Bento XVI, a fé e a misericórdia (II)

    Na entrevista reproduzida no L’Osservatore Romano, jornal oficioso da Santa Sé, edição n. 12, de 24/03/2016, p. 6-8, o Papa emérito Bento XVI, depois de tratar da fé e da Igreja, conforme nosso artigo anterior, passa a tocar em um ponto muito importante para todos os que temos fé: “a justificação” e seus diferentes enfoques nos tempos da Reforma Protestante e hoje, bem como o sofrimento ou o mal no mundo.
    Continuemos, pois, esta reflexão dando a palavra a Bento XVI, que nos diz o seguinte: “Para o homem de hoje, em relação ao tempo de Lutero e à perspectiva clássica da fé cristã, num certo sentido as coisas se inverteram, ou seja, o homem já não pensa que precisa da justificação diante de Deus, mas o seu parecer é que Deus se deve justificar devido a quanto há de horrendo no mundo e a miséria do ser humano, tudo coisas que em última análise dependeriam dele”. Pensa-se, então, que “Cristo não teria sofrido pelos pecados dos homens, mas ao contrário teria, por assim dizer, cancelado as culpas de Deus”. Entra em foco aqui uma disciplina filosófico-teológica, a Teodicéia (Theos = Deus/ Dike = justificativa). Trata, entre outros pontos, de justificar a existência de Deus ante o mal no mundo.
    Busquemos entender o que acima foi explicitado expondo, de modo sintético e claro, o conceito de justificação na concepção protestante clássica e na doutrina católica, depois entremos na questão do mal no mundo e Deus (a Teodicéia). Esses pontos nos ajudarão a melhor interpretar as sempre densas e profundas palavras de Bento XVI. Porém, é preciso levar em consideração a assinatura de um documento sobre a justificação entre católicos e luteranos, que deixou clara a posição e sua convergência. Além disso, neste ano outro documento que fala do conflito à comunhão trabalha também essas questões.
    Porém, levando em consideração a questão clássica, comecemos dizendo que Lutero, o reformador protestante da Idade Moderna, acreditava que, após o pecado de Adão, o ser humano está irremediavelmente vendido ao pecado, em sua essência ou intrinsecamente. Ora, estando radicalmente deteriorada, a natureza humana não pode ser justificada por uma transformação interior, pois nada consegue eliminar a sua pecaminosidade nem prevalecer contra ela. Daí esse ser humano ter a necessidade de uma justiça ou santidade exterior (chamada de jurídica apenas) que, embora não extinga a realidade do pecado, faz o ser humano se passar por santo diante de Deus. O Pai celeste deixa, então, de imputar ao homem o pecado e aplica a esse pecador os méritos de Cristo. Tais méritos recobrem o pecador como uma capa externa, que faz Deus ver no homem não a imagem de um depravado, mas, sim, a figura de seu próprio Filho, Jesus Cristo.
    Nesse contexto, a vontade humana não é livre, mas serva do pecado. Sim, essa tese decorre também do fato de que a vontade de Deus é absoluta e suprema, de tal forma que ninguém pode contradizê-la. O homem só é livre para escolher entre os bens temporais, mas não tem a mesma liberdade com relação à vida eterna. Está predeterminado tudo aquilo que o ser humano fará ou não fará neste mundo. Não obstante a tudo isso, porém, o homem e a mulher recebem o Espírito Santo, que atua nas almas retas, dando-lhes seus dons, embora estes só sejam plenos no céu. Nessa lógica, no culto é mais importante a pregação do que os sacramentos, que seriam meros canais transmissores ou provocadores da fé fiducial (confiança em Deus).
    A isso responde a fé católica o seguinte: a justificação não é meramente jurídica ou externa, mas ontológica (toca o ser em si mesmo), ou seja, ocorre no íntimo do ser humano. Para ver Deus face a face não se requer apenas uma capa de justo, mas estar limpo de toda mancha de pecado ou puro de coração (cf. Mt 5,8). Tal limpeza se dá pela penitência, já neste mundo, ou pelo estado de purgatório, após a morte. Mais: Deus sabe tudo sobre a vida humana e a acompanha com a sua Divina Providência, mas não força o ser humano a lhe dizer Sim. Dá a ele a liberdade, conforme ensina Santo Agostinho († 430): “Aquele que te criou sem ti, não te salva sem ti”. Deus nos predestinou à salvação, mas quer o nosso Sim generoso e livre, cooperamos, pois, com Ele em resposta à Sua graça a agir em nós.
    Importa notar ainda um dado relevante: há diferença entre justificação e salvação. Justificação é tornar-se justo ou passar do pecado à graça, o que se dá, via de regra, no início da vida cristã. Já a salvação significa estar na graça de Deus, com a força d’Ele mesmo, ao terminarmos a nossa peregrinação terrena. Isso só é possível ao cristão na prática das boas obras ou no exercício de sua fé operosa ou transformada em boas obras. Pergunta alguém: como podemos, então, entender a fala de São Paulo ao dizer que a justificação é gratuita ou independe dos méritos da criatura, e São Tiago afirmar que a fé sem obras é morta? – Em resposta, notamos que São Paulo tem em vista apenas a entrada na vida da graça. Tal entrada é gratuita, realmente. Ninguém pode merecê-la. Ela se dá pela fé. Já São Tiago tem em mente a perseverança na vida cristã até o fim. Tal perseverança exige boas obras.
    Também o cristão dá importância não só à pregação da Palavra de Deus, mas aos Sacramentos, uma vez que estes agem por si mesmos sobre a pessoa que os recebe (em latim se diz que agem ex opere operato). Eles realizam o que significam, não são meros simbolismos, de modo que quando o sacerdote pronuncia as palavras da consagração, na Missa, “Isto é o meu corpo” e “Isto é o meu sangue”, temos ali, sacramentalmente, o próprio Corpo e Sangue de Cristo para nos alimentar, no Batismo, a água não só assinala a purificação, mas a realiza verdadeiramente.
    Sobre isso escreve Dom Estêvão Bettencourt, OSB: “os sacramentos estão em continuidade com a santíssima humanidade de Cristo, que assinalava e realizava a salvação dos homens e, por isto, é chamada ‘o Sacramento Primordial’. Cristo, a Igreja (Corpo prolongado de Cristo) e os sete sacramentos são o grande canal ou o Grande Sacramento (a ordem sacramental) através do qual a vida eterna flui até cada indivíduo em particular”. Mais: “Os sete sacramentos recobrem toda a vida terrestre de um ser humano, dando a cada uma de suas principais fases um sentido novo ou transcendental: assim, ao nascimento físico, corresponde o Batismo; ao crescimento físico, a Confirmação ou Crisma; à alimentação, a Eucaristia; à medicina, a Penitência sacramental; à escolha de um estado de vida, a Ordem e o Matrimônio; à consumação terrestre, a Unção dos Enfermos”. (Iniciação Teológica. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2013, p. 250).
    Proposto, em linhas gerais, o debate primeiro sobre a justificação do homem diante de Deus, tendo em conta, sobretudo, a Idade Moderna, passemos ao segundo ponto abordado por Bento XVI, que é a inversão de valores: se naquele tempo, o debate versava mais sobre como o ser humano se justifica diante de Deus, hoje é Deus quem deve – pensa-se – justificar-se diante do homem, especialmente frente aos males que há no mundo. Como pode um Deus bondoso permitir tantos sofrimentos? Cristo morreu na Cruz para salvar os homens ou a fim de cancelar as culpas de Deus pelas falhas do mundo?
    Em resposta, dizemos que essa inversão de posições foi muito bem entendida pelo Papa emérito. O ser humano se coloca, indevidamente, é óbvio, no lugar de Deus e O julga pelos males do mundo. Ora, antes do mais, é preciso notar duas coisas: a) A tese não é nova, mas retomada do Antigo Testamento. Ali, ante os sofrimentos da humanidade, os escritores bíblicos se queixavam com Deus que lhes parecia ausente (cf. Hab 1,2-4; Jr 12,1-4; Sl 73 e Ml 2,17); b) Um Deus que pudesse ser julgado não seria Deus. Seria mais coerente não crer em Deus, a Perfeição por excelência, do que acreditar em um Deus falho que pudesse ser censurado pelos seres humanos.
    Como justificar, então, o mal no mundo? – Falamos com a Filosofia Clássica que o mal não é uma realidade positiva, mas a carência de um bem necessário. Sim, cada palavra tem seu peso nessa definição: “carência de um bem necessário”, pois o olho é um bem necessário aos viventes, mas não à pedra, por exemplo. Daí ser a primeira ausência um mal, a segunda não. Conclui-se ainda que o mal não existe por si mesmo, mas tem o bem como suporte, ou melhor, é uma carência de finalidade a algo bom. Desse modo, a coragem é uma virtude ao policial que doa sua vida para defender a sociedade, mas essa mesma bravura aplicada para roubar, matar, destruir torna-se um mal, pois se desvia da reta finalidade.
    Há dois grandes tipos de mal: o físico e o moral. O primeiro decorre da própria mecânica da natureza finita (cegueira, doenças, terremotos, enchentes etc.) e o segundo vem do mau uso da liberdade humana (pecados, maldades, vícios etc.). Ambos, como vimos, decorrem da criatura falha, nunca do Criador perfeito; no plano físico, vêm das falhas genéticas ou da própria estrutura natural a causar abalos terrestres ou ondas gigantes no mar etc. Certo é, como lembra o Papa Francisco na Laudato Si, que também o ser humano com seu desrespeito à nossa Casa Comum, o Planeta, traz males ao mundo com os desmatamentos, poluições das águas e do ar etc. Ora, Deus perdoa sempre, o ser humano às vezes, mas a natureza nunca, conforme um provérbio popular; no plano moral, os males são consequências do mau uso da liberdade humana (haja vista tantos desmandos no campo da política profissional).
    E o que faz Deus ante tudo isso? – Responde Santo Agostinho de Hipona que “Deus julgou melhor tirar do mal o bem do que não permitir a existência de mal nenhum”. (Enchiridion XXVIII). Desdobrando essa afirmação, diremos que Deus, embora possa, não quer impedir o mal decorrente das limitações das criaturas, pois para isso Ele teria de intervir toda hora nas leis da natureza e na liberdade humana. O mundo estaria repleto de marionetes. Embora o Senhor não queira o mal, permite que seja cometido, pois tem recursos para tirar do mal bens ainda maiores. Essa afirmação é tão verdadeira que da desgraça do primeiro pecado nos veio o Salvador. Isso sinaliza que, embora não tenhamos explicação para todos os males ocorrentes, Deus, em seus desígnios, sabe sua causa e sua consequência boa para os homens, ainda que estes, por ora, não a vejam. O Senhor nos acompanha em tudo, de acordo com o Salmo 22.
    Ante tudo isso, permanece válido o clássico ensinamento segundo o qual Jesus, o Filho de Deus, morreu na Cruz pelos pecados da humanidade e não para justificar a Deus, pois Ele não erra. Quando a Escritura fala que Deus ficou triste ou se arrependeu de ter feito o mundo, está usando de antropomorfismo, ou seja, dando a Deus formas de sentimentos humanos impróprias a Ele. Mais: o Pai, ainda que pudesse, não quis salvar o mundo de modo frio e jurídico apenas, mas, sim, por meio do sacrifício de Seu Filho na Cruz. O sacrifício que Adão recusou, Cristo aceitou livremente, como Ele mesmo diz: “Ninguém me tira a vida, mas eu a dou livremente. Tenho o poder de entregá-la e o poder de retomá-la” (Jo 10,18).
    Finalizemos com um importante comentário de Dom Estêvão: “É por amor aos homens, não por exigência de um Pai cruel, que Jesus sofre e morre. Ele quis recapitular Adão ou recapitular a dolorosa sorte de Adão para transfigurá-la, salvando o homem perdido pelo pecado”. Mais: “O gratuito amor de Deus aos homens é o dínamo de toda obra da criação e da Redenção, conforme a Escritura e a Tradição cristã. Não é preciso conceber teorias novas e estranhas para ressalvar esse amor; ele está no centro da mensagem cristã. Esse amor provocou o derramamento de sangue não porque Deus tenha prazer em ver sangue derramado, mas porque o homem se precipitou na morte pelo pecado; Deus quis ir buscar o homem lá onde ele se havia projetado, isto é, na morte. É o bom pastor que procura a ovelha perdida, não o carrasco sadomasoquista”. (Pergunte e Responderemos n. 476, fevereiro de 2002, p. 7).

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