia.

Constantemente estamos em diálogo com alguém, resolvendo problemas, dando opiniões, escutando e respondendo mensagens, e, por fim, quase não paramos conosco mesmos para um exame de consciência atento, e para ouvir e perceber como estamos, o que está se passando dentro de nós, por que certos sentimentos estão se agitando em nossos corações, ou por que outros sentimentos e emoções não estão mais presentes em nossas vidas. Apesar de termos mais recursos tecnológicos para otimizar reuniões e tantos outros afazeres, curiosamente, terminamos tendo menos “tempo conosco mesmos” e, por conseguinte, deixando de conversar com Deus sobre aquilo que estamos sentindo e vendo em nós mesmos.

“Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do maligno ”. (Jo 17, 15)

Cuidar de si mesmo sem descuidar da própria vocação ou estado de vida é um desafio que merece ser vivido por todos os batizados: seja um pai de família, um leigo, consagrado ou não, e também um sacerdote. Porque até mesmo nos melhores gestos de cuidado com a saúde e na busca pelo mínimo bem-estar de vida, o inimigo de Deus sorrateiramente investe suas insídias e insinuações com o intuito de dispersar ou confundir os filhos de Deus na hora de perseverarem em sua entrega de amor, pois ele bem sabe como o coração do homem rapidamente se apaixona por tudo aquilo que possa oferecer imediata satisfação e bem-estar, deixando de lado ou para depois aquelas escolhas que são mais exigentes e pouco gratificantes em um primeiro momento.  

Quando se descuida deste equilíbrio com a vida espiritual, a vocação e a missão, aos poucos, ao longo dos anos, vão se reduzindo a um ato quase “funcional-profissional”, ou ainda a uma condição preocupante que seria a separação interior entre “aquele que eu sou e que doo a Deus” e “aquele que mantenho exclusivamente para mim” para satisfação de uma suposta individualidade que seja “só minha e em prol de minhas necessidades como homem”. Quando uma tal fissura não é rapidamente sanada, o caráter de sacrifício presente na vida de um sacerdote e o desejo de imolar-se com Cristo por amor do Pai e pela salvação das almas começa a ser relativizado e aos poucos vai desaparecendo da vida do sacerdote. A todo momento, precisamos estar inteiros em nossa vocação. Não há momentos de separação entre o padre e o “homem-padre”. Cuidar exclusivamente daquilo que vem classificado como humano na vida de um padre sem integrá-lo com o que lhe é próprio por natureza espiritual e sobrenatural, seria como tentar desfazer a união ontológica com Cristo-Sacerdote e Vítima para tentar reafirmá-la depois quando for interessante. Se esta união não for afirmada e defendida a todo momento, muito provavelmente, aquilo que parece ser uma ajuda em boa-fé, com o tempo, causará maior confusão na vida daquele sacerdote podendo levá-lo até mesmo a perder completamente a consciência de sua identidade sacerdotal.

“Já não estou no mundo; mas eles permanecem no mundo […]. Eles não são do mundo como eu não sou do mundo”. (Jo 17, 11. 16)

Nos últimos anos, a sociedade ampliou os meios para uma comunicação sempre mais direta, veloz e objetiva, acelerando significativamente o ritmo na transmissão da informação e desenvolvendo um apetite intelectual voraz por novidades e uma curiosidade tantas vezes fora de medida, fútil, pouco controlada, mesmo por coisas que não duram muito tempo ou que sequer são inéditas. Tudo passou a ser muito interessante, mas só por alguns momentos, ou seja, o tempo necessário para a chegada da nova notícia, também ela efêmera, numa cadeia incessante de distrações mascaradas de intelectualidade.

Fazemos parte deste cenário social, estamos englobados por ele, mas em função de tudo o que significa ser cristão e, mais ainda, daquilo que somos por vocação, ou seja, pastores de almas, trazemos conosco um interesse e um zelo especial por realidades que exigirão de nós escolhas evidentemente contrárias a este ritmo de vida superficial que permeia os nossos tempos, e tantas vezes, o tempo de cada um, que acaba por se esvair inutilmente.

Como pais espirituais, precisaremos exortar sobre erros, mas também teremos de acompanhar atentamente o crescimento daquele que, corrigindo-se agora, busca crescer acertando; como confessores, precisaremos ouvir muitas vezes as pessoas que cada vez mais se sentem confusas espiritualmente, feridas interiormente, desfiguradas em sua própria identidade e, após ouvi-las, cabe acompanhá-las nos seus reencontros na vida; como catequistas e comunicadores, precisaremos saber ouvir a Voz de Deus com clareza e também as vozes que clamam por ajuda e libertação escondidas e sufocadas dentro de tantos corações acorrentados pelo ódio e pelo ressentimento, mas que esperam por Deus. Para tudo isso, precisamos estar ali, presentes, próximos das pessoas que nos cercam, e em alguns casos romper a grande barreira invisível da virtualidade. Como padres, podemos mover-nos para dentro da virtualidade a fim de encontrarmos o ser humano que passa por ali ou que esteja perdido lá dentro, porém, uma vez encontrando-o, se para ele queremos ser bons samaritanos, precisamos colocá-lo em nossa montaria e levá-lo para a hospedaria da realidade tu-a-tu, fora da virtualidade, ali onde poderemos cuidar adequadamente de suas feridas antes de seguir viagem outra vez (cf. Lc 10, 34).

Apesar de tantos meios para a comunicação, sinto que aumenta o número de pessoas que se tornam conhecidas por muitos, mas permanecem quase completamente desconhecidas para elas mesmas e, no fundo, até para os outros. Se não houver um cuidado pessoal com o nosso próprio modo de vida, também nós padres correremos o risco de estar mais distantes das pessoas com quem convivemos, ou talvez bem informados sobre elas, porém menos capazes de estabelecer vínculos espirituais e afetivos profundos. Caso isso aconteça, com facilidade um sacerdote pode terminar perdendo a clareza de sua própria identidade e, por conseguinte, a capacidade para guiar os demais irmãos na fé com bom discernimento espiritual e sabedoria.

“… e lhe disse: ‘Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo’. Jesus lhe disse: ‘Apascenta as minhas ovelhas.’” (Jo 21, 17)

São muitas ideias e experiências que gostaria de continuar partilhando, porém, ao finalizar esta carta, faço-o com grande alegria no coração por poder dividir com todos os meus irmãos no sacerdócio temas tão relevantes sobre nossa identidade e nossa vida cotidiana, que merecem atenção e contínua reflexão. Deixo cada um destes temas, aqui citados e brevemente comentados, como motivações concretas para os encontros de forania, vicariato ou para sua reflexão pessoal servindo para a formação permanente do clero de nossa Arquidiocese, ou para os encontros do clero. Aproveito, ainda, para estimular a formação de pequenas fraternidades sacerdotais, ou seja, de pequenos grupos de sacerdotes que se reúnam para dividir momentos de espiritualidade em comum e de salutar convivência, para um maior crescimento na fé e no zelo pela própria vocação.  

Como o Senhor Jesus, que conhece os nossos corações, confiou-nos a missão de santificar o seu Povo escolhido através do exercício do nosso ministério, também eu confio ao zelo amoroso de todos vocês, segundo a missão que lhes foi confiada pela Igreja, o cuidado das ovelhas deste enorme rebanho de nossa Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, enquanto suplico à Virgem Maria que os cubra com seu manto de amor, os livre das ciladas do inimigo e os proteja de todo o mal.

A partir da Festa da Unidade deste ano, iniciaremos o ano dedicado às vocações sacerdotais (2019). Tenho certeza de que poderei contar com o entusiasmo e a colaboração de todos os sacerdotes para que trabalhemos de maneira testemunhal nesse terreno. E no ano seguinte (2020), provavelmente, o Brasil todo irá aprofundar o dom do chamado de cada vocação e rezar por ele.

Sendo a Virgem Imaculada a Rainha das vocações, confio também ao seu materno patrocínio todas as boas iniciativas de fraternidade entre os sacerdotes de nosso presbitério para que rendam um frutuoso testemunho de amor pela Igreja e de alegria pela vocação sacerdotal, sendo assim, instrumentos eficazes para a multiplicação das vocações sacerdotais em nossa Arquidiocese.

Vivendo os desafios deste terceiro milênio, façamos memória da oração de São João Paulo II, rezando em unidade e pedindo a sua intercessão pelo nosso sacerdócio:

«Te Deum laudamus,
Te Dominum confitemur…»
Nós Vos louvamos e bendizemos, ó Deus:
toda a terra Vos adora.

Nós, vossos ministros,
com as vozes dos Profetas e o coro dos Apóstolos,
Vos proclamamos Pai e Senhor da vida,
de cada forma de vida
que de Vós somente provém.

Reconhecemo-Vos, ó Trindade Santíssima,
como seio e início da nossa vocação:
Vós, Pai, desde a eternidade nos pensastes,
quisestes e amastes;
Vós, Filho, nos escolhestes e chamastes
para participar no vosso único
e eterno sacerdócio;
Vós, Espírito Santo, enchestes-nos
com os vossos dons
e consagrastes-nos com a vossa santa unção.

Vós, Senhor do tempo e da história,
colocastes-nos no limiar
do terceiro milênio cristão,
para sermos testemunhas da salvação,
por Vós operada em favor
de toda a humanidade.

Nós, Igreja que proclama
a vossa glória, Vos imploramos:
nunca venham a faltar sacerdotes santos
ao serviço do Evangelho;
ressoe solenemente em cada Catedral
e em cada ângulo do mundo
o hino «Veni Creator Spiritus».

Vinde, Espírito Criador!
Vinde suscitar novas gerações de jovens,
prontos a trabalhar na vinha do Senhor,
para espalhar o Reino de Deus
até aos últimos confins da terra.

E Vós, Maria, Mãe de Cristo,
que, aos pés da cruz, nos acolhestes
como filhos prediletos, com o apóstolo João,
continuai a velar pela nossa vocação.

A Vós confiamos os anos de ministério
que a Providência nos deixar ainda viver.

Permanecei ao nosso lado para nos guiar
pelas estradas do mundo,
ao encontro dos homens e mulheres,
que o vosso Filho redimiu com o seu Sangue.

Ajudai-nos a cumprir integralmente
a vontade de Jesus,
de Vós nascido para a salvação do homem.

Cristo, Vós sois a nossa esperança!

«In Te, Domine, speravi,
non confundar in aeternum».

(Da Carta do Papa São João Paulo II aos sacerdotes por ocasião da Quinta-Feira Santa 1996)

Rio de Janeiro, 29 de março de 2018

Missa do Crisma na Quinta Feira Santa

Orani João Cardeal Tempesta, O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

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