Apreensão de livros com temática LGBT e doutrina social da Igreja

Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP .

A ordem do prefeito Marcelo Crivella, para apreensão, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, de obras em quadrinhos com temática LGBT, acabou tendo um efeito totalmente oposto ao desejado por ele. Foi cancelada por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e foi alvo de uma crítica duríssima do decano da mesma Corte, Celso de Mello. A imprensa veio em defesa da obra, aconteceram várias manifestações contra o que se qualificou de censura e as vendas dessa edição foram 60% superiores às da anterior.

Independentemente de uma avaliação de princípios, os resultados da iniciativa foram desastrosos para quem pretende combater a ideologia de gênero. Mas essa ordem estaria de acordo com a doutrina social da Igreja?

 

A necessária proteção aos menores

Estando em sintonia com as famílias e a sociedade, é dever do Estado zelar pelo bom desenvolvimento psicoafetivo e moral de crianças e jovens – e isso implica em um estatuto jurídico adequado com relação a meios de comunicação social, revistas, filmes, etc. (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações educativas sobre o amor humano. Linhas gerais para uma educação sexual, 1983, nº 68).

Não se trata de uma consideração particular da doutrina social da Igreja. As legislações nacionais dos diferentes países sempre contemplam normas para proteger crianças e jovens, que ainda estão formando seu discernimento, de uma exposição inadequada à pornografia e a violência arbitrária.

A ordem do prefeito do Rio de Janeiro apresentava, nessa perspectiva, dois problemas: (1) tinha uma base jurídica falha, que permitiu sua contestação na Suprema Corte; (2) não contava com o necessário respaldo da sociedade, seja por oposição ou simples omissão da maioria.

Muitos argumentarão – com razão – que existe hoje uma hegemonia da ideologia de gênero tanto nas cortes quanto na mídia brasileira. Mas esse é um fato, e diante dele cabe a pergunta “o que fazer?”.

 

Alguns pontos essenciais

Antes de continuar, é importante relembrar três pontos essenciais do magistério católico com relação à temática LGBT, bem expostos no documento “Homem e mulher os criou”: para uma via de diálogo sobre a questão de gender na educação (2019), da Sagrada Congregação para a Educação Católica.

1) A distinção sexual entre masculino e feminino e sua complementariedade afetiva são constitutivas da natureza humana. Nelas se dá a mais plena realização da pessoa.

2) O reconhecimento – evidente na sociedade atual, mas não só nela – de que alguns não vivenciam essa distinção e essa complementariedade não justifica nem sua relativização, nem a discriminação dessas pessoas. Nessa perspectiva, um exemplo de abordagem inequivocamente fiel à ortodoxia católica e aberta à condição homoafetiva é apresentado – na prática – pelo apostolado do Courage.

3) Tendo esses pontos bem definidos, o caminho de superação da ideologia de gênero passa por uma adequada educação afetivo-sexual, que não separe o prazer sexual de uma visão integral do amor, e do diálogo que procura a verdade e o bem do outro.

 

Como dialogar

A mentalidade contemporânea tem uma visão relativista e autocentrada do que seja diálogo. Ele é entendido mais como dois monólogos simultâneos, onde cada um diz o que pensa e depois vai embora sem se incomodar com o outro.

Curiosamente, os primeiros grandes “Diálogos” da filosofia ocidental, aqueles de Platão, mostram uma dinâmica totalmente diversa do relativismo contemporâneo. Seu mestre, Sócrates, partia de um entendimento crítico das ideias do outro, para daí levá-lo à verdade.

De modo similar, o verdadeiro diálogo cristão parte de uma “empatia”, um desejo inicial de conhecer e querer o bem do outro, para que ambos façam uma reflexão compartilhada, onde buscam juntos a verdade.

 

Uma distinção fundamental

Na medida que o educando tem capacidade para entender as argumentações, é nesse diálogo que todo esforço educativo se desenvolve – de forma consciente ou não. Por meio desse diálogo, ele percebe que o educador deseja o seu bem, que valores e normas são para seu pleno desenvolvimento como pessoa e não para limitar sua liberdade.

De modo análogo, nas democracias, a autoridade do Estado é reconhecida na medida em que o governante realiza atos percebidos pela sociedade como voltados ao bem comum e ao desenvolvimento de cada pessoa. Quando não há essa percepção, as ações do governante são vistas como autoritárias – independentemente das boas ou más intenções do proponente.

Essa percepção do que é ou não autoritário, do que é proposto para o bem da pessoa e do que representa apenas limitação a sua liberdade, é um dos principais alimentos da ideologia de gênero. Proposições justas, mas que não souberam ser adequadamente apresentadas aos jovens, foram interpretadas ao longo da história recente como autoritárias e, portanto, ilegítimas. Enquanto isso, outras proposições se fizeram passar por libertadoras e razoáveis – mesmo que não correspondessem à natureza mais profunda do ser humano.

Por isso, a tentativa de apreensão de livros com temática LGBT acabou sendo reconhecida não como uma ação contra a pornografia voltada a jovens – única razão que poderia justificar a ação – mas sim como um exercício autoritário de censura. Esse não será o caminho que ajudará os jovens a um pleno desenvolvimento de sua afetividade e de sua sexualidade, numa perspectiva integral de pessoa.

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